Hiroshi Yamauchi [biografia] foi sem dúvida uma figura peculiar. Como presidente da Nintendo por quase cinco décadas (de 1949 a 2002), esteve no leme do navio que conduziu ao sucesso, transformando o negócio da família numa megacorporação. Sua personalidade era vista como complexa. Variava do iracundo ao pastelão, do crítico ferino ao apoiador incondicional. De frases e decisões bestas a bestiais, como diria Otto Glória.
Exemplo? Como alguém que fazia um trabalho brilhante de filtro nos games que eram criados e lançados — sem jogá-los, no puro instinto —, pode ter dito em público que "jogadores de RPG são pessoas depressivas"? Como alguém pôde insistir em usar cartuchos quando toda a indústria sabia que mídias digitais tinham chegado pra ficar?
Mas Yamauchi era assim, para o bem ou mal.
Yamauchi teve uma infância difícil. Seu pai era de origem humilde, mas se casou com a filha do fundador da Nintendo, adotando o sobrenome da esposa. Em 1933, misteriosamente foi embora. Poucas vergonhas eram maiores para uma mulher japonesa que o abandono pelo marido. Em desgraça social, Kimi foi embora da cidade, deixando Hiroshi com os pais.
Ele cresceu em conflitos com os avós, as coisas não saíam como planejava. Queria fazer faculdade, mas veio a guerra e teve que trabalhar numa fábrica de material militar. Em 1945 sua sorte começou a virar, e iniciou o curso de Direito. Quatro anos depois, outra reviravolta: seu avô, Sekiryo, adoeceu e a empresa precisava de um comando. Hiroshi era o herdeiro, mas para assumir o posto, só largando a faculdade. Teria que abdicar do próprio sonho.
"Estaria mentindo se dissesse que estava entusiasmado sobre assumir o controle da Nintendo", admitiu em 1986. "Eu era jovem e tinha sentimentos mistos, mas à minha frente estavam o negócio da família sem nenhuma liderança e todos os funcionários esperando para saber o que aconteceria com eles".
Cedeu. Mas não estava disposto a conceder mais que isso.
5) Mostrando quem manda
Como condição para satisfazer o desejo final do avô, Yamauchi não faria concessões. Aceitaria abandonar a faculdade para assumir a Nintendo, mas exigiu que qualquer outro membro da família fosse afastado. Não queria competidores, figuras mais velhas se intrometendo em suas decisões. Sekiryo, que faleceria pouco depois, aceitou os termos. E quem dançou foi um primo de Yamauchi.
A Nintendo já tinha quase 50 anos de existência, com funcionários antigos. Talvez alguns tenham pensado em manipular o chefe novato, mas na primeira greve, Yamauchi mostrou a que vinha. Demitiu todos os líderes, assim como vários veteranos. Promoveu uma "limpa" nos quadros, retirando quem considerava "conservador". Ele via uma nova Nintendo no horizonte; queria mentalidade renovada e principalmente, reforçar o recado de que apesar de jovem, mandava.
Nos anos seguintes, Yamauchi diversificaria as atividades com uma série de apostas novas. Entre tantas, investiu no ramo de taxis, motéis, alimentos e brinquedos. Na última os lucros dispararam, muito graças à descoberta de um talento "secreto" na manutenção das fábricas de cartas: um tal de Gunpei Yokoi [biografia].
4) Temido pela família
O tempo passou e a família Yamauchi cresceu: três filhos. Yoko, como os dois irmãos, nunca teve exatamente simpatia pela Nintendo, responsável indireta pela ausência paterna. Rígido, Hiroshi acabava sendo visto como distante e até temido pelos filhos. Infelizmente uma imagem mental não muito diferente da compartilhada por parte de seus funcionários, sócios e associados em geral.
Nos anos 70, Yoko conheceu um jovem engenheiro civil chamado Minoru Arakawa numa festa de Natal em Quioto. Onze meses depois, se casavam e logo estavam vivendo no Canadá com dois filhos.
Com a explosão do Famicom no Japão em 1983, a Nintendo precisava de uma representação na América. Yamauchi ofereceu ao genro a oportunidade de estabelecer e comandar a base ocidental. Arakawa aceitou, a contragosto de Yoko, e assim se tornava o primeiro presidente da Nintendo da América.
Mas o genro — que ganhou a vaga por seu fantástico currículo que incluída o MIT e dois mestrados — não teria folga por ser da família. Yamauchi não tinha papas na língua e criticava quem falhava, tal como elogiava acertos; era seu jeito. As coisas começaram difíceis nos Estados Unidos, com arcades que não funcionavam tão bem quanto no Japão. Sheriff e Radar Scope faziam a Nintendo parecer uma empresa ordinária qualquer buscando uns trocados na aba do sucesso da Taito e outras rainhas do pedaço. Lembre que antes de Donkey Kong, o nome Nintendo não era nada fora do Japão.
Yamauchi culpava o genro pelos fracassos. Conta-se que Arakawa implorou por um novo jogo para introduzir no mercado local. A chance se converteu num pedido do sogro à equipe no Japão para que produzissem algo focado no gosto americano. Foi o começo de Donkey Kong e a grande virada da Nintendo.
Pouco depois, a Nintendo preparava a chegada do Famicom aos Estados Unidos. E outra vez as coisas iam mal; confusões com a Atari e a Coleco atrasavam a migração. Os sucessivos contratempos irritavam Yamauchi, que culpava Arakawa, dizendo que "uma pessoa mais competente não teria problema em fazer o marketing do Famicom nos Estados Unidos"*. Sem dó, na cara.
3) Go sim, RPG não
Apesar de vistoriar todos os games lançados até meados de 1994, dizem que Yamauchi nunca jogou nenhum videogame. Ou quase isso. No único evento conhecido, tentou jogar uma partida de Igo: Kyuu Roban Taikyoku no Famicom com Henk Rogers.
O desenvolvedor holandês foi um dos únicos (fora parceiros muito grandes e importantes) a conseguir se aproximar do presidente da Nintendo. Todos os compromissos "menores" eram atendidos por Hiroshi Imanishi, número dois no comando. E por menores, entenda nomes do nível de Square e Enix, que se ainda não eram gigantes, tinham sério potencial.
"Imanishi vinha e dizia a todos 'Não, vocês não sabem nada sobre como criar games para a Nintendo, e não farão games para a Nintendo'", lembrou Rogers, gargalhando ao completar "Quer dizer, Square e Enix, estão de brincadeira? Acabaram se tornando as maiores publicadoras no negócio da Nintendo".
Com furar essa blindagem? Apelando a uma paixão do japonês: o milenar jogo Go. Entrou em contato dizendo que tinha "o melhor software de Go do mundo" e queria portá-lo para o Famicom. Não demorou e tinham uma reunião marcada. Rogers pediu financiamento para criar seu game. Yamauchi não fez cerimônia e a negociação foi tão simples quanto podia ser.
"Não posso te dar nenhum programador", ele disse. "Não preciso de programadores", respondi. "Preciso de dinheiro". "Quanto?" "30 milhões de ienes", eu disse, cerca de 300 mil dólares. Foi o maior valor que pude pensar depressa. Ele caminhou em torno da mesa, apertou minha mão e tínhamos um acordo. Foi rápido assim. O Sr. Yamauchi não era de ficar enrolando. Ele tomava as decisões dele depressa, e elas era definitivas.
Jogo concluído, Rogers levou um cartucho à Nintendo*. O inseriu no Famicom, ligou a TV e convidou Yamauchi a tentar. O resultado foi no mínimo inesperado.
Voltei nove meses depois com o produto acabado. Ele jogou, ou tentou, porque na verdade não sabia usar o controle no Famicom (risos). Eu não podia acreditar, é como se ele nunca tivesse tocado naquilo antes! Foi o primeiro game em que ele se interessou, então tentou jogar, desistiu e entregou o controle para o subordinado sentado ao seu lado. Ele dizia apontando para a tela "quero jogar aqui, ali e ali".Ele jogou uma partida e disse: "Não, não é forte o suficiente para o Nintendo" (risos). Eu disse "Sr. Yamauchi, esse é o jogo Igo mais forte que pode acontecer nessa máquina. É uma máquina de 8 bits e é um milagre que possa rodar o game!"
Yamauchi dispensava a experiência pessoal com games para acertar no que o público-alvo da Nintendo queria. E essa abordagem, por mais estranha que fosse, se revelou muito eficiente na maioria do tempo.
Mas nem sempre foi assim. Também demonstrou desconhecer ou não entender como determinados nichos funcionavam. Um deles é o dos RPGs. Apesar de terem sido importantes no Super Nintendo, com vários clássicos como Final Fantasy III, Chrono Trigger e até o mascote da casa com Super Mario RPG, o já septuagenário chefão não parecia ter muito apreço por eles.
No fim dos anos 90, disparava contra os rivais por estarem criando "tantos softwares chatos ou complicados, que usuários comuns não apreciam jogar". Sem citar nomes, ficava implícita a figura dos RPGs; a Sony havia nadado no dinheiro do PlayStation, que vendeu como pão graças à Final Fantasy VII.
Mas a maior pérola veio em 1999. Três anos antes, a Square rompeu parceria de longa data com a Nintendo, passando a fornecer seus RPGs para a Sony. Muito se deve a uma escolha de Yamauchi: usar cartuchos no Nintendo 64. Se por desprezo à Square ou opinião honesta, só o próprio explicaria, mas Yamauchi menosprezou a importância da série e por extensão, do gênero*:
Certos jogos da Sony então eram fornecidos pela Namco, cujo presidente, Masaya Nakamura, tinha antes caído junto com Yamauchi, enquanto outras como Square, fornecedora de software para a Nintendo desde o NES, rompera vínculos com a empresa de Quioto em 1996 para fornecer à rival japonesa sua série tremendamente popular, Final Fantasy.
Yamauchi respondeu em 1999 que aqueles que gostavam do role-playing game (RPG) de Final Fantasy eram "jogadores depressivos que gostam de sentar em seus quartos escuros e jogar games lentos". Alguns acharam o comentário ingênuo, mas para uma indústria sob o cerco das vendas, um potencial insulto àqueles que ainda compram seus jogos não se traduzia em visão de mercado moderna.
2) O Cérebro-Mãe
Em 1986, a Nintendo lançava Metroid. No jogo, a caçadora de recompensas Samus Aran enfrenta um grupo de piratas espaciais em seu próprio covil, num planeta distante. O líder deles é uma criatura tenebrosa: um tipo de supercomputador orgânico parecido com um cérebro. De seu recinto, a criatura-máquina controla as instalações, observa e monitora indivíduos e ataca quem a ameaça ou atrapalha seus planos.
Yamauchi, comandando a Nintendo de sua sala na magnífica sede da empresa em Quioto, tinha algo em comum — aos olhos dos subalternos — com o eterno antagonista de Metroid. Sua personalidade gerava um misto de respeito e pavor nos funcionários; sua sala transmitia terror, como as antigas diretorias escolares em crianças*.
À entrada do prédio principal havia uma grande sala de espera com o aconchego de um terminal de aeroporto [...] Atrás de um balcão com tampo em mármore, moças de saia e guarda-pó azul-claro, algumas de chapeuzinho. Depois das paredes nuas, abria-se um labirinto de corredores de piso encerado e brilhante. Uma porta sem identificação isolava a sala de Hiroshi Yamauchi, que um funcionário batizou de "Domínio do Cérebro-Mãe". No jogo Metroid, Mother Brain era a pulsante criatura cuspidora de lasers, que atirava raios vermelhos e sobrevivia sugando toda a energia do universo.
1) Atuação de Marlon Brando
Antes de lançar o NES sozinha, a Nintendo tentou parcerias. A indústria americana de games era dada como terminada depois de 1983. Computadores dominavam o interesse geral e mesmo com o sucesso do Famicom no Japão, era arriscado levá-lo para a América.
A Atari, ainda um nome forte, foi a primeira opção. Os americanos se aproximaram ao licenciar Donkey Kong para o computador Atari 800. Yamauchi se animou e viu novas possibilidades: pediu que Arakawa procurasse a Atari e oferecesse uma licença mundial do Famicom, fora o Japão. Esperto: continuariam cuidando do Famicom na terra natal, e a Atari — reaproveitando a estrutura que distribuiu o Atari 2600 — faria o mesmo com a versão ocidental do console nas Américas, Europa, etc.
O negócio foi selado informalmente, faltavam detalhes. Mas na Summer CES de 1983, a Atari viu a grande rival, Coleco, rodando Donkey Kong em seu computador, o Adam. No entendimento deles, isso violava o acordo que tinham de exclusividade do jogo para o Atari 800. A Nintendo havia licenciado para a Coleco os direitos de Donkey Kong para consoles, não computadores.
Ray Kassar, da Atari, ficou furioso e ameaçou: enquanto a Coleco tivesse Donkey Kong, nada de Atari Famicom. Soava a desastre financeiro para a Nintendo, que marcou uma reunião com o comando da Coleco. Estavam lá Arakawa e Yoko, Ron Judy (um dos colegas de fundação da Nintendo da América), Lincoln e o presidente da Coleco, Arnold Greenberg, com vários representantes da empresa, além de um tradutor.
Yamauchi exigiu que interrompessem a exibição e venda de Donkey Kong para o Adam. A reunião se converteu num espetáculo inesquecível, descrito por Lincoln como "assustador":
Yamauchi entrou abruptamente e sem se dirigir a ninguém, parou no fim da mesa [...] Começou com um discurso ofegante e agudo em um tom monótono de Marlon Brando, e aos poucos foi ficando alto e abusivo. Com um grito lancinante, moveu o braço num arco em frente ao corpo, o dedo indicador em riste na direção de Greenberg. A diatribe de Yamauchi, toda em japonês, deixou todos na sala atordoados, talvez com exceção dos Arakawa.
Quando completou, todos na sala estavam mudos. O intérprete, não menos perplexo, resumiu a monumental reprimenda a "O Sr. Yamauchi está muito chateado". Greenberg tentou articular uma resposta, mas foi inútil. O japonês avisou que a conversa acabava ali, e se continuassem, seriam processados. Restou a Coleco obedecer. Mesmo assim, outros fatores levaram o negócio com a Atari a fracassar, e a Nintendo lançou o Famicom nos Estados Unidos por conta própria. Sorte deles.
Não acaba aí. O mais cômico é que, na mesma noite, Lincoln e Yamauchi jantavam no restaurante do hotel. Relaxado, o presidente se vira para o ainda atordoado colega americano e diz: "Às vezes é assim que precisamos lidar com as pessoas, Sr. Lincoln. O que achou daquela atuação?"