Nas artes de forma geral, quem sai da linha abre novos horizontes. No começo dos anos 90, por exemplo, o mercado fonográfico era dominado por músicos de pop e hard rock – uma sequência quase sem fim de Madonna, Michael Jackson e Guns N' Roses, intercalada por artistas similares.
No rock em específico, o dito "glam metal" estava no trono há anos e não parecia prestes a arredar pé dali tão cedo. Até que um trio de Seattle lançou um disco bem produzido, com sonoridade mais próxima do punk, e chutou as portas das paradas do mundo todo: o Nirvana.
Não foi muito diferente com a indústria de games, que vinha numa mesmice preocupante, até sofrer uma reviravolta com Street Fighter II. Diante dos dominantes beat 'em ups, a jogabilidade em ação lateral com inimigos sem fim parecia a receita inevitável do sucesso.
Quem ousaria sair do traçado e perder dinheiro? A trupe de Ryu, com lutas um-contra-um em gráficos cartunescos. Virou um dos maiores jogos da história. O rei beat 'em up estava morto, mas um novo paradigma reinava. Quem se arriscaria agora?
Quase um ano depois, um fighting game tirou o cartoon e investiu em imagens digitalizadas. Se Pit-Fighter seguira a trilha com aceitação considerável no passado, ao mesmo tempo parecia uma abordagem superada. Mas com acréscimo de muita violência, Mortal Kombat foi aonde ninguém imaginava: bateu de frente com o já consagrado Street Fighter II.
E inevitavelmente começou a ter seus clones. Entre os primeiros, alguns bons como Killer Instinct e pouco depois, War Gods. Mas na leva inicial estava também Way of the Warrior.
Que não era bom, pelo contrário. Mas com sua trajetória improvável, beirando o amadorismo, salvou a Naughty Dog. Pois é, aquela que criaria algumas das maiores séries a cada geração do PlayStation nos anos seguintes: Crash Bandicoot, Jak & Dexter, Uncharted e Last of Us.
E não pense "não tem qualquer relação, foi muito tempo antes". Não fosse pela insistência em produzir essa tranqueira, a empresa jamais teria se aproximado da Sony. "Se tivéssemos optado pela exclusividade da 3DO Company [em vez de publicá-lo pela Universal, como aconteceu], poderia ter sido o fim da Naughty Dog", contou Jason Rubin.
Brincando de criar games
A Naughty Dog foi fundada por Rubin e Andy Gavin. Colegas de escola, a dupla vivia conversando no fundo da sala sobre programação e game design antes de sonhar que isso seria uma profissão. Rubin, bom artista "para quem tinha 12 anos", fazia projetos de jogo bonitos, mas com péssimo código. Gavin era o contrário. O encontro foi a chance de unir os talentos.
Bem antes de Way of the Warrior, fizeram uns poucos games de vendagem insignificante, entre eles Ski Crazed (lançado para Apple II quando tinham 15 anos), Dream Zone e Keef the Thief. O último, publicado pela Electronic Arts, "saiu-se muito melhor e vendeu cerca de 50 mil cópias em várias máquinas", lembrou Gavin.
Planejamento? Plano de negócios? Que isso?
"Nosso plano de negócio era fazer o que achávamos que seria legal. Lucro? O que a gente conseguisse. Gastos? Pergunte aos nossos pais, eles pagavam a energia elétrica e aluguel", disse Rubin lembrando como as coisas eram pouco após a publicação de Ski Crazed.
O primeiro jogo de destaque seria publicado pela Electronic Arts: Rings of Power, primeiro também da Naughty Dog para consoles, o Mega Drive. "Era muito sofisticado e complexo", explicou Gavin, "e levou cerca de dois anos e meio para ser produzido". Rubin lembrou como um período ligeiramente maior: três anos.
O lote inicial (e único) esgotou-se. Segundo Rubin, apesar do sucesso, a EA não fez reposição de cartuchos no mercado. Haviam acabado de lançar John Madden no Mega Drive, que vendia como pão quente pela manhã; não queriam fabricar nada além daquilo.
Rings of Power se tornou um dos jogos usados mais procurados. "Houve várias razões para isso", explicou Rubin, "desde o custo dos cartuchos em relação a outros jogos (ele usava mais memória e espaço de armazenamento mais caro), nossos royalties (bem altos), até competição interna pelo espaço limitado na fabricação".
Rumo ao 3DO
Aborrecidos com o tratamento da EA, tiraram uma pausa para pensar no que fazer a seguir. Oito meses depois, receberam uma ligação de Trip Hawkins falando sobre o 3DO.
"Ele é um homem persuasivo, mas talvez o argumento mais forte pelo sistema tenha sido o console baseado em disco com muita memória e discos que podiam estar prontos para produção", lembrou Rubin. "Não seríamos mais ferrados por decisões baseadas na fabricação de cartuchos!"
Hawkins forneceu o kit de desenvolvimento e os dois começaram a trabalhar, ainda sem publicadora. "Financiamos o jogo do nosso bolso", disse Rubin, afirmando que Way of the Warrior marcou "nossa saída de fazer jogos como hobby para a entrada no desenvolvimento como profissão". Parte do dinheiro investido foi o que ganharam com Rings of Power.
Na época, causava preocupação o tempo de acesso aos discos, uma das barreiras que a equipe precisaria enfrentar. "O 3DO tinha 3 megabytes de RAM, o que era mais do que o maior cartucho do SNES", explicou Gavin. "O CD em si tinha 600 Mb. Havia detalhes técnicos que precisavam ser endereçados ao programar para 3DO. Você precisava fazer um uso esperto de design para reduzir e eliminar o tempo de carregamento."
Em Way of the Warrior, todo o programa foi feito em carregamento assíncrono, segundo Gavin. "O carregamento é feito enquanto você joga, antecipando o que será necessário estar carregado". Assim, conseguiram que o jogo tenha telas de carregamento muito curtas.
Mortal Kombat cômico
Fazer um jogo de luta foi decisão fácil. Parecia um alívio depois do complicado RPG do Mega Drive. "Não nos tomou os três anos que jogos anteriores levaram", disse Rubin. "RPGs são maiores e exigem muito mais tempo e esforço".
Segundo Gavin, "todos os recursos foram colocados em dois personagens na tela. Eles são grandes. Eles têm muita animação e muitos movimentos em relação a outros jogos da época".
A inspiração maior foram filmes de kung fu que os criadores viram na adolescência. Mas claro que o DNA está na cara, não dá pra negar a "paternidade".
Não que eles neguem. "Em alguns níveis, é uma espécie de imitação um pouco mais cômica de Mortal Kombat. É bem exagerado ", admitiu Gavin anos depois.
O primeiro passo foi reaproximar a dupla. Durante a produção de Rings of Power, Gavin estudava na Universidade da Pennsylvania e Rubin estudava numa escola em Michigan – distância superior a mil quilômetros. Então, a comunicação era só via modem. Quando a produção de Way of the Warrior começou, Gavin estava terminando a graduação no MIT e a solução foi a dupla alugar um apartamento em Boston, onde morariam e tocariam o projeto.
Tudo foi produzido da forma mais barata possível. Era avesso ao que se esperaria de uma produção importante de um console da nova geração. A jovem Naughty Dog estava em péssima forma financeira e amigos foram chamados para fazer os personagens. Cada um recebeu no máximo US$25 pelo trabalho. "As pessoas que controlamos nesse jogo eram todas amigas e familiares", contou Rubin. "Não podíamos pagar ninguém".
Ajuda de amigos
As vozes do personagem Shaky Jake são do Dr. Rodney Brooks, chefe do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT e um dos professores de Gavin, "provavelmente o principal cientista de robótica no mundo", disse. Outro foi interpretado por um amigo chamado Vijay Pande. Doutor em biologia molecular no MIT, com pós-doutorado em Berkeley, ele foi um dos primeiros colaboradores da Naughty Dog, participando de Rings of Power como programador e designer. "Ele é o personagem secreto da fralda", contou Gavin com um sorriso, referindo-se a Gulab Jamun.
O próprio Rubin interpretou dois personagens: The Ninja e Konotori, além das vozes de High Abbot e do narrador.
Alguns eram "mais ou menos" profissionais, como a atriz Tamara Genest, que fez Nikki Chan – tinha no currículo uma ponta em The Switch, filme de 1993 para TV, e depois faria outra participação em Sleeping with the Devil, de 1997. David Liu, creditado pela voz de Dragon, aparece como assistente de produção na obscura comédia romântica sino-americana Anita Ho. Então estudante de Harvard e jogador de elite de Street Fighter II, Liu foi também o principal testador do jogo, e depois seguiria na indústria de games.
Apesar da economia, o desenvolvimento levou um ano, com custo estimado em 100 mil dólares.
O estúdio foi o apartamento alugado em Boston. Não teria problema desde que fosse um espaço adequado, mas não era o caso. Era tão pequeno que, para fazer boas tomadas dos frames dos lutadores, tinham que abrir a porta e posicionar a câmera no corredor. Sem ter lentes adequadas, restava afastar a câmera.
DIY
O trabalho seguiu no verdadeiro espírito do "faça você mesmo". Vizinhos de Rubin, a maioria professores e estudantes do MIT e Harvard, não entendiam as pessoas fantasiadas circulando pelo corredor, pensando que ele gravava filmes pornográficos. Gavin ficava até a madrugada trabalhando no processamento de áudio; o som vazava do quarto e incomodava vizinhos que queriam dormir.
Sem dinheiro para um sistema profissional de captura em chroma key, colaram uma grande folha amarela na parede do apartamento, que também vedava a única janela do minúsculo imóvel. Trajes seguiram o esquema de forte restrição orçamentária: como num carnaval improvisado, usaram de tudo nas fantasias, desde fronhas e lençóis até partes de embalagem de McLanche Feliz. Vijay usou uma fronha como fralda e um lençol como turbante. A joia no turbante era de uma fantasia de Jasmine, de Aladdin, contou Gavin. O traje mais caro, segundo a produtora, custou US$150.
Acabou mais complicado do que calcularam. Pela primeira vez, apesar do aperto financeiro, foram obrigados a contratar pessoal. Foi também a última vez em que a dupla fez quase tudo por conta própria. A indústria se profissionalizava e aquele tipo de fluxo amador não tinha mais espaço.
"Chegou rapidamente ao ponto em que, pela primeira vez, duas pessoas não conseguiram fazer o jogo inteiro", disse Rubin. Como não usaram fundo azul, foi necessário recortar cuidadosamente os personagens das filmagens, um trabalho árduo e terrivelmente chato, a nível de pixel. "Então saímos e procuramos através de anúncios pessoas que fizessem isso", continuou Rubin. "Tivemos pessoas que entraram para fazer a parte tediosa".
Durante a jornada, os dois ficaram falidos. Rubin lembrou de ter US$6,37 na conta bancária, e que se entupia de macarrão instantâneo. Gavin tinha só o dinheiro de uma bolsa anual de US$14 mil para concluir seu curso, e para sobreviver durante a produção, tiveram que vender itens pessoais como um aparelho de som. O apartamento estava imundo, cheio de pelos de cachorro (a cadela de Rubin vivia com eles) e mal podiam fazer uma manutenção no banheiro.
"Com os últimos US$10 mil que tínhamos, de verdade – embora não tenha sido o último gasto, foi o nosso último dinheiro – compramos uma área de 1m² no estande da 3DO na CES", lembrou Rubin.
E ali selaram não só o futuro de Way of the Warrior, como o da Naughty Dog.
No lugar certo
É inegável que, apesar de acertos pontuais, Way of the Warrior era uma cópia deslavada de Mortal Kombat. Segundo descrição do próprio Rubin, que lembrou a exposição do jogo na CES:
Nosso "estande" na verdade consistia de uma TV num canto do estande maior do 3DO. Acabou que atraímos a atenção do mercado com nosso jogo. Publicadores tinham colocado seus desenvolvedores em títulos que chamavam de "multimídia". Basicamente, títulos multimídia eram um monte de porcarias mal filmadas, vídeos interativos e esquisitices semigame. Eles perceberam muito tarde que aquelas coisas não venderiam e precisavam publicar jogos de verdade.Infelizmente para eles, ali só havia um perto de estar completo: nosso Way of the Warrior, que era uma imitação mais ou menos decente de Mortal Kombat. Então surgiu uma guerra de lances por Way of the Warrior, e por uma variedade de razões, a Universal Interactive Studios venceu.
Três publicadoras brigaram pelo jogo: 3DO Company, Universal Studios e Crystal Dynamics. "Chegamos mais perto da Crystal Dynamics", lembrou Rubin, "mas havia uma divisão dentro do empresa. Metade das pessoas adorou o jogo e queria publicá-lo. A outra metade queria comprá-lo e usar o motor para fazer Samurai Shodown, do qual tinham adquirido os direitos".
O principal interessado no começo foi Skip Paul, ex-presidente da divisão de arcades da Atari e chefe da Universal Interactive Studios, uma divisão nova da mega corporação Universal. Hawkins tentou de toda forma convencê-los a ceder os direitos para a 3DO. "Mas a Universal nos ofereceu a chance de fazer e financiar mais jogos, e nos daria liberdade criativa, e isso soou muito mais legal", explicou Rubin.
Uma versão para arcade entrou na fase de testes pela American Laser Games, usando o hardware do próprio 3DO, mas foi cancelado. Uma versão foi planejada para PlayStation. Felizmente para todos, a ideia saiu de cena quando o desenvolvimento de Crash Bandicoot começou a tomar forma.
Mais estranho ainda é que, apesar do resultado de gosto duvidoso, Way of the Warrior teve tanto alarde na imprensa que convenceu os donos de 3DO, carentes de jogos, a investir nele. Ao menos segundo a Naughty Dog, o jogo vendeu mais que a nada má versão de Samurai Shodown.
Caminhos misteriosos
De qualquer forma, se você é fã da Naughty Dog, de Crash Bandicoot, Uncharted, The Last of Us e tudo que veio e virá, agradeça a Way of the Warrior por existir na hora certa e lugar certos. "Além disso, eu amava Los Angeles", disse Rubin justificando a decisão de publicar o jogo pela Universal. "Foi, no final, um acordo melhor. Para nós, foi um dos grandes pontos de decisão. Se tivéssemos optado pela exclusividade com a 3DO [como desenvolvedores], poderia ter sido o fim da Naughty Dog".
Naufragando cerca de um ano depois com não mais que três milhões de consoles vendidos, o 32-bit afundaria a parceira junto. Por outro lado, a Universal deu todo o suporte que o talento dos rapazes precisava para deslanchar.
"Way of the Warrior saiu. Era o que era", Rubin foi honesto quanto ao resultado. "Mas a Universal nos disse 'escolham uma plataforma, escolhem uma IP, escolham um tipo de jogo, e nós financiamos".
E assim dissemos olá a Crash. E depois Nate, Jak & Daxter, Ellie, Joel, etc.
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Se você gosta de bizarrices, experimente também Kasumi Ninja, pérola no mesmo naipe, mas para o ainda mais fracassado Atari Jaguar. Foram tempos muito loucos...
E quem pensava que a Naughty Dog acabaria sendo uma lacradora nos dias de hoje?
Bons tempos posso dizer!!!! Tudo naquele tempo era novidade e o vídeo game 3DO e o Jaguar da Atari tinha muitas propagandas e promessas. A evolução precisava e precisa ser evoluída, essa é a verdade. Com o tempo se vc perceber, essa fase anos 90 ainda serve de base para muitos jogos de hoje em dia. valeu!!!!
Sim, lembrando de Need for Speed que nasceu nessa época também no 3DO. Muita coisa tinha salvação.
Com certeza...joguei muito nas locadoras da época!!!! Sempre lembrando dos clássicos, valeu!!!!