A história de Way of the Warrior, o “Mortal Kombat” da Naughty Dog

Nas artes e na criação de forma geral, alguém precisa sair da linha. No começo dos anos 90, por exemplo, a indústria de games tinha sofrido uma reviravolta com Street Fighter II. Matando os até então dominantes beat 'em ups, a jogabilidade de luta um-contra-um em gráficos cartunescos parecia a receita comprovada do sucesso.

Quem ousaria tão cedo sair do traçado determinado pela trupe de Ryu?

Cerca de um ano depois, a resposta veio com um fighting game que tirou o cartoon e investiu em imagens digitalizadas. Se Pit-Fighter, entre outros, havia seguido a trilha com boa aceitação no passado, ao mesmo tempo parecia uma abordagem superada. Ou que a tecnologia não era madura o bastante para tal. Mas com o acréscimo da violência, Mortal Kombat foi onde ninguém imaginava, talvez nem os criadores: bateu de frente com o já consagrado Street Fighter II.

E inevitavelmente começou a ter seus clones. Entre os primeiros, alguns bons como Killer Instinct e pouco depois, War Gods. Mas na leva inicial estava também Way of the Warrior.

Que não era bom (pelo contrário), mas com uma trajetória improvável, beirando o amadorismo, quase sem querer salvou a Naughty Dog. Pois é, a mesma que criaria algumas das maiores séries a cada geração do PlayStation: Crash Bandicoot, Jak & Dexter, Uncharted e Last of Us.

way of the warrior
Personagens toscos, nomes ridículos, cenários risíveis, movimentação patética, gráficos... dignos. Uma salada que não salvou o 3DO, mas por acaso salvaria a Naughty Dog.

E não pense "não tem qualquer relação, foi há muito tempo". Não fosse pela insistência em produzir essa tranqueira e jamais teriam se aproximado da Sony. "Se tivéssemos optado pela exclusividade da 3DO Company [em vez de publicá-lo pela Universal, como aconteceu], poderia ter sido o fim da Naughty Dog" — diz Jason Rubin.

Brincando de criar games

A Naughty Dog foi fundada por Rubin e Andy Gavin. Colegas de escola, viviam conversando no fundo da sala sobre programação e game design antes de sonhar que isso seria uma profissão. Rubin, bom artista "para quem tinha 12 anos", fazia projetos de jogo bonitos mas com péssimo código. Gavin era o contrário; o encontro foi a chance de unir os talentos.

Antes de Way of the Warrior, haviam feito uns poucos games de vendagem insignificante, entre eles Ski Crazed (lançado para Apple II quando tinham 15 anos), Dream Zone e  Keef the Thief. O último, publicado pela Electronic Arts, "se saiu muito melhor e vendeu cerca de 50 mil cópias em várias máquinas", lembrou Gavin.

Em Rings of Power, Rubin e Gavin mandaram um easter egg em que a garota da introdução aparece com os seios à mostra. "Nosso plano era fazer o que a gente achava legal".

Planejamento? Plano de negócios? "Nosso plano de negócio era fazer o que achávamos que seria legal. Lucro? O que a gente conseguisse. Gastos? Pergunte aos nossos pais, eles pagavam a energia elétrica e aluguel", disse Rubin lembrando como as coisas eram pouco após a publicação de Ski Crazed. O primeiro produto de destaque seria Rings of Power, primeiro também da Naughty Dog para consoles: o Mega Drive. "Era muito sofisticado e complexo", explicou Gavin, "e levou cerca de dois anos e meio para ser produzido". Rubin crava um período pouco maior: três anos. O lote inicial esgotou.

Lote inicial e único. Segundo Rubin, apesar do sucesso, a EA não fez reposição de cartuchos no mercado. Haviam acabado de lançar John Madden no Mega Drive e vendiam como pão quente; não queriam fabricar nada além daquilo. Rings of Power se tornou um dos jogos usados mais procurados. "Houve várias razões para isso, desde o custo dos cartuchos x outros jogos (ele usava mais memória e espaço de armazenamento mais caro), nossos royalties (bem altos), até competição interna pelo espaço limitado na fabricação".

Aborrecidos, tiraram uma pausa para repensar o que fariam. Após oito meses, a dupla recebeu uma ligação de Trip Hawkins falando sobre o 3DO. "Ele é um homem persuasivo, mas talvez o argumento mais forte pelo sistema tenha sido o console baseado em disco com muita memória e discos que podiam estar prontos para produção", lembrou Rubin. "Não seríamos mais ferrados por decisões baseadas na fabricação de cartuchos!".

A decisão foi rápida. Hawkins forneceu o kit de desenvolvimento e os dois começaram a trabalhar, ainda sem publicadora. "Financiamos o jogo do nosso bolso", disse Rubin, afirmando que Way of the Warrior marcou "nossa saída de fazer jogos como um hobby para a entrada no desenvolvimento de games como profissão". Parte do dinheiro investido foi o que haviam ganho com Rings of Power.

Andy Gavin e Jason Rubin no início dos anos 90.

Na época causava preocupação o tempo de acesso aos discos, que foi uma das barreiras que a equipe precisaria enfrentar. "O 3DO tinha 3 megabytes de RAM, o que era maior que o maior cartucho do SNES", explica Gavin. "O CD em si tinha 600 Mb. Havia detalhes técnicos que precisavam ser endereçados ao programar para o 3DO. Você precisava fazer um uso esperto de design para reduzir e eliminar o tempo de carregamento."

Em Way of the Warrior, todo o programa foi feito em "carregamento assíncrono", segundo Gavin. "O carregamento é feito enquanto você joga, antecipando o que será necessário estar carregado". Assim conseguiram que o jogo tenha telas de load muito curtas.

Do it yourself

Fazer um jogo de luta foi decisão fácil. Parecia um alívio depois do complicado RPG do Mega Drive. "Não nos tomou os três anos que jogos anteriores levaram", disse Rubin. "RPGs são maiores e exigem muito mais tempo e esforço". Segundo Gavin, "todos os recursos foram colocados em dois caracteres na tela. Eles são grandes. Eles têm muita animação e muitos movimentos em relação a outros jogos da época".

Fatalidades usando o cenário - tal como no The Pit de Mortal Kombat - também estavam em Way of the Warrior.

A inspiração maior teria sido filmes de kung fu que os criadores viram na adolescência, mas claro que o DNA está na cara, não dá pra negar a "paternidade". Não que eles neguem. "Em alguns níveis, é uma espécie de imitação um pouco mais cômica de Mortal Kombat. É bem exagerado ", admitiria Gavin anos depois.

O desenvolvimento levou um ano, com um custo estimado em 100 mil dólares. O primeiro passo foi reaproximar a dupla — durante a produção de Rings of Power, Gavin estudava na Pennsylvania e Rubin em Michigan (mais de mil quilômetros), então a comunicação era só via modem. Gavin estava terminando a graduação no MIT e a solução foi a dupla alugar um apartamento em Boston, onde morariam e tocariam o projeto.

Tudo foi produzido da forma mais barata possível, no verdadeiro espírito do "faça você mesmo" — e totalmente avesso ao que se esperaria de uma produção importante de um console da nova geração. A recém-criada Naughty Dog estava em péssima forma financeira e amigos dos produtores foram chamados para fazer os personagens. Cada um recebeu no máximo US$25 pelo trabalho. "As pessoas que controlamos nesse jogo eram todas amigas e familiares", disse Rubin. "Não podíamos pagar ninguém".

As vozes de um dos personagens (Shaky Jake) são do Dr. Rodney Brooks, chefe do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT e um dos professores de Gavin no MIT, e "provavelmente é o principal cientista de robótica no mundo". Outro era um amigo chamado Vijay Pande, que tinha doutorado em biologia molecular no MIT e pós-doutorado em Berkeley. "Ele é o personagem secreto da fralda", contou Gavin com um sorriso se referindo a Gulab Jamun. O próprio Rubin fez dois personagens: os mascarados The Ninja e Konotori, além das vozes de High Abbot e do narrador.

Alguns eram "mais ou menos" profissionais, como a atriz Tamara Genest, que fez Nikki Chan — tinha no currículo uma ponta em The Switch, filme de 1993 para TV, e depois faria outra participação em Sleeping with the Devil, de 1997. David Liu, creditado pela voz de Dragon, aparece como assistente de produção na obscura comédia romântica sino-americana Anita Ho. Então estudante de Harvard e jogador de elite de Street Fighter II, Liu foi também o principal testador do jogo, e depois seguiria na indústria de games.

E não passa disso.

Parece um elenco de humorístico pastelão estilo Hermes e Renato, mas são os lutadores de Way of the Warrior.

O estúdio foi o apartamento alugado. Até aí tudo bem, desde que fosse um espaço adequado, o que não era o caso. Era tão pequeno que, para fazer boas tomadas dos frames dos lutadores, tinham que abrir a porta e posicionar a câmera no corredor — sem ter lentes adequadas, afastar a câmera era o que restava. Vizinhos de Rubin (a maioria professores e estudantes do MIT e Harvard) não entendiam o motivo daquelas pessoas fantasiadas circulando pelo corredor, pensando até que ele gravava filmes pornográficos.

Gavin ficava até altas horas da noite trabalhando no processamento de áudio. Os dois fizeram várias das vozes e gritos do jogo, que vazavam do apartamento e incomodavam vizinhos que queriam dormir.

Sem dinheiro para um sistema completo de captura em chroma key, colaram uma grande folha amarela na parede do apartamento. Ela também vedava a única janela do minúsculo imóvel. Os trajes seguiram o esquema de "forte restrição orçamentária": como num desfile de carnaval, usaram de tudo nas fantasias, desde fronhas e lençóis até partes de embalagem de McLanche Feliz. Vijay usou uma fronha como fralda e um lençol como turbante. A joia na frente do turbante era "de uma fantasia de Jasmine para meninas. Como a Jasmine, de Aladdin", revelou Gavin. O traje mais caro, segundo a produtora, custou US$150.

O que deveria ser fácil acabou mais complicado do que imaginavam. Pela primeira vez, e apesar do aperto financeiro, foram obrigados a contratar pessoal para ajudar. Foi também a última vez em que a dupla fez quase tudo por conta própria. A indústria estava mudando.

"Chegou rapidamente ao ponto em que, pela primeira vez, duas pessoas não conseguiram fazer o jogo inteiro", disse Rubin. Como não usaram um fundo azul, foi necessário recortar cuidadosamente os personagens das filmagens que fizeram, um trabalho árduo e terrivelmente chato, a nível de pixel. "Então saímos e procuramos através de anúncios pessoas que fizessem isso", continuou Rubin. "Tivemos pessoas que entraram para fazer a parte tediosa".

stand 3do ces summer 1994
Stand da 3DO na Summer CES de 1994. Way of the Warrior pode ser visto em exibição neste vídeo, a partir dos 6:13.

Durante a jornada, os dois ficaram falidos. Em certo ponto, Rubin lembra de ter US$6,37 na conta bancária, e que se entupia de macarrão instantâneo. Gavin tinha só o dinheiro de uma bolsa anual de US$14 mil para concluir seu curso, e para sobreviver durante a produção, tiveram que vender itens pessoais como um aparelho de som. O apartamento estava absolutamente imundo, cheio de pelos de cachorro (a cadela de Rubin vivia com eles) e mal tinham condições de fazer manutenção no banheiro.

"Com os últimos US$10 mil que tínhamos, de verdade — embora não tenha sido o último gasto, mas foi o nosso último dinheiro — compramos uma área de 1 m² no estande da 3DO na CES", lembrou Rubin. E ali garantiriam não só o lançamento do jogo, como o futuro da Naughty Dog.

Clone errado no lugar certo

É inegável que, apesar de acertos pontuais, Way of the Warrior era uma cópia deslavada de Mortal Kombat. Segundo descrição do próprio Rubin, que lembra a exposição do game na CES:

Nosso "estande" na verdade consistia de uma TV num canto do estande maior do 3DO. Acabou que atraímos a atenção do mercado com nosso jogo. Publicadores tinham colocado seu desenvolvedores nos títulos que chamavam de "multimídia". Basicamente, títulos multimídia eram um monte de porcarias mal filmadas, vídeos interativos e esquisitices semi-game. Eles perceberam muito tarde que aquelas coisas não venderiam e precisavam publicar jogos de verdade.

Infelizmente para eles, havia ali só um game perto de estar completo: nosso Way of the Warrior, que era uma imitação mais ou menos decente de Mortal Kombat. Então surgiu uma guerra de lances por Way of the Warrior, e por uma variedade de razões, a Universal Interactive Studios venceu.

Três publicadoras "brigaram" pelo jogo: a 3DO Company, a Universal Studios e a Crystal Dynamics. "Chegamos mais perto da Crystal Dynamics", lembrou Rubin, "mas havia uma divisão dentro do empresa. Metade das pessoas adorou o jogo e queria publicá-lo. A outra metade queria comprá-lo e usar a engine fazer Samurai Shodown, do qual tinham adquirido os direitos".

O principal interessado no começo foi Skip Paul, ex-presidente da divisão de arcades da Atari e chefe da Universal Interactive Studios, que era uma divisão nova da mega corporação Universal. Hawkins tentou de toda forma convencê-los a ceder os direitos para a 3DO. "Mas a Universal nos ofereceu a chance de fazer e financiar mais jogos, e nos daria liberdade criativa, e isso soou muito mais legal", explicou Rubin.

arcade way of the warrior
Versão para arcade chegou a ter protótipo pela American Laser Games, mas não saiu oficialmente. Não que o mundo tenha perdido muito.

Uma versão para arcade chegou a entrar na fase de testes pela American Laser Games usando o hardware do próprio 3DO, mas foi cancelado. E imagine que Way of the Warrior chegou a ter um port para PlayStation planejado. Felizmente para todos, a ideia saiu de cena quando o desenvolvimento de Crash Bandicoot começou a tomar forma.

Mais estranho ainda é que, apesar do resultado medíocre e de gosto duvidoso, Way of the Warrior teve tanto alarde na imprensa que convenceu os donos de 3DO, carentes de jogos, a investir nele. Pelo menos segundo a Naughty Dog, o jogo vendeu mais que a nada má versão de Samurai Shodown.

Caminhos misteriosos

De qualquer forma, se você é fã da Naughty Dog, de Crash Bandicoot, Uncharted, The Last of Us e tudo que veio e virá, agradeça a Way of the Warrior existir na hora certa e no lugar certo.

"Além disso, eu amava Los Angeles", disse Rubin justificando a decisão de publicar o jogo pela Universal. "Foi, no final, um acordo melhor. Para nós, foi um dos grandes pontos de decisão. Se tivéssemos optado pela 3DO como exclusivos, poderia ter sido o fim da Naughty Dog". Naufragando cerca de um ano depois com não mais que três milhões de consoles vendidos, o 32-bit teria afundado a jovem desenvolvedora junto; estaria sem parceiros, horizontes e principalmente dinheiro. Por outro lado, a Universal deu todo o suporte que o talento dos rapazes precisava para deslanchar.

"Way of the Warrior saiu. Era o que era", Rubin foi honesto quanto ao resultado. "Mas a Universal nos disse 'escolham uma plataforma, escolhem uma IP, escolham um tipo de jogo, e nós financiamos".

E assim dissemos olá à Crash. E depois  a Nate, Jak & Daxter, Ellie, Joel, etc...

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Se você tem atração por bizarrices, experimente também Kasumi Ninja, pérola no mesmo naipe mas para o (ainda mais fracassado) Jaguar. Foram tempos muito loucos.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

4 COMENTÁRIOS

  1. Bons tempos posso dizer!!!! Tudo naquele tempo era novidade e o vídeo game 3DO e o Jaguar da Atari tinha muitas propagandas e promessas. A evolução precisava e precisa ser evoluída, essa é a verdade. Com o tempo se vc perceber, essa fase anos 90 ainda serve de base para muitos jogos de hoje em dia. valeu!!!!

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