Fazer coisas com pressa raramente é boa ideia. Na produção de games, são vários os exemplos de como cortar etapas deu em catástrofes. Bem recente, vimos o que a CD Projekt Red passou com Cyberpunk 2077, entregue visivelmente inacabado para consoles da geração anterior. Em 2016, No Man's Sky viveu o mesmo inferno – revertido a duras penas e com muitas atualizações.
No fim das contas, a indústria se move, como todos os setores numa economia capitalista, por lucros e prazos, e não pelo ritmo de artistas, programadores e escritores. Com acionistas azucrinando presidentes, que azucrinam diretores, que azucrinam chefes de setor, várias ideias deixam de ser exploradas ou acabam no mercado sem polimento adequado.
Alguns profissionais não aceitam esse tipo de padrão. Shigeru Miyamoto é um – como disse certa vez, "um jogo apressado será ruim para sempre". Yu Suzuki também; capaz de contar uma história por mais de 20 anos e não aceitar pressões para encerrá-la antes do que planejou, mesmo sob risco de jamais conclui-la. São caras que não aceitam entregar criações como se fosse um fast-food.
Peter Molyneux é desse time.
Apesar de ter ficado com a fama – justa, temos que admitir – de fazer promessas irrealizáveis, o designer britânico nunca foi muito adepto de prazos apertados e ideias econômicas. Segundo Jez San, o método de Molyneux era "um jogo não está pronto até estar pronto e não posso dizer quando será isso. E se você me fizer responder, vou te dar um palpite errado e perder o prazo em alguns anos".
Pré-histórico
Na infância da indústria de games, um ritmo mais flexível podia ser aceitável. Isso foi mudando conforme videogames viravam uma potência entre gigantes do entretenimento como o cinema. Simplesmente não dava pra deixar uma equipe produzindo um jogo por anos, a não ser que o retorno fosse garantido mais adiante, caso de megaproduções como GTA.
Quando Molyneux falou pela primeira vez em B.C., em 2002, já parecia algo espetacular. O tipo de jogo tão inovador e rico que seguiria a cartilha da qualidade acima do prazo. De publicadoras colocando o dinheiro que fosse preciso. A IGN falava de "um mundo vivo, que respira" e "nível absurdo de detalhes". No ano seguinte, a mídia ficou embasbacada com a demo exibida em vídeo na E3.
Previsto para o Xbox no início de 2004, seria uma nova experiência de interatividade, em que elementos do mundo aberto reagiriam completamente às ações do jogador.
Como assim? B.C. retrataria a vida de humanos na pré-história. Mas não é tão simples, afinal era de Molyneux... Tudo seria regido por uma complexa cadeia alimentar liderada por dinossauros. O objetivo: evoluir sua tribo humana em meios aos perigos naturais e aventuras do desenvolvimento, explorando um continente. Até insetos fariam parte, com formigas capazes de se alimentar de restos de animais.
A interação seria não só entre jogador-humano e ambiente, mas também inversa e entre os próprios "NPCs". Numa das cenas divulgadas, um pterodátilo voa na direção do humano como se fosse atacá-lo, mas desiste na última hora. Molyneux explicou que isso seria controlado por uma avançada inteligência artificial: como o humano era uma presa muito grande, o animal desistiria. O mesmo poderia não acontecer com animais ou talvez humanos menores.
Não seria uma guerra só de humanos e dinos. Como uma grande cadeia alimentar, ela seria completa com várias formas de vida, desde múltiplos vegetais, passando por pequenos animais como ratos e chegando aos grandes predadores. Crocodilos em especial apareciam com destaque nas cenas divulgadas.
Da lama ao caos
O jogador seria algo como um deus do grupo humano, que começaria totalmente selvagem e inapto. Não haveria protagonista; o controle seria alternado entre qualquer membro da tribo. A visão em terceira pessoa mudaria durante combates, ficando acima do ombro do personagem controlado. Como num típico jogo de estratégia, o jogador teria que tomar decisões pensando no benefício da comunidade e seu crescimento. Enquanto uns cuidariam da alimentação, os mais velhos poderiam ensinar os mais novos a criar e usar armas ou caçar.
Inúmeras atividades estariam disponíveis, como formar grupos de caça e coleta, procurar ovos, mergulhar, fazer rituais, etc. Com o progresso, em estágios mais avançados eles desenvolveriam linguagem, criariam armas elaboradas como lanças de metal, montariam grandes aldeias, etc.
As atividades seriam em tempo real. Em vez de só mostrar uma animação repetida com uma barra de completitude, comum em simuladores, o jogador veria os personagens de fato realizando as ações. Quer colocar alguém para rachar lenha? Clique no personagem, na árvore e ele entenderia que você quer que ele corte a árvore.
Ou corte você mesmo. Ou bote fogo na árvore. Ou suba nela para apanhar frutas e depois corte.
Possibilidades complexas, mas a interface deveria ser simples e intuitiva. Como descreveu a IGN, imagine três personagens perto de uma fogueira que alguém acendeu antes. O jogador marcaria os três e clicaria em "Go", e eles passariam a interagir entre si, contando histórias ou falando sobre o acampamento – se tivessem aprendido a usar linguagem, com palavras.
Com vários humanos próximos, um sistema de aprendizado entraria em ação: ao ver um membro atirar uma pedra no inimigo ou acender uma fogueira, os outros poderiam aprender a fazer aquilo também.
Interações com o ambiente também teriam papel vital. Seria possível, por exemplo, forçar uma pedra a rolar um barranco para matar animais ou inimigos, ou descobrir plantas venenosas para criar armas. Se o jogador destruísse um tipo de vegetação base de alimento de alguma espécie, isso teria consequências como o desaparecimento daquela espécie na região.
Nem tudo tentaria ser realista. Os dinossauros teriam tamanho exagerado com fins dramáticos. O enorme tiranossauro que aparece no vídeo da E3 seria, segundo Molyneux, um filhote. Em estágios avançados, o jogador levaria sua tribo para construir uma aldeia num vale – que se revelaria como a pegada de um dinossauro com proporções que fariam Godzilla parecer uma lagartixa. O maior inimigo dos humanos, no entanto, não seria alguma criatura gigante tentando comê-los, mas os agressivos Simians.
Além de grandioso e inovador, B.C. prometia ser sangrento e sem filtros. Molyneux chegou a falar numa "piscina de sangue" quando um animal grande como um dinossauro fosse morto. As batalhas entre tribos e de tribos contra feras também não teriam suavização. A demo mostra jorros vermelhos ao golpear inimigos e humanos sendo devorados.
Até que na E3...
Molyneux descrevia B.C. em 2002 como um jogo sobre "salvar a humanidade", mas além do conceito geral, não teve maiores detalhes na E3 daquele ano.
É literalmente sobre salvar a humanidade. Quando você os descobre, eles são primitivos e ridículos. Você pensa consigo mesmo "Como essas pessoas se tornarão a humanidade?". Eles estão brincando na lama, eles não sabem de onde virá a próxima refeição, eles certamente não têm qualquer tecnologia e só pelo caminho você os torna aptos a interagir com o mundo, você pode fazê-los ter tecnologia. É ao ajudá-los que você consegue guiá-los pelas situações. Seu objetivo geral é salvar a humanidade. Você faz isso ao reunir uma tribo de pessoas.
O projeto estava num estágio muito inicial. O estúdio Lionhead tinha outras preocupações como o recém-lançado Black & White (2001) e o futuro Fable (2004). A muito promissora demo seria exibida só no ano seguinte.
E foi onde começou o problema. Por mais antagônico que seja, aquela exibição, somadas às típicas promessas hiperbólicas / otimistas de Molyneux, criaram um hype sobre B.C. Não era isso que eles queriam?
"O que acontecia era que a E3 estava se tornando tão incrivelmente dominante que os times não passavam mais algumas semanas produzindo uma demo, passavam alguns meses produzindo uma demo", disse Molyneux em entrevista de 2017.
Mostrar resultado se tornou algo tão importante que era preciso um trabalho específico e forte só para as demonstrações. Caso contrário, o futuro do projeto poderia ser comprometido. "A verdade é que... isto se torna algo vivo por si e essa coisa viva pode, na melhor hipótese, ser separada do desenvolvimento principal do jogo. Na pior, infecta – infecta desastrosamente o jogo"
Molyneux explicou que quando cabe ao time de desenvolvimento principal se apressar em refinar uma demo, o código e a própria estrutura do projeto "começam a ficar muito, muito bagunçados". Teria sido o caso de B.C.
B.C. foi uma demo excelente. Uma demo realmente excelente. Mas o que aconteceu e acho que principalmente porque o time precisava de um pouco mais de orientação, é que aquela demo na verdade destruiu qualquer outra demo que estava lá (no evento). Foi uma demonstração ótima.
Extinto
B.C. vinha sendo produzido pela Lionhead em parceria com o estúdio-satélite Intrepid Games. Evoluía ao mesmo tempo que Fable, então também planejado para o Xbox. Como contaria mais tarde Joe Rider, um dos produtores de B.C., Fable estava cerca de seis meses na frente no desenvolvimento.
É difícil dizer se a questão da E3 de fato pesou tanto quanto disse Molyneux – a produção talvez fosse muito pretensiosa para ser realizável em tempo hábil e a Sony deu um empurrão nisso.
"A Sony lançou o PlayStation 3 quase um ano antes do agendado e com isso, a Microsoft adiantou a janela de lançamento do 360 em nove meses", lembrou Rider. "Era improvável que Fable e B.C. fossem ambos concluídos com os recursos disponíveis".
A Lionhead vinha sofrendo pressão da mantenedora Microsoft para que algum dos projetos da casa fosse concluído. Fable passava pelos mesmos problemas, mas com os fundos que recebiam, só tinham condição de reverter a situação de um deles.
"Poderíamos consertar ambos com o tempo e dinheiro certos, mas a Microsoft já vinha chiando e quando disseram 'Acho que vocês devem focar em um', isso efetivamente matou B.C.", explicou o criador.
Segundo Rider, "uma decisão executiva foi feita para colocar tudo em Fable em detrimento de B.C. porque ambos os produtos não podiam ser feitos com os recursos disponíveis no agora reduzido período de tempo". E assim B.C. foi extinto antes de nascer, pelo menos para o grande público. Também segundo Rider, o jogo estava cerca de 75% completo.
Outro problema era a falta de coordenação entre os estúdios. Lionhead e Intrepid trabalhavam sem muita sintonia. "Olhando para trás, uma das decisões ruins foi não compartilhar tecnologia entre os estúdios", contou Rider. "Ambos estavam desenvolvendo suas tecnologias proprietárias – shaders, engines, sistemas de IA – e embora os jogos fossem muito diferentes, acho que claramente teríamos ido melhor na ocasião sendo mais cooperativos".
No anúncio do cancelamento (que então era uma suspensão), Molyneux disse que gostaria de retomar o projeto em momento mais oportuno. Mas com tanto tempo passado, é extremamente improvável que aconteça. Funcionários da Intrepid chegaram a trabalhar em conceitos para B.C. no Xbox 360, mas nunca foram adiante porque a Lionhead e Molyneux já estavam ocupados com Fable 2.
Além disso, a maioria do time original foi para a Media Molecule (de LittleBigPlanet), estúdio sob o teto da Sony – ou seja, o trabalho teria que ser feito por pessoal sem qualquer conhecimento do material original. Uma longa jornada.
Apesar de não ter outra saída, cancelar um potencial candidato a mais relevante jogo da geração foi uma decisão difícil, lamentou Molyneux. "A ideia era realmente legal. Aposto com você que se Fable tivesse sido preterido e continuássemos com B.C., estaríamos aqui sentados agora falando sobre B.C. 3".