A indústria sabia, no começo dos anos 90, que games 2D estavam com os dias contados. Havia a necessidade real de lidar com a tecnologia surgindo no horizonte, aquela que vinha evoluindo desde experiências quase exclusivas de computadores e arcades, como 3D Monster Maze (1982) e Starglider (1986). Foram pioneiros a seus tempos, esboços do que o futuro reservava: jogos 100% poligonais.
Mas hardware parrudo o bastante era caro, mesmo nos arcades como o Model 1 (1992) da Sega. Pra videogames, então, só em sonho. Como os consoles dominantes — era o começo da 4ª geração — estavam longe de oferecer algo sólido nesse sentido, quem quisesse avançar sobre o terreno teria que tirar leite de pedra e dar ferramentas aos programadores na geração corrente.
A Nintendo entrou nisso por um dos caminhos mais improváveis: justo numa casa com currículo de criações geniais e mentes brilhantes como Miyamoto e Yokoi, veio de um grupo de "fedelhos" britânicos mal saídos da adolescência o que seria o revolucionário chip Super FX.
É assim que Jeremy "Jez" San e Dylan Cuthbert, 24 e 18 anos, começam a história indo do minúsculo escritório da Argonaut, no Reino Unido, para a sala do todo-poderoso Hiroshi Yamauchi, em Quioto, na presença de outros quase 30 dos maiores executivos da gigante japonesa.
Mas foi um pulo de gato, calculado e preciso.
Pequeno e gigante como iguais
A história do Super FX (ou SFX) começa em 1982, quando Jez San, aos 16 anos, funda a Argonaut, a princípio trabalhando com segmentos diversos como sistemas de segurança e consultoria em software.
Mas a paixão de San eram gráficos 3D. "Eu era muito interessado em matemática para geração de imagens 3D, e comecei a trabalhar numa rotina de vetor gráfico usando um Sinclair QL, mas o achei inadequado para o tipo de coisas que queria fazer e aluguei um Apple Mac. Meses depois apareceu o Atari ST e vi que era a máquina ideal para minhas aplicações".
Games dominam o negócio com o desenvolvimento de jogos como Skyline Attack (Commodore 64). O primeiro hit foi Starglider, que vinha sendo burilado desde a fundação da Argonaut; foi um dos primeiros 3D a bombar de verdade, vendendo milhares de cópias para Commodore Amiga e Atari ST. O dinheiro que entrou (cerca de £2 por cópia) permitiu a expansão da empresa, que contratou mais profissionais a partir de 1986.
O rumo não mudou. O tridimensional continuou em pauta, e não satisfeito com as plataformas que tinham em mãos, ele se debruça sobre hardwares da Nintendo, mais especificamente NES e Game Boy. Havia um sistema de proteção para evitar que games de terceiros funcionassem, mas eles descobriram como funcionava e ultrapassaram (leia-se burlaram) a barreira.
San, em entrevista ao Eurogamer, falou detalhadamente sobre o hackeamento da proteção do Game Boy:
"Os games só iniciam se a palavra Nintendo [que desce na tela durante a leitura inicial] estiver na posição certa na ROM. Se alguém quisesse produzir um game sem permissão da Nintendo, teriam que imprimir a palavra na tela sem autorização e estariam assim em posição de sofrer um processo. Descobrimos que com só 1 resistor e 1 capacitor — componentes que não custavam mais que 1 centavo — podíamos bater a proteção. O sistema lê a palavra Nintendo duas vezes: uma para exibi-la na tela e outra para checar se está na posição correta antes de carregar o jogo. Foi um erro fatal, porque na primeira leitura, mudamos a palavra para Argonaut, então nosso nome aparecia na tela. Na segunda checagem, nosso resistor e capacitor entravam em ação e a palavra Nintendo estava lá no lugar certo da memória, e o game carregava perfeitamente".
O que desenvolvedores do mundo todo tentavam, eles haviam conseguido. Sem a menor cerimônia, foram para os EUA em busca de algum peixe grande da Nintendo, para mostrar orgulhosamente o feito — além de um game 3D que já estavam criando no Game Boy, com engine de Cuthbert (mais tarde seria lançado no Japão como X, primeiro game 3D num portátil). Na CES, San aproximou-se do executivo Don James, que ficou boquiaberto não só com o impressionante protótipo, como pelo fácil contorno que deram na proteção.
Tony Harman e Wayne Shirk também viram a demo e o entusiamo do rapaz, que claro, vendeu bem seu peixe, garantindo que havia uma equipe aguardando em Londres, ansiosos por uma parceria com a Nintendo.
Cara-de-pau, loucura, ousadia, quase o cúmulo da ingenuidade achar que a megacorporação se interessaria pelo projeto de uma formiga? Mas deu resultado. Em poucas semanas a Nintendo of America havia contatado o escritório no Japão, e de lá veio o convite para comparecer à sede oriental e discutir o assunto com o staff principal.
Eles queriam não um, mas três games em parceria, e as negociações rapidamente viraram planejamento. Em 1990, numa era pré-internet, sem facilidades como e-mail ou mensageiros instatâneos, a solução foi fixar o possível da Argonaut dentro da Nintendo, onde trabalhariam juntos, quase como iguais.
Concepção do Super FX
Até aquele momento, o foco eram games. A Nintendo queria o máximo de conforto ao trabalhar com estrangeiros, e que eles também tivessem total suporte do time local para um resultado excelente. A comunicação Quioto-Londres era complicada, mas o projeto seguiu.
Krister Wombell, da Argonaut, lembra que "quando me juntei ao projeto, a equipe da Argonaut ainda estava em Londres e muito da comunicação era por fax. Combine isso ao fuso horário de oito ou nove horas, e temos um ambiente não muito bom para desenvolver um game".
O idioma também era um potencial problema, mas acabou não assustando tanto. "Miyamoto, Katsuya Eguchi e Yoichi Yamada falavam inglês melhor do que nosso japonês, então foi a língua escolhida naturalmente", explicou Wombell.
O game esculpido ali era o futuro Star Fox (SNES). Logo nos primeiros encontros criativos, a Nintendo mostrou aos engenheiros da Argonaut o Super Nintendo antes dele chegar às lojas; Miyamoto exibiu até um protótipo de Pilotwings com problemas para a rotação de sprites, que tinham que ser desenhados quadro a quadro.
A Argonaut tinha um protótipo de seu clássico Starglider para NES que foi então portado para o SNES; o resultado, segundo a visão da Nintendo, era perto do melhor que poderia ser feito no 16-bit, que não havia sido projetado para aquilo e sim gráficos 2D.
Foi exatamente onde surgiu a ideia. Cuthbert e San sugeriram que se a Nintendo quisesse um resultado melhor, a Argonaut poderia desenhar um processador especialmente para isso. Eles não tinham experiência em hardware, mas confiantes em si mesmos, San garantiu que daria ao SNES "até 10 vezes mais velocidade no processamento 3D" — mais tarde admitiu que era pura bravata; parecia uma boa meta, mas não sabia se chegariam a esse número de verdade.
Fato é que a Nintendo curtiu a ideia de dar um up no SNES, que ainda não havia sido lançado nos Estados Unidos e poderia até receber o tal chip direto no console. San descreveu a sequência de eventos:
"Eu estava numa sala com Miyamoto-san e [Takehiro] Izushi-san, e outras pessoas da Nintendo como Tony Harman. Mostrei a eles o protótipo de StarFox que tínhamos, inicialmente no NES – codinome "NesGlider" — e poucas semanas depois, num protótipo do SNES. Disse a eles que o jogo seria bom até onde dava, a não ser que nos deixassem desenvolver algum hardware para tornar o SNES melhor em 3D. Incrivelmente, apesar de eu nunca ter feito qualquer hardware antes, eles disseram SIM, e deram muita grana pra coisa acontecer. Contratei um time de experts em design de chips de Cambridge — alguns haviam estado na Sinclair Research antes, e os engenheiros de games 3D e tecnologia da Argonaut trabalharam juntos para criar o primeiro acelerador gráfico 3D e um dos primeiros microprocessadores RISC. Como o hardware do SNES ainda não era bem documentado, fizemos engenharia reversa na máquina e construímos nosso chip para trabalhar com ele (em vez de dentro do SNES, como planejado originalmente, ou fora do SNES em um cartucho)".
Conversar é fácil, agora vinha a parte difícil: colocar o Super FX pra funcionar. Entre os principais talentos do Reino Unido que San agrupou, estava também Ben Cheese — havia trabalhado no projeto abandonado do Konix MultiSystem, mas era um talento inquestionável.
Para evitar um consequente aumento no preço do SNES, ficaram com a opção de incluí-lo só nos cartuchos. Sob o sagaz título de "MARIO", de Mathematical Argonaut Rotation & Input/Output (que a Nintendo não curtiu muito e mudou para Super FX), o chip nasceu de forma inovadora: normalmente vem primeiro o hardware com instruções e recursos, aí os programadores aprendem a tirar o que precisam dele para rodar o software. Nesse caso o software foi desenhado antes, e depois o chip com as instruções para o game rodar perfeitamente otimizado — um acelerador gráfico sob medida.
A Nintendo tinha o time de design a todo vapor, liderado por Miyamoto, enquanto a programação ficava com os caras da Argonaut, tanto ali mesmo em Quioto, quanto os que estavam em Londres.
Choque cultural. A rotina de trabalho do lendário Miya foi surpreendente para os europeus:
"Era incrível ver como ele trabalhava", recorda San. "Ele não projetava o jogo com antecedência, como designers ocidentais fariam; gostava de brincar com as ideias, desenvolvê-las e refiná-las, e principalmente de iterar — muito baseado em tentativa e erro. Era como voar sem instrumentos, por instinto. Às vezes era frustrante, porque não dava para agendar o projeto, não se podia calcular o avanço com base no número de pessoas porque ele não planejava nada de forma muito detalhada. Parecia fazer coisas que sentia serem as certas, ou seja, tinha que haver algo bem desenvolvido antes dele avaliar se era divertido — e então poderia dizer pra mudar isso ou aquilo. Era parecido com o método de trabalho de Peter Molyneux [de Populous, Theme Park e outros]: um game não está pronto até estar pronto e não posso dizer quando será isso, e se você me fizer responder vou te dar um palpite errado e perder o prazo em alguns anos!".
Giles Goddard foi mais longe, classificando os estágios finais como "desesperadores", já que Miyamoto "tinha tendência a jogar tudo pela janela e começar de novo". Cuthbert o coloca como uma de suas inspirações na indústria, mas alguém que não gosta de desvios, direto e objetivo, um tanto diferente da figura quase cômica que cultiva na mídia. "Sua face privada é diferente da pública, e seu estilo de perseguir ideias e cortar fora bobagens é brilhante — internamente ele é um tipo de Steve Jobs um pouco mais amigável, mas igualmente incisivo".
O resultado do Super FX hoje parece banal, mas para a época, foi estrondoso. Segundo San, sua promessa inicial de 10 vezes foi superada com sobra. "Conseguimos coisas até 40 vezes mais rápidas [que o hardware do SNES faria sozinho], o que foi incrível. Em alguns aspectos — como matemática 3D — ele era até cem vezes mais rápido. O Super FX não foi só capaz de matemática 3D e gráficos vetoriais, mas também de rotação e escala de sprites, algo que a Nintendo queria muito para seus próprios games, como Super Mario World 2: Yoshi's Island".
O Super FX teve duas versões, que diferiram no clock interno (10,7 MHz no primeiro e 21 no segundo), encapsulamento e pinagem. Por usar pinos do cartucho incomuns em outros games, alguns adaptadores anteriores, como o Game Genie, não são compatíveis com ele. O inicial teve o nome de projeto MARIO gravado no chip, sendo facilmente reconhecido.
Sem dúvida o mais famoso lançamento usando a tecnologia da Argonaut foi Star Fox, que cresceu ao ponto de ser um dos maiores clássicos do Super Nintendo e da própria Nintendo.
O SFX foi usado em 5 games e seu redesign, SFX 2, em apenas 3. Outros foram cancelados, como FX Fighter e até o aguardado Star Fox 2, que sucumbiu à chegada do Nintendo 64, decretando o fim da aventura tecnológica.
Infelizmente, não sem alguns traumas.
Final amargo
A parceria foi boa para ambas as partes, mas segundo San, um pouco menos para eles, que viram-se "presos" a um longo contrato sem poder trabalhar com outras companhias ou projetos paralelos:
"O acordo de 3 games com a Nintendo nos garantiu trabalho por anos. Crescemos nesse período, mas havia uma cláusula de exclusividade, então era como se a Nintendo nos controlasse. Tivemos o benefício de ser a única companhia estrangeira a trabalhar com eles durante um tempo, e tínhamos a cobertura de gastos, mais pagamento de direitos autorais. Nos diziam para continuarmos assim, pequenos e só com eles, mas não pagavam tanto quanto para outros parceiros. Nosso acordo era de direito autoral baseado em vendas. Quando quisemos sair e fazer outros games, não nos permitiram até o fim do contrato".
O fim foi decretado quando a Argonaut mostrava interesse em relações mais sólidas: estavam desenvolvendo um game 3D de plataforma, com Yoshi (muito antes de Super Mario 64), mas a Nintendo não permitiu que a "parceira" colocasse a mão em seus mascotes. Depois o jogo foi concluído e lançado para PC, PlayStation e Saturn como Croc: Legend of the Gobbos; quem o conhece sabe da nítida semelhança estética com o mundo de Mario / Yoshi, desde transições de tela, inimigos, cenários e o dinossaurinho verde.
San garante que Super Mario 64 "tomou emprestado" elementos de seu protótipo de Croc sem autorização, assim como partes do código que tinham escrito para Star Fox 2. E mais: que a Argonaut foi usada e depois de transferir o conhecimento, sumariamente abandonada.
"Miyamoto-san passou a trabalhar em Mario 64, que tinha a aparência de nosso game com Yoshi — mas com o Mario, claro — e foi colocado no mercado 1 ano antes do Croc. Ele falou comigo num evento mais tarde e desculpou-se por não ter feito o game com Yoshi e nos agradeceu pela ideia do jogo 3D de plataformas. Também disse que teríamos lucro suficiente de nosso acordo existente para compensar isso. Aquilo me pareceu vazio, pois penso que a Nintendo terminou o acordo sem cumpri-lo totalmente. Eles engavetaram Star Fox 2 mesmo concluído e usaram muito de nosso código em Star Fox 64 sem nos pagar 1 centavo.
Também nos tiraram alguns dos melhores programadores — Dylan, Giles e Krister — algo inevitável já que eles passaram tanto tempo no Japão que mal iam pra casa. Nós os ensinamos a programar games 3D e deixamos um legado permanente na qualificação para produzir tais jogos. Não estou sendo amargo, mas sinto que a Argonaut foi usada e depois descartada pela Nintendo. Também sinto que nos subestimaram; poderíamos ter feito muito mais. Fizemos um sistema de realidade virtual para eles chamado Super Visor que teria sido sensacional, mas engavetaram nosso projeto — que era colorido, tinha rastreamento de movimento de cabeça e texture mapping 3D — para lançar o condenado Virtual Boy no lugar".
Apesar do final problemático (incrível o histórico de brigas, mágoas e processos entre Nintendo e parceiros, não?), a relação gerou games que foram o primeiro contato com o 3D pra muita gente, e mostraram que com criatividade, consoles daquela geração podiam ir longe. Não fosse pela aproximação de PlayStation, Nintendo 64 e Saturn, talvez viessem mais clássicos mesclando o velho e bom 2D com polígonos — que não passavam de algumas dezenas de milhares por segundo, contra milhões hoje — mas uma bela adição ao mundo "chato" que conhecíamos.
Fontes: Eurogamer, The Armchair Empire, Wikipedia, NintendoLife, CPCRulez
Imagens: Lusheeta, Artikbot
Bons tempos de Star fox!!!!época boa!!!!valeu
A Nintendo sempre teve cara de quem é filha da ...
Isso é o tipo de história que mancha e muito o cúrriculo de uma companhia. Mostram o quanto o dinheiro e o ego são mais importantes para a Big N do que a arte de jogar...
Clony também é.
Que qualidade de texto... poderia fazer um canal no YouTube. Se tive, mande o link!!! Tem assuntos aqui no site que eu desconheço, jamais foram abordados em canais de games no YouTube.
PARABÉNS!!!
Olá Daniel, seus posts sempre me impressionam pela qualidade da escrita e das informações técnicas neles contidas. Essa que Croc seria o Yoshi 3D me pegou legal, vivi intensamente os anos (1987 ... 1999) procurava saber de todas as informações gamer possíveis, claro que, em época pré internet as coisas eram mais difíceis.
O fato do pessoal da Argonaut terem sidos passados pra trás pela Nintendo, se isso for fato verídico mesmo, achei uma baita sacanagem por parte da Big N, embora no mundo dos negócios, cada um quer só pra si mesmo.
Creio que Star Fox e Yoshi's Island foram os únicos games bons com o chip Super FX. Aquele Stunt Race FX de carros é horrível (Não que o VR do Mega Drive tenha ficado .... minha nossa, como ficou bom esse jogo, mas ....)
Excelente texto, rico e envolvente. Embora não comente em todos os posts, tenha certeza que os leio com o maior prazer.
Olha, acho bem possível sim que tenham dado aquela pernada na Argonaut, mas o mundo corporativo é assim, tubarão comendo tubarão (no bom sentido, ou seria mau?). Concordo sobre os games do SFX, especialmente o Yoshi's Island é uma lindeza, exuberante mesmo. Mas discordo do Virtua Racing, HEREGE, ficou lindão sim HUEHAUEHAUEHAU
Obrigado pelas visitas e comentários, são sempre bacanas.
Uau, que história incrível! Parabéns pelo texto, extremamente bem escrito!
Obrigado! Grande história mesmo, acho que daria um filme ou curta-metragem sobre os jovens britânicos no Oriente.