Quando a Don't Nod anunciou Lost Records: Bloom & Rage, muita gente teve esperança de algo grande chegando. O estúdio criador da série Life is Strange, sobre a qual perdeu o controle há anos, fez alguns dos melhores jogos daquela franquia, desnorteada e com lançamentos de qualidade errática desde que ficou nas mãos da Deck Nine. Então, era normal a expectativa por algo novo e quem sabe, com o mesmo impacto nascer.
Mas pelo que vi do capítulo inicial, chamado de Tape 1 - Bloom, B&R não chegará tão longe, apesar de algum potencial. Ele tem bons momentos, mas nenhum se aproxima do trabalho original do estúdio e sim, infelizmente para eles, as comparações serão inevitáveis.

Não que devam se importar, já que Bloom & Rage, no fundo, é uma reexploração da jogabilidade tradicional de jogos como Life is Strange, algo como uma tentativa de retomar as rédeas do gênero, mas com limitações.
Clube dos 27
A trama corre por duas linhas do tempo. Em 1995, as meninas na faixa dos 16 anos se conhecem, têm algumas aventuras juntas e trombam com um mistério — que as leva a prometer nunca mais se encontrarem. A promessa é quebrada em 2022, quando já quarentonas, três das quatro se reúnem após receberem um críptico pacote no estilo "Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado". O que elas fizeram? Fizeram alguma coisa? Ninguém sabe ainda.
Quem conhece o gênero sabe o que esperar. Uma protagonista insegura, a típica história de amadurecimento, descoberta de sexualidade, exploração de ambiente, momentos de reflexão, ambientação com música. Está tudo ali, com uma diferença: se a franquia LiS tinha um fundo sobrenatural mas não tanto de suspense, com foco nos personagens, B&R vai, ao que tudo indica, mais fundo no mistério, embora não o tenha feito por quase todo o episódio.
Há um mistério principal, mas um dos motes são lendas urbanas, com direito a pacto de sangue, espelhos quebrados, Bloody Mary (Loira do Banheiro na versão em português, embora não sejam exatamente a mesma lenda) sendo invocada e alguns jump scares típicos de Bruxa de Blair, e não digo isso como elogio. Um deles funciona durante uma cena de tensão, mas o primeiro só me fez xingar os designers porque veio meio que do nada.

Se nos primeiros Life is Strange, as protagonistas tinham a sexualidade decidida pelo jogador, com a possibilidade de se relacionar com homens, mulheres, ou ninguém, não parece, até o fim da Tape 1, ser bem o caso de Swann e suas amigas. Nas versões jovens, as meninas têm certa aversão — justificada, já que eles parecem existir só para perturbá-las — aos rapazes, e nas versões mais velhas, duas estão envolvidas com outras mulheres, uma delas casada, inclusive.
Decidi que em meu gameplay, Swann não faria avanços sobre nenhuma das amigas, mas ainda assim, alguns diálogos quase a empurravam sobre elas, o que faz pensar na qualidade do resultado das escolhas. Pelo menos no final, ao ver as estatísticas, ela é só amiga de todas, mas tem uma coroa sobre o nome de Kat, como se fosse a melhor amiga, e juro que não tentei fazer isso.
Então, ao que tudo indica, não espere a abertura de Life is Strange porque as opções de romances são e devem continuar sendo apenas entre mulheres. Será uma surpresa se surgir qualquer homem que não seja um vilão na próxima fita, com lançamento previsto para abril.
Clichés
A trama abusa um pouco demais para o meu gosto de clichés para manter a trama do "nós contra o mundo". Os homens são, quase sempre, vilões unidimensionais ou figuras sombrias. Uns são babacas extremos como Corey, outros esquisitos como o barman, ou NPCs bêbados agressivos usando ofensas homofóbicas.
O único macho (acho que é macho) agradável é o gato da protagonista, cujo nome você pode decidir — o meu foi chamado de Shadow e resultou num gato preto, mas se chamá-lo de Pumpkin, ela terá um gato parecido com o Garfield, e se for Snowy, terá um gato branco. Não que faça muita diferença. Mesmo outras mulheres, como Dylan e a mãe de Swann, são pintadas em cores não muito agradáveis, mas não é o padrão.

Muitos elementos também são reutilizados. As borboletas e cervos, figuras clássicas de Life is Strange, estão em Bloom & Rage — cervos aparecem aos montes, mas as que parecem mais importantes são, na verdade, mariposas. Os personagens vão na mesma linha, e de novo, há opções de potenciais romances entre a protagonista, a solitária cinegrafista amadora Swann, e suas novas amigas na pacata Velvet Coven.
Esse é o ponto em que começam os problemas. As interações se desenvolvem um pouco rápido demais, e os mistérios centrais, devagar demais. Em um dia, Swann é uma garota atrapalhada e triste por uma mudança para o Canadá, vítima de bullying por causa da obesidade pela própria mãe. Um belo dia, filmando a cidade para suas memórias, conhece três garotas que idolatram bandas de punk Riot Grrrl, gênero do qual ela não tem a menor ideia, e já pode fazer flertes um tanto ousados com qualquer uma delas. Ou com as três, por que não?
O episódio quase todo é isso: as quatro garotas interagindo no passado, e relembrando o passado no presente. Só na parte final, depois de construir um pouco mais a amizade entre elas (o que acontece em questão de dias e não me convence), é que o jogo começa a focar no que interessa. Tudo é muito acelerado e vai de "será que a garota estranha vem pro ensaio?" para "eu te amo" rápido demais até para adolescentes explodindo de hormônios.
O script não tropeça em gírias estranhas como o estúdio fez no passado, mas algumas frases colocadas na boca de Swann não soam naturais para o personagem, e algumas me fizeram ranger os dentes.

Essa evolução pouco natural da relação, somada a atuação de voz carente de naturalidade da protagonista, não me ajudou a ter grande conexão com os personagens. Swann às vezes soa como o que ela é: uma mulher de mais de trinta tentando ser natural como uma garota insegura de dezesseis. Funciona com algumas, mas não me pareceu o caso da atriz Olivia Lepore.
Ironicamente, as outras três do grupo principal e mesmo "vilões" como Corey e Dylan se saem muito bem. Kat é a mais estranha das três, com muita raiva represada e um segredo revelado no final do episódio. Autumn é a cerebral e responsável, enquanto Nora faz o papel da sonhadora e também a mais disposta a se divertir. Foi a minha favorita das quatro.
Bom visual tem preço
Em visuais, Bloom & Rage tem seu ponto alto, mas a seu preço. Paisagens são bonitas e efeitos ambientais espetaculares, especialmente na floresta. Os modelos de personagens são excelentes, num ponto médio entre cartoon e realismo, pendendo mais para o realismo. Se você tiver uma GPU antiga, sofrerá para ver o jogo em configuração mais alta — a recomendação da Don't Nod para o ajuste máximo é uma RTX 4090.
Não sei como seria o desempenho num modelo um pouco inferior, com os mesmos 24 GB de VRAM, como uma 3090, mas falando em Brasil, pouca gente vai desembolsar quase 15 mil reais pra ver B&R no máximo em gloriosos 60 FPS.
Claro que por experiência e para os prints dessa análise, soquei tudo no máximo com minha pobre 2070 e ela quase morreu engasgada, tomando abaixo de 15 fps quando cenários complexos eram carregados. Também era comum que texturas demorassem para carregar.

O jogo é pesado mesmo e até no médio, não espere folga se ainda está na linha GTX (a recomendação é uma 3060). Também tive um crash no meio de uma partida e perdi uns 10 minutos de avanços.
As animações de cutscenes são ótimas, e as ingame mais acertam do que erram, mas têm momentos menos nobres aqui e ali, e alguns poucos para serem esquecidos, especialmente no gato. Você vai sorrir ao notar que ao apontar a câmera para as amigas, elas param e olham de volta, e parece natural. Objetos interativos são de fatos interativos: você pode pegá-los e movê-los em três dimensões, o que colabora na forma em que os puzzles são apresentados.
Num deles, por exemplo, você precisa abrir o bagageiro de um moto, pegar um objeto e ver a combinação para um cadeado. Em outro, deve pegar fusíveis que estão num lugar, e colocá-los num quadro de energia para ligar a força. O mais complexo envolve a filmadora, que sofre interferência "sobrenatural" dependendo da proximidade com pontos relevantes na solução. Não são complexos como um The Legend of Zelda, o que é positivo para o gênero.
Diálogos e registros
O sistema de diálogos tenta algo diferente. Se em alguns bastará escolher entre opções apresentadas, outros surgem se você esperar um pouco mais, já que a conversa continua rolando de fundo. Se sair clicando logo que aparecem, você perde bifurcações. Elas também são temporizadas, e você ocasionalmente pode optar por não responder.
O que me pareceu mais interessante foram os inicialmente ocultos, revelados ao olhar para outros pontos. Se a protagonista está conversando com alguém, e recebe uma pergunta, podem surgir duas opções ocultas e só uma revelada. Mas se você olhar ao redor, para outras pessoas ou objetos, ganha novas opções. No bar, você só descobre o que pode beber ao olhar os anúncios, por exemplo. Ou entre amigas, pode optar por falar diretamente a uma delas só depois de olhar para ela.

Bloom & Rage tem um sistema razoavelmente complexo de registros feitos por Swann com sua filmadora. Cada cenário tem vários pontos de interesse, em que você pode sacar a câmera e gravar alguns segundos, e de forma geral, funciona como um tipo de diário e também conquistas: encontrar X fotos de paisagens, de animais, etc. Depois, você pode substituir gravações e reorganizar os arquivos numa interface para tal, formando o "documentário" de Swann sobre a cidade.
Admito que apesar de fazer as gravações, não me atraiu muito mexer nelas depois e só em dois momentos, sendo apenas um central da trama, durante a gravação do vídeo clipe, as gravações foram assistidas. Me parece um subutilização da paixão da protagonista.
Cadê a música?
O ponto que achei mais decepcionante foi a trilha sonora de Bloom & Rage. Seu cenário de metade dos anos 1990 é muito prolífico para música, mas a maior parte das faixas licenciada aparece só como referências em texto, o que garante o uso sem pagamento de direito autoral.
Nora, por exemplo, diz que é fã e esteve num show do Nirvana. Num dos cenários, há um grafite sobre Kurt Cobain, mas não há música nem logotipos em qualquer ponto. Na camiseta dela, o logotipo é parecido com o do Nirvana, mas a banda chama Elisium. Você pode encontrar mixtapes na garagem citando bandas importantes do período como Nirvana, Alice in Chains, Living Color, Pantera e até Sepultura, mas as faixas que tocam são poucas, com o jogo se apoiando mais em sua trilha original, que não é nada além de razoável, com boa vontade.
Fiquei agradavelmente surpreso quando começou a tocar Cocteau Twins pela primeira vez, mas numa trama tão focada em música e na nostalgia da década, era muito importante ter uma trilha licenciada mais ampla e impactante.
Segundo a Don't Nod, Lost Tapes deve ser o início de uma franquia, em que Bloom & Rage é a introdução. Pensei nessa primeira parte, Bloom, algumas vezes como um grande bolo de estereótipos, com bons e maus momentos mesclados com Arquivo X (que tem uma referência no quarto de Swann) e ambientação noventista decente. Queria que fosse mais, mas não consegui ver além disso.
Entendo que por ser focado num enredo sobre feminismo punk, eu, um homem sul-americano, que viveu aquela época na mesma idade, a centenas de quilômetros dos Estados Unidos e numa cultura diferente, não sou o público-alvo, mas diria que a recriação de parte da cultura dos anos 90 foi bem executada, com suas fitas cassete, VHS, bandas e jogos — Super Metroid é citado, por exemplo.
Há potencial de crescer e entregar uma segunda parte com menos clichés e mais foco em sua própria história. Os defeitos, contudo, me fazem calcular que essa margem de crescimento, restrita a só mais um episódio — até onde consta, serão duas partes — não bastará para fazer com que a Don't Nod tenha acertado a mão como em 2015, o que seria realmente grandioso e desejado por fãs de Life is Strange, carentes de uma produção de alto nível desde o segundo jogo daquela série.
Positivo
- Gráficos
- Ambientação noventista
Negativo
- Trilha sonora insuficiente
- Estereótipos simplistas
- Narrativa lenta
Jogos citados

Lost Records: Bloom & Rage
WIN, PS5, XBS
Lost Records: Bloom & Rage é um jogo de aventura gráfica produzido pela Don't Nod Montréal. Narra a história de quatro amigas no estado americano do Michigan, que 27 anos após um pacto para manter um segredo, são confrontadas com o recebimento de um pacote misterioso.