Análise: Life is Strange 2 explora faces da humanidade em jornada de crescimento

Lançado em episódios entre 2018 e 2019, Life is Strange 2 é uma sequência que pra mim, escapa da "maldição do segundo disco", que embora nascida na indústria fonográfica, se aplica por extensão a outras mídias.

Segundo a "maldição", a responsabilidade da sequência em manter o nível de uma grande estreia é o que as arruína. Como agradar fãs embriagados por algo de qualidade e querendo mais? Alguns criadores tomam a rota fácil: repetem fórmulas, prolongam histórias esgotadas, dão mais do mesmo. Às vezes vira desastre. Outras vezes funciona com o público mas fracassa com a crítica, ou vice-versa.

A Dontnod não quis a rota fácil. Em vez da posição confortável preguiçosa e arriscada de prolongar a trama de Max e Chloe, apostaram numa nova, no mesmo universo, que se peca em poucos momentos, é mais ousada e grandiosa, com opções mais relevantes e um enredo "pé na estrada" que não deve decepcionar fãs exigentes do gênero.

daniel life is strange 2 memoriabit
Parece Max? Sim mas não, a história e o poder são outros.

Essa avaliação tem spoilers menores de Life is Strange 2, sem revelar finais e destino de personagens.

Ares novos mas nem sempre

Após maratonar os cinco episódios (acabei os dividindo em dois dias), um mérito em minha percepção é como as histórias se tocam de forma sutil, sem que haja exploração apelativa e desnecessária da anterior. Quem jogou ambas as temporadas vai sorrir e até se emocionar ao ver rostos e memórias que se não determinam, sugerem o que rolou após o tornado de Arcadia Bay – ou não, se você escolheu o outro final.

Fãs hardcore do Pricefield acham que esse é o demérito de Life is Strange 2. Eles queriam mais de Max e Chloe, mas a Dontnod pensou bem e disse "Não, temos uma nova história aqui, mas tomem algumas migalhas". Mas qual é?, são boas migalhas.

Mesmo que não tenha jogado Life is Strange, relaxe. Não é um festival de referências aleatórias para desorientá-lo; o jogo funciona de forma independente, entregando a história dos irmãos Sean, de 16 anos, e Daniel Diaz, de 9, mexicanos-americanos inseridos no típico sonho americano do pai, Esteban, imigrante que trabalha como uma mula em uma oficina para cuidar sozinho dos filhos. Eles vivem em Seattle quando um incidente com um vizinho xenofóbico e a polícia desperta um poder em Daniel.

De repente, os irmãos veem a proteção de casa se transformar numa jornada sozinhos na América, perseguidos por algo que não sabem explicar e com o objetivo de fugir para o México e recomeçar, em busca do que restou da família Diaz, no "paraíso" de seu pai: Puerto Lobos.

daniel e sean inicio da jornada life is strange 2 memoriabit
O início de uma jornada.

Por ser ambientada no mesmo universo, referências à trama original aparecem aqui e acolá. Começando na introdução, quando o jogador é perguntado sobre o destino de Arcadia Bay – que chega a ser vista à distância – e terminando com um inesperado encontro com um dos personagens de 2013: David Madsen, o ex-militar que leva uma vida diferente numa comunidade no deserto do Arizona.

Se olhou para os dois e pensou em The Last of Us, não se culpe, você não enlouqueceu. As influências estão lá: a dinâmica entre criança-poderosa-teimosa e adulto-protetor-emburrado (ou quase adulto) que salvam um ao outro pelo caminho, cenários que vão de cidade para floresta e depois neve, até uma referência direta ao jogo da Naughty Dog que você vai cair para trás quando ver e ouvir.

E sim, para alegria de todos, o infalível Hawt-Dawg Man está por toda parte.

Escolhas

Life is Strange 2 reduz o número de mistérios interligados e foca no amadurecimento dos irmãos Diaz. Os únicos "mistérios" são o poder de Daniel, lentamente desenvolvido e controlado enquanto enfrentam os perigos de viver na estrada, e o que a mãe deles, Karen, fez anos antes – algo tão traumático que rompeu as famílias ao ponto de Sean sequer chamá-la de mãe e os avós mal tocarem em seu nome, uma figura quase maldita.

Em todos os finais, o que mais vale é como os irmãos fizeram o caminho, com Sean (ou seja, o jogador) tomando uma rota guiada pela moralidade ou sobrevivência acima do bem-estar dos demais. As decisões do jogador fazem muito mais efeito no desenrolar da história, mudando o comportamento de Daniel e por consequência, como ele usa ou abusa do poder.

life is strange 2 sean e daniel inverno
A relação de proteção e crescimento de Sean e Dean conduz a trama de Life is Strange 2.

O texto de Life is Strange 2 é muito melhor escrito e revisado. Não é salpicado por gírias bizarras e diálogos questionáveis; soa mais natural e crível para um adolescente americano de 2016. É óbvio que os franceses da Dontnod contaram com gente na América, evitando frases improváveis no uso corriqueiro local, como algumas do primeiro jogo.

São abordados assuntos adultos como racismo, xenofobia, violência policial, controle de fronteira, sexualidade, paranormalidade, pobreza, uso recreativo de drogas, cultos religiosos e talvez o tema principal, a liberdade de escolha. Quase todas as decisões tentam se mostrar não como certas ou erradas, mas dependentes da visão do jogador e de como ele quer desenvolver a relação entre Sean e Daniel.

Por exemplo: você pode contar mentiras agradáveis para Daniel, surrupiar itens de uma loja de conveniência num momento de fome e até assaltar o cofre de um traficante para conseguir o dinheiro para a longa jornada. Mas Sean é o irmão mais velho, não só protetor mas também bússola moral do caçula. Suas escolhas pesam nos momentos finais do jogo, quando o poder de Daniel estará evoluído ao ponto de conseguir facilmente destruir e matar quem estiver no caminho da dupla rumo ao México.

Grandes poderes, grandes responsabilidades

O começo é lento, com os protagonistas sozinhos pela maior parte do capítulo inicial, mas a história começa a funcionar, como em qualquer trama de estrada, conforme novos personagens surgem para moldar e serem moldados. Alguns se desenvolvem muito depressa, como Charles (aquele de The Awesome Adventures of Captain Spirit), que vai de desconfiado a confidente de Sean um pouco rápido demais pro meu gosto.

A maioria, mesmo que você adorasse vê-los por mais tempo, desaparecem, como a melhor amiga Lyla e o blogueiro ativista Brody. Cruel.

life is strange 2 sean e clair memoriabit
Sean e Daniel não podem se apegar a nenhum lugar pois estão sempre na estrada, sempre rumo à prometida segurança do México de seu pai.

No fim das contas, a história é a da viagem e amadurecimento de Sean e Daniel. Não há tornados, pessoas desaparecidas (até têm, mas nada parecido com a Rachel Amber de Life is Strange), vilões surpreendentes ou amores duradouros.

Daniel, apesar de imaturo (às vezes teimoso e difícil), acaba responsável por salvar Sean e aliados em vários momentos. Ao mesmo tempo, se mostra vulnerável ao ponto de ser manipulado por personagens com interesses menos nobres. Por quase todo o quarto episódio, sua vulnerabilidade é explorada de um jeito até exagerado, na única parte que me pareceu pouco crível do enredo.

Também há momentos em que você perderá a paciência com o caçula, que exige atenção quase integral de Sean e que por sua vez, é só um adolescente amadurecendo sem que tenha sido preparado para aquilo tudo. Num dia ele pensava em ir à uma festa conhecer a garota bonita da escola, mas acordou no seguinte como fugitivo da polícia protegendo a vida de Daniel. A dinâmica da disputa típica entre irmãos, que se transforma em cooperação e cumplicidade, foi muito bem abordada.

Relacionamentos

Sempre no ponto de vista de Sean, o jogador guia a dupla através da exploração dos ambientes, examinando objetos, dialogando e desenvolvendo a própria personalidade de Sean, o que guia a construção da relação entre os irmãos e também da personalidade de Daniel, que começa como um menino alegre e temperamental de 9 anos.

Quanto mais Sean se mostrar indiferente ou rude (e eles têm uma relação difícil antes do evento traumático), mais Daniel se desconecta, sendo influenciado por terceiros. Receita de problema para alguém que carrega tamanho poder.

life is strange 2 cassidy memoriabit
Life is Strange 2 permite que Sean tenha opções: romance hetero com Cassidy (imagem), ou gay com Finn. Ou nenhum, se assim preferir.

Mas Life is Strange 2 não é só sobre Daniel. Como o desenvolvimento de Sean é o leme da história, é impossível não deixar o irmão de lado em certos lances. Como no terceiro episódio, quando o jogador pode decidir a sexualidade do personagem e seu interesse romântico entre o messiânico e misterioso Finn e a cativante cantora viajante Cassidy. Na minha partida, ela foi "crush" à primeira vista e tratei de desenvolver a rota romântica dela com Sean, terminando na bela cena do mergulho noturno no lago (mais sobre ela adiante).

Aliás, o terceiro episódio como um todo foi meu favorito, quando acontecem as melhores e mais profundas interações. O tema de viagem é com quem gosta de relações duradouras nos enredos e não é diferente em Life is Strange 2. Quase todos que cruzam o caminho dos Diaz não estarão perto por mais do que dois episódios, deixando sua marca nos irmãos e reaparecendo só por cartas e referências. Isso quando aparecem, já que dependendo de suas escolhas, nunca mais verá algumas e ganhará a inimizade de outras.

A falta de elos é sofrida, mas funciona. Ela impede que o jogador se apegue demais a personagens além dos irmãos, que afinal, precisam seguir rumo ao sul, onde o muro da fronteira os espera. Ainda que a escolha derradeira não seja tão traumática quanto a de Life is Strange, ela é moralmente ambígua e remete a vários finais, de acordo com a moralidade dos irmãos.

Visual

life is strange 2 sean deserto memoriabit
Os visuais de Life is Strange 2 são um exemplo de simplicidade e beleza funcionando juntos.

Life is Strange 2 aprimorou muito o lado técnico da série. A jogabilidade não exige habilidade nem controles tão precisos e você vai passar algum tempo com o joystick parado enquanto assiste cenas após certas ações, mas o movimento do personagem foi bastante melhorado, com animações que correm mais naturais e transitam de estado com mais fluidez. Esqueça aquele movimento "saco de cimento com pernas" de Max.

Os gráficos são muito superiores, ainda num visual entre artístico e realista, que lembra pinturas em movimento como no primeiro jogo, mas tudo é melhor definido. Objetos e personagens são muito melhor desenhados, com excelentes efeitos de ambiente e iluminação (alguns problemas em reflexos), filtros de cor, profundidade de campo e ângulos de câmera que remetem ao cinema. A interface não teve grande alteração, mas destaco a arte da introdução dos capítulos, com a narrativa dos lobos que por alguma razão me fez ficar com os olhos marejados mais de uma vez.

O tema de viagem é prolífico para os cenários, com estradas, florestas, campos nevados, montanhas e desertos espetaculares, além de vida selvagem como guaxinins, esquilos, aves, insetos, coiotes, escorpiões, cobras, etc. Jogando na melhor qualidade possível, o visual é espetacular e ajuda na narrativa dos "irmãos lobo".

A jogabilidade da série foi mantida, aprimorada com novas mecânicas. Uma típica de jogos do gênero que enfim aparece são diálogos com tempo determinado, dando ênfase à urgência de ações e respostas. Também foi implementado o diálogo combinado, em que Sean pode não só examinar um objeto, como discutir sobre ele com Daniel. Eles podem só conversar ou resultar em interações como remover obstáculos do caminho.

life is strange 2 caderno de desenhos sean memoriabit
O caderno de desenhos de Sean traz detalhes que não aparecem no jogo e complementam a trama.

Enquanto Max tinha a fotografia como paixão e mecânica no jogo original, Sean é um desenhista que registra a viagem com sua caneta no caderno de desenhos. Os eventos de desenhar não são muito criativos ou complexos, acrescentando mais à narrativa. Há alguns minigames a cada capítulo, como o jogo de facas e o corte de plantas no terceiro, a bola de beisebol do quinto. Nada muito complexo.

O sistema de coleção foi ampliado e Sean pode recolher itens (seis por episódio) que não são tão fáceis de encontrar, alguns envolvendo minigames como a caça ao tesouro com Daniel no deserto. Perdi quase metade por episódio porque estava mais interessado em concluir a história principal; se for seu caso, pode recarregar salvamentos após conclui-la e ir a pontos específicos do capítulo procurá-los.

O diário/caderno do protagonista se tornou mais importante do que no jogo de estreia. Não sendo um jogo tão longo, muita coisa que acontece, especialmente nas transições de capítulos, você vê através do que Sean desenha e escreve. Portanto, se você é do tipo que tem preguiça de ler, vai perder muito do conteúdo e ficar boiando sobre como Sean e Daniel foram parar em certos lugares.

Trilha sonora: a Dontnod fez de novo

O raio cai duas vezes no mesmo lugar? O pessoal da escolha de trilhas da Dontnod matou a pau de novo. A música foi fundamental na experiência imersiva da primeira parte e eles conseguiram mais artistas de renome na seleção primorosa da sequência.

A lista de faixas licenciadas é bem mais enxuta, mas não deve em qualidade. Como não estamos mais na bucólica Arcadia Bay, ainda há artistas de indie/folk alternativos, como uma versão instrumental de Sufjan Stevens, mas também música eletrônica, latina e pop rock, incluindo Phoenix, Gorillaz, Justice e First Aid Kit (bela versão em violão e voz de Sarah Bartholomew como Cassidy). Parecem servir como luva nas cenas, coisa fina.

Apesar de conhecer alguns como Block Party há muito tempo, vai ser impossível a partir de agora deixar de relacionar a música Banquet à cena de Sean e Daniel dançando no quarto de hotel. E graças a I'm Willing, de Ben Lee, também será fixada para sempre na sua memória a perda de virgindade de Sean com Cassidy (se escolher a rota), em uma das melhores e mais sutis cenas de sexo que já vi em qualquer filme ou jogo.

a trilha original ficou a cargo de Jonathan Morali, fundador da banda Syd Matters – que também está na temporada de estreia, mas dessa vez não apareceu como artista licenciado. E soa, com exceções como a triste e bonita faixa-tema dos irmãos, um tanto mais genérica e menos interessante.

Exemplo de evolução

Life is Strange 2 melhora quase tudo que o aclamado jogo de 2013 fez, mas é outra pegada. A Dontnod foi corajosa e mandou bem escolhendo contar uma nova história com referências cirúrgicas da anterior (ainda que irrelevantes na dos irmãos Diaz) como o arco de redenção de David Madsen, sugerido em um dos finais de Life is Strange e que se mescla de forma natural.

Isso é respeitar fãs sem fanservice ordinário e caça-níqueis. Pena que muitos exigiam mais Pricefield e na emoção, nunca tenham dado o devido valor.

life is strange 2 daniel e sean fronteira mexico memoriabit
Até o fim juntos? Personagens vem e vão, mas a história é de Daniel e Sean.

Com novas mecânicas, texto refinado, ambientação convincente e gráficos superiores sem fugir do estilo original, você terá dezenas de horas distraído com um retrato de algumas das piores e melhores faces da América (ou do mundo contemporâneo?), conduzido pela tocante história dos irmãos que se veem como lobos guerreiros numa sociedade de caçadores. Não espere por mistérios bombásticos como o tornado: a história está na jornada de amadurecimento dos Diaz.

Se de forma geral Life is Strange 2 supera o de estreia, meus problemas com ele talvez sejam com a natureza da própria história e como ela nos entrega os finais. A necessidade de levar os irmãos sozinhos adiante obriga a trama a deixar para trás quase todos, incluindo personagens que você sentirá por não ver mais, sequer nas telas finais que revelam o destino que os aguardava no México ou nos Estados Unidos, dependendo de suas escolhas por toda a aventura.

A subtrama da mãe dos Diaz costura partes da história mas apesar das sete variações de finais graças a opções que afetam mais o caminho e os desfechos, nada é tão surpreendente quanto aqueles momentos decisivos de Life is Strange, de grandes vilões revelados e escolhas que ninguém gostaria de ter que fazer. De qualquer forma, é um título subestimado pelo impacto do original, e não deve ser desperdiçado por quem gosta do gênero.

Once upon a time, in a wild, wild world... There were two wolf brothers living in their home lair with their papa wolf. They all lived happily together but... But one day, hunters took their Dad away. Forever. So now the brothers were alone and they had to find a new home.

life-is-strange-2-lobos

Life is Strange 2 foi avaliado na versão Windows, mas também está disponível para PlayStation 4, Xbox One, Linux e Switch.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

Deixe seu comentário

Digite seu comentário!
Digite seu nome aqui

Reviews

Recentes