Maldito hype: o “antifenômeno” no ódio de No Man’s Sky

No Man's Sky, da britânica Hello Games (reconhecida antes pela série Joe Danger), esteve no centro de um dos maiores hypes¹ da indústria de games, talvez de toda a indústria do entretenimento moderna. Durante tempos, foi prometido um mundo aberto — mais pra universo aberto —, com quintilhões de planetas acessíveis e ricos em fauna e flora, combates espaciais, culturas alienígenas com raças e facções aliadas e inimigas, naves e equipamentos melhoráveis. Quase a vida alternativa de um navegador da galáxia.

¹ promoção extrema de um produto, pessoa ou ideia, com rótulos como "a grande novidade", "a nova onda do verão", etc. Hype na Wikipedia.

Mas lançado mês passado, virou alvo de um frenesi de fúria e frustração como poucos em anos. Seja com vinte minutos ou 150 horas jogadas, a última moda de agosto é detonar, ou melhor, destruir NMS, às vezes com as comparações mais esdrúxulas possíveis.

Reclamar que o jogo é fraco em combates, que inimigos são "fáceis"? A essência desde sempre era outra: exploração. Seria difícil priorizá-la com hordas de criaturas hostis (em planetas marcados como "Sentinelas: Agressivos" elas atacam sem aviso, pra quem gosta...). Mas essa parte do público não quer saber, e nomeou o game inimigo nº 1 da temporada, ainda que críticas da mídia — acusada de ser comprada ou "sonysta", afinal ninguém pode discordar da magnânima lucidez de reviews públicos — sejam razoavelmente positivas, enquanto clientes de Steam e GOG descambam o pau, quase como um meme, tamanha a rapidez e ferocidade dos depoimentos se repetindo.

Pra ilustrar a indignação desmedida, uns chiliques coletados por aí. Alguns dignos de dramalhão mexicano:

"Fiquei pasmo ao descobrir o quanto feio esse jogo é."

"É incrível a frequência com que música e efeitos sonoros se combinam para criar um som incrivelmente desagradável."

"Um jogo completamente medíocre com objetivos confusos. NMS é a epítome do frívolo, com toda a beleza e falta de conteúdo que você esperaria de um game AAA."

"Esse é um jogo indie que por 60 dólares, gera todo um universo a 15 fps, draw distance reduzido, gráficos de 2006 e um FOV baixo (faz você pensar que você é uma pessoa muito pequena)."

"Lixo completo. [...] Os planetas têm um visual chato. Quase dormi enquanto jogava, e não estou brincando. A nave tem controles absolutamente horríveis. E você nunca vai ver outro jogador por lá, porque há 18 trilhões de planetas."

"ISSO nem é um game! Não é o que os desenvolvedores prometeram! É tranquilo a pior coisa que fiz em toda minha vida! [...] A única coisa positiva sobre esse produto é a hora que esperei para instalar, foi mais divertido do que o gameplay em si. Fico triste porque esse nome "No Man's Sky" vai continuar por toda a minha vida. Gostaria literalmente de morrer para esquecer que isso um dia aconteceu."

"Um dos piores "games" do século. Não há nada além das mesmas atividades monótonas de voar, minerar e fazer upgrades. [...] O mentiroso patológico e cara de pau do Sean Murray mentiu sobre a inclusão de multiplayer, não há nada disso no game atual."

Alvo errado

Por que um jogo decente, que sai da lugar-comum, vira "lixo do ano"? Propaganda enganosa, expectativas irreais, falsa promessa, ingenuidade? Talvez um pouco de tudo, mas principalmente ânimos acirrados com críticas exageradamente negativas.

As reclamações são as mais diversas possíveis. O jogo é repetitivo, animais são quase os mesmos, plantas idem, as cores são feias, não dá pra destruir estações espaciais, o controle da nave não presta, não gostei do espaço, nem do mar, nem do céu, nem das estrelas, nem da falta de multiplayer, não há naves caídas nos planetas como prometido (sério?).

nave-caida-no-mans-sky
E isso aí é o quê?

A gama de lamúrias chega às raias do bizarro, como a semelhança entre texturas dos planetas e o comportamento dos animais, que "andam de um lado pro outro". Sean Murray, fundador da Hello e alvo favorito dos ataques, foi chamado de "Novo Peter Molyneux" — designer conhecido por promessas utópicas.

Leia também → Biografia Peter Molyneux

Com o massivo universo procedural, estava implícita a impossibilidade de preencher cada locação com detalhes realmente únicos, por mais que isso tenha sido, ou não, alardeado. Era ÓBVIO que planetas teriam grandes áreas vazias, e padrões de comportamento e aparência. Não sei o que o povo esperava em exatos 18 quintilhões, 446 quatrilhões, 744 trilhões, 73 bilhões, 709 milhões, 551 mil e 616 planetas sob demanda.

E não adianta falar que ninguém sabia. Quer ver opiniões de UM ANO ATRÁS, como tinha gente consciente sobre o proposto?

[...] se preparem para uma car*****a de mundos desinteressantes e repetitivos, para alguns poucos realmente bons. [...] O desenvolvimento da comunidade vai ser bem orgânico, baseado em jogadores descobrindo planetas com mais recursos, como se fosse uma febre do ouro onde cidades nasciam e morriam muito rápido. Vai ser bom e bem feito, mas não muito interessante no começo, acho que vai demorar um ou dois anos depois do lançamento para o jogo realmente se aperfeiçoar, deixar de passar aquela sensação de vazio e repetitivo. ShinyMagicKarp
A geração mimimi não vai perdoar esse jogo. Cada jogo tem uma proposta; se esta você compreende, então o jogo tem um sentido pra você. É sobre o sonho de viajar e conhecer planetas e estrelas diferentes, além de espécies e naturezas distintas do seu mundo natural. O objetivo essencial é sobreviver e coletar as informações de cada planeta explorado. Francisco Queiroz
Mas o objetivo quem faz é o jogador. [...] meu objetivo vai ser explorar os planetas; talvez quando estiver cansado disso, eu vá até o centro do universo ver o que tem lá. Não espero do jogo mais do que isso. SmokeE3

E como alguns não entendiam qual era a dele, querendo praticamente outro jogo?

Se for possível matar e roubar qualquer outro jogador e ficar com as descobertas deles, aí a coisa fica mais interessante. RACLA
Tá, e qual o propósito disso tudo? [...] Depois de deixar "nossa marca" em algum ponto do universo, o que acontece? Podemos colonizar planetas que visitamos e iniciar uma guerra contra uma civilização criada por outro jogador? E batalhas, como acontecerão? Tem opção de terceira pessoa? Rivershield
Pelo vídeo da E3 e de outras apresentações achei muito parado e até um pouco sonolento, tomara que seja somente impressão e que seja um bom jogo. MedinaJ

Não sei se quem reclama da escassez de animais realmente jogou o bastante. Basta visitar meia dúzia de planetas para encontrar alguns luxuriantes, com bandos em terra, mar e céu. Ou desertos inóspitos, com tempestades glaciais que vão a -110º C. Eles têm sim a mesma estrutura, a receita dos códigos de partida para gerá-los. Causa certa semelhança, denúncia da base "genética" com um indesejado dèja vu ao cruzar a galáxia e encontrar os mesmos biotipos. Mas fica nisso: vai de gorilas com asa de abelha até dachshunds com corpo zebrado, t-rex com cara de aloprado e infinitas misturas...dog-estranho-no-mans-sky

Gerado dessa forma, e com proposta conhecida, era sabido que o produto tinha público específico: o explorador. Podemos passar horas vagando, sendo no máximo incomodados por um animal estressado ou encrencando com sentinelas ao arrombar portas, mas esse é o produto. Escolha errada de quem pensou em outra coisa; é como exigir que o filme indie de ficção agite como Velozes e Furiosos, ou o terror psicológico europeu seja bobinho como Jogos Mortais.

Claro que um dos fatores no boom de críticas foi o velho e mau hype — e não isento a desenvolvedora. Adjetivos pretensiosos como "sem proporções" e "épico" mais insuflavam expectativas do que descreviam o trabalho. Virou uma histeria, ao ponto de malucos ameaçarem Murray de morte por adiar o lançamento. Ele não ajudou, oscilando de empolgado a reticente ao falar de NMS. Não vi ele dizer claramente que haveria multiplayer; ao contrário, isso foi dado como secundário já nas matérias de 2015. Mesmo assim, manteve-se "misterioso", como ao dizer que seria "possível jogar com amigos". Como assim? Renomear lugares é considerado jogar com amigos?

Tava na cara que ia dar ?, né?

No Man, nowhere

Pior: ele garantiu que jogadores poderiam se encontrar, num evento de extrema raridade, dedução elementar pelo tamanho do universo. Tal encontro seria quase um graal, um feito tão fantástico que carregaria significado próprio, de apelo meio metafórico. Imagine a emoção de topar com uma pessoa num ponto perdido da galáxia, depois de meses, talvez anos lidando só com IAs?

Mas por enquanto, se é que vai existir correção, era mentira ou mudaram de ideia pelo caminho. Dois jogadores se encontraram quando um deles achou uma região renomeada pelo outro, separados por míseros 4 sistemas, poucos anos-luz de distância (logo ali na esquina, nas proporções do game); marcaram um encontro no mesmo planeta, no mesmo lugar.

Resultado: eles não se veem, só alterações feitas em nomes. Não parece haver um modelo para o personagem, que sequer tem reflexo.

Na vastidão da galáxia, dois jogadores se encontraram logo no primeiro mês de jogo, mas eles não se veem.
Na vastidão da galáxia, dois jogadores "se encontraram" logo no primeiro mês de jogo.

Se a desenvolvedora sabia que o poético encontro de humanos na vastidão artificial era mentira, por que insistir nela? Porque a palavra multiplayer é mágica, e negá-la afastaria boa parte dos interessados, alguns alegam. Mas se não eram o público-alvo, melhor tirá-los da jogada o mais depressa possível, não?

Só no começo de agosto Murray botou pingos nos Is, esclarecendo que não haveria multiplayer. Meio tarde: pedidos estavam feitos, alguns pela mera possibilidade de humanos atirando em aliens nos confins do universo.

A chance de um jogador encontrar outro era "minúscula", como classificou Murray. Acontece que há uma teoria de probabilidade chamada "Paradoxo do Aniversário", segundo a qual dado um número de pessoas, há certa chance de duas terem nascido no mesmo dia. Se o grupo tiver 367 pessoas, sempre haverá ao menos duas nascidas no mesmo dia, pois o ano tem 365 ou 366 dias. Mas com apenas 23, a chance já é estimada em mais de 50%, chegando a 99% em apenas 57 ou mais indivíduos. O paradoxo é uma explicação para o encontro, apesar dos 18 quintilhões de planetas.

A equipe sabia da chance não tão minúscula, então qual a lógica em vender o jogo baseado numa mentira fadada a cair? Parece que o erro da Hello Games foi ambição por coisas impossíveis no lançamento. Mas esse é só um dos ingredientes da avalanche. Em vez de seduzir o público errado — os ávidos por multiplayer —, deviam ter focado o marketing na tal exploração despreocupada. Atraíram quem queria "mais-um-jogo-de-mundo-aberto-com-tiro-e-porrada-online", agora lidam com a bronca.

Acha que estou exagerando? Veja a lista de queixas garimpada no Reddit:

Combate em solo ocorre só contra algumas sentinelas por vez, e não apresenta desafio. Lutas são ganhas facilmente, ou se escapa, ou são prevenidas por completo.

Algumas reclamações procedem, como a remoção do prometido pouso em asteroides e a (nossa que surpresa) redução geral em relação ao vídeo de 2014, mais abaixo. Até onde joguei, não vi um espaço tão cheio de vida e naves, ou dinossauros irretocáveis... e nem esperava por isso. Note que várias questões da lista foram riscadas, como a suposta inexistência de rios, insetos e o escaneamento de planetas. Não seria de espantar se outros forem se resolvendo nas próximas  semanas.

Com todo o hype, o público esqueceu que, afinal, NMS é de um estúdio pequeno, feito por umas 15 pessoas, contra as mais de 1500 em The Witcher 3, por exemplo. A guerra de mongolões consoles também alimenta ódio (mas não vamos discutir tolice sub-12). Tem gente que jogou VINTE MINUTOS bufando: não dá tempo de sair do primeiro planeta, de melhorar a nave, experimentar qualquer mecânica elementar. Aí é difícil.

Então é perfeito?

Longe disso. A principal falha é ser, de fato, um tanto repetitivo. Depois de uma dúzia de planetas conhecidos, se não for fã hardcore do tema, você pode se perguntar por que continuar. Não há missões caindo no colo o tempo todo, objetivos além dos centrais como aprender idiomas, coletar recursos e chegar ao bendito centro da galáxia. Seria interessantíssimo mais participação alienígena: que eles revelassem missões de recuperação de naves ou peças (tem algo nesse sentido, mas cabe mais), ou catalogar animais e minérios raros, numa agência para caçadores de recompensas, por exemplo.

Que tal a possibilidade de construir uma base fixa num planeta? Personalizar a nave à vontade? Faltam tais "empurrões" pra manter mais gente envolvida por mais tempo.

Há falta ou imprecisão de colisão às vezes. Não é raro passar como gasparzinho entre as pernas de grandes animais, e pousar a nave em superfícies impossíveis. O controle da nave é restritivo, não há como voar rente ao solo nem mover a visão do piloto para os lados, o que atrapalha ao vasculhar o terreno. Mods já pintaram, como o LowFlight e o Cockpit Freelock.

A penúria de slots na nave e no traje do personagem é um pesadelo no começo, você vai querer catar tudo que vê. Aí entra um fator primordial que é gerenciamento de inventário. Ficar igual jumento carregando carbono, se o "incomum" — e bem vendável — plutônio aparece a cada tropeção? E se faltar carbono? Voe para o planeta mais próximo e talvez a sorte esteja lá. Achou uma montanha de cobre, emeril ou alumínio, encheu os burros e está sem espaço? Vá pra base espacial vender.

Talvez o grande "problema", que atrai críticos como um imã, seja a falta de constância no quesito ação. Nos Dooms da vida, jogadores sorriem por trocentas fases fazendo sempre as mesmas coisas: atirar, recarregar, coletar itens, atirar, recarregar, coletar... Não vejo como NMS é tão mais repetitivo, mas a ação é coadjuvante, sem dúvida.

Como não joguei no PS4, não posso opinar sobre a diferença, mas no PC parece ter sido feito um trabalho irregular. Há perda de frame rate, principalmente com muitos objetos como construções, animais e muita vegetação. Nada dramático, mas na geração que usa software para vigiar qualquer drop abaixo de 60, sabe como é... Quanto aos crashes relatados, não tive, mesmo num PC de configuração modesta. De qualquer forma, muitos updates virão; o atual 1.09, corrigiu a maioria dos bugs.

Longo caminho

Os monólitos são um dos elementos a explorar em No Man's Sky.
Os monólitos são um dos elementos a explorar em No Man's Sky.

No mais, NMS é um jogo bom, e por estranho que soe por estar na praça, promissor. O exagero de promoção queimou o filme; se viesse quietinho, sem tanta promessa — muitas não cumpridas por enquanto e talvez nunca — e com o mesmo conteúdo, sem tirar nem pôr, o mundo estaria aclamando a Hello pelo esforço em vez de tratá-los como golpistas que vão "pegar seu dinheiro e correr de bolso estufado e rindo para o banco", como diz um dos reviews públicos. O fenômeno de popularidade antecipado virou o "antifenômeno", do ódio desmedido. Isso não faz dele ruim como pintam, de jeito nenhum.

Vale os 60 dólares do lançamento? Talvez meio salgado pois como disse, é promissor: aposto que tem coisa vindo por aí nas correções e inevitáveis conteúdos adicionais.

"Somos produtores, e o nosso foco está em resolver quaisquer problemas que as pessoas possam ter com o jogo, e, depois, em updates gratuitos que melhorem, expandam e desenvolvam o universo de No Man's Sky."

Minha recomendação é: se você tem gosto de tiozão / tiazinha por explorações lentas, contemplativas e relaxadas, vai que é tua, Taffarel. Não é o tipo com horas de cutscenes e toneladas de tiroteios, o entretenimento está na viagem. Senão amigo, passe muito longe e não seja outro pedindo refund e dando chiliques.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

1 COMENTÁRIO

  1. Realmente o jogo estava muito ruim no lançamento. Lembro que joguei uma hora e já estava de saco cheio, e o fps muito baixo e olha que estava num i5. Vieram vários updates, acho que vale dar uma olhada de novo pra ver se entregaram o resto das promessas ou pelo menos uma parte.

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