Como o impossível aconteceu: Sonic em consoles da Nintendo

Provavelmente nunca existirá rivalidade no mercado de games como foi entre Sega e Nintendo nos anos 90. Após um esboço de competição nos 8-bit, a geração seguinte deu tons de guerra à disputa entre Mega Drive e Super Nintendo. Graças ao comando de Tom Kalinske [biografia], que atacou a Nintendo como ninguém antes.

"Eles eram simplesmente implacáveis", disse o então presidente da Sega da América sobre a rival. "Dou o braço a torcer nisso. Respeito o quanto fortemente tentaram controlar o negócio, mas em minha opinião, muito do que estavam fazendo era ilegal. Eram práticas monopolistas".

Tais práticas envolviam, entre outras, impedir que parceiros fabricassem cartuchos. A Nintendo fornecia o material, mantendo controle total. Pior: ameaçavam quem desse suporte a produtos da Sega (e qualquer produtora). Se um revendedor quisesse os itens da Big N, ou um desenvolvedor quisesse criar para o NES, nada de conversinha com a "outra". Era fidelidade ou nada.

Especialmente o Master System sofreu com as consequências do monopólio.

Com o Mega Drive, aumentou a tensão entre as empresas. A competição se acirrou quando a Sega resolveu ter seu mascote. A Nintendo tinha Mario, então precisavam de algo forte, maior que Alex Kidd, ocupante informal do posto. Alguém que fosse a cara deles; um vendedor de consoles e da imagem descolada do 16-bit.

Surgia Sonic the Hedgehog.

A partir dali, o mundo tinha fronteiras indeléveis. Mario em consoles da Sega, ou Sonic em consoles da Nintendo, eram igualmente impossíveis. Seria como God of War no Xbox, ou Halo no PlayStation. Como Fidel Castro na presidência dos Estados Unidos. Como Sílvio Santos apresentando o JN no lugar do Cid Moreira. Impossível, ponto.

Mas com o desastre do Saturn -- e na chegada do PlayStation 2, também do Dreamcast --, as coisas mudaram.

Permitindo isso:

Até hoje tem gente se perguntando "Oh céus, por quê??"

Como a Sega digeriu a ideia de ver seu precioso mascote nos braços do rival? Simples, jovem.

Money, que é good e nóis num have

Como em qualquer rivalidade nascente, Sonic foi pensado em torno de Mario. Não para ser um clone, mas explorar suas fraquezas, alcançar onde ele não ia.

"Naquela época, Super Mario Bros. (e toda a franquia Mario) era o melhor jogo por aí, na visão das pessoas, especialmente falando em ação e plataforma", disse Takashi Iizuka, produtor da série Sonic. "Havia tantos fãs da série Mario, e depois saímos com o Sonic, que era esse personagem mais legal, tinha o visual azul brilhante. Era um jogo mais rápido, os controles eram melhores".

Sonic se tornou a joia do Mega Drive, e a tão sonhada franquia principal da Sega. De repente, o carinha azul era adorado pelas crianças e o Sega Genesis vendia como pão quente de manhã. E manteve o ritmo, mesmo contra excelentes aventuras de Mario na década, como Super Mario World e Super Mario Kart.

Tudo estava lindo. Mas o Saturn fez sua investida na série, e a coisa desandou. Sonic X-treme seria o primeiro em 3D com o personagem, mas viveu um caos absurdo e acabou cancelado (leia também: a triste saga de Sonic X-treme). Restaram a compilação Sonic Jam e Sonic 3D Blast, que num retorno às bases, também foi surpreendentemente levado ao Mega Drive.

"Quando focamos nosso tempo em produzir jogos que não eram de Sonic, vimos a popularidade dele cair e nos sentimos em falta com os fãs", lembrou Iizuka. Enquanto isso, Mario dava seu salto com o lançamento do revolucionário Super Mario 64.

A competição esfriou. O Saturn rastejava e rivais tomavam territórios conquistados com suor pelo Mega Drive. O retorno triunfal seria em 1999 com o aclamado Sonic Adventure, no Dreamcast. Mesmo tão bem recebido quanto a sequência, Sonic Adventure 2, de 2001, não bastou para salvar o "transmissor de sonhos"¹: o Dreamcast foi descontinuado antes mesmo do lançamento do SA 2, também em junho.

¹ Dreamcast é a contração de "Dream Broadcast", ou "transmissão de sonho".

Sem casa própria e no vermelho, a Sega estava entre a cruz e a espada. Se insistisse na guerra de consoles, iria à falência, que pairava como uma nuvem negra. Pedindo arrego, sobreviveriam, mas desagradando ao público fiel e deixando donos de Dreamcast órfãos. Como é melhor viver para novas batalhas, foram na opção mais lógica: produziriam jogos para terceiros. Inclusive antigos rivais.

Mas não foi sem luta.

Um novo mundo

Sonic Adventure
Portado para vários consoles quando a Sega deixou o ramo, Sonic Adventure saiu como exclusivo do Dreamcast. A primeira incursão 3D de Sonic vendeu quase 2 milhões de cópias, mas não conseguiu salvar o sistema.

A transição afetou toda a equipe de desenvolvimento da Sega. Estavam acostumados a criar para suas próprias plataformas; se necessário, inseriam melhorias de hardware, como a tecnologia lock-on de Sonic & Knuckles, o chip SVP, e os cartuchos de expansão de memória do Saturn.

Nada disso era possível com hardware alheio. Mas estavam otimistas quanto à nova fase multiplataforma.

"É muito triste que o negócio de hardware da Sega tenha sido cancelado", disse Yuji Naka [biografia], um dos criadores da série. "Mas isso permitiu que Sonic rodasse numa variedade de plataformas. Fez com que pessoas, mais que nunca, pudessem jogar e aproveitar os games do Sonic".

Apesar de Sonic Adventure ter sido a esperança de afastar o Dreamcast do fracasso do Saturn, o projeto nasceu voltado ao 32-bit. Para sorte da Sega, havia obstáculos como o flop inevitável da máquina -- em 1998, quando começavam os trabalhos em Sonic, ele já apanhava dos principais rivais.

O cancelado Sonic X-treme: Sonic Adventure foi primeiro pensando para seu lugar no Saturn, e só devido às limitações do console, foi parar no Dreamcast. Ainda bem.

Outro contratempo eram suas limitações, como explicou Iizuka:

Fizemos o primeiro esboço de Sonic Adventure para o Saturn. Mas ao desenhar um mundo em 3D no qual Sonic correria livremente, batemos numa parede com o que o Saturn seria capaz de fazer. Foi quando ouvimos que o Dreamcast representaria uma excelência em jogos 3D.

O Saturn era muito bom em manipular sprites para representar polígonos, mas o Dreamcast era uma verdadeira máquina de processamento tridimensional. Então, era perfeito para o desenvolvimento de Sonic Adventure.

O Dreamcast estava longe do design completo. Quando Sonic Adventure começou, 30% das especificações estavam definidas; eles seguiam imaginando o que teriam disponível no fim da jornada. Outro desafio eram métricas reais de um mundo 3D. Segundo o diretor de arte Kazuyuki Hoshino, a Sega trabalhava com um Sonic que teria 1 metro de altura:

Tal Sonic correndo àquela velocidade por alguns minutos implicava vários quilômetros de distância, e dados para uma fase seriam muito grandes. Embora pareça óbvio que teríamos que dividi-las em partes que se encaixariam no tamanho da memória alocada em que precisávamos trabalhar, e então ler os dados da próxima parte da fase on the fly e descartar as partes pelas quais você passou, muito desse know-how e técnica levou tempo para pesquisar e descobrir.

Sendo um título de lançamento do Dreamcast, o ideal era torná-lo um garoto-propaganda do sistema. Aquele jogo arrasador, que convence o indeciso a comprar o aparelho. A ordem ao time de arte era usar e abusar do hardware. A escolha por cenários realistas, como cidades, foi parte da busca por gráficos que ostentassem tecnologia superior, revelou Hoshino. O Sonic Team fez viagens em busca de referências visuais.

Takashi Iizuka.

"O desenvolvimento, até então, era feito com artistas desenhando texturas à mão. Mas ao desenvolver no Dreamcast, podíamos tirar fotos da vida real e usá-las como texturas", explicou Iizuka. "Com isso possível, planejamos uma viagem para ver não só ruínas antigas, que eram ponto fundamental do título desde a essência, mas também usá-la para coletar recursos.

Fomos às famosas ruínas das Américas Central e do Sul: Chichén Itzá, San Gervásio, Tikal, Machu Picchu, as Linhas de Nazca e muito mais. Tiramos fotos das paredes e materiais nas ruínas reais, e usamos essas fotos como elementos do jogo".

Ainda havia o desafio de recriar a jogabilidade. Na série 2D, a progressão era do começo ao fim da fase, um tanto óbvia. No 3D, Sonic estava livre e seria fácil perder o senso de velocidade que o fez famoso.

"Num mundo 3D era possível correr em qualquer direção; você nunca tinha certeza para onde ir", disse Iizuka. "Tal jogabilidade requeria um tipo completamente diferente de design de níveis". Após muito teste, Iizuka imaginou um sistema de câmera em que, não importava em que direção Sonic corresse, ele pareceria estar sempre avançando. A câmera muda quando Sonic contorna curvas e têm ângulos mais espetaculares em loopings.

Ele mesmo explicaria:

O Sonic 2D sempre se movia para a direita da tela. De forma semelhante, se tivéssemos a câmera mostrando a direção em que o Sonic 3D deveria estar correndo, à sua frente dentro do mundo, pensei que poderíamos fazer qualquer tipo de estágio 3D complexo, em que você chegaria ao final indo continuamente para cima no controle (avançando no mundo). Depois de pensar neste sistema de câmera, testamos o Speed ​​Highway, e ele foi bem-sucedido!

Um trabalho imenso. No final, parecia desperdício ter apenas Sonic aproveitando aquele novo mundo. Vieram mais cinco personagens, com estilos próprios. "Agora que tínhamos personagens únicos", lembrou Iizuka, "percebi que deveriam seguir suas próprias histórias e metas a cumprir. Então escrevi uma história, e a contei através de seis perspectivas, de cada um dos personagens únicos".

Nos braços do rival

O Sonic Team USA (junto com Yuji Naka, que continuou no comando do time japonês, ao centro): após a divisão estratégica do time original, fizeram a sequência de Sonic Adventure nos Estados Unidos. Imagem: Sonic Retro.

O resultado das avaliações foi ótimo, e embora o Dreamcast não tenha sido sucesso comercial, Sonic Adventure definitivamente foi -- mais vendido do sistema, com 2,5 milhões de cópias.

Logo após o lançamento no Japão, o Sonic Team foi dividido, com parte indo para os Estados Unidos. Estabelecidos em São Francisco e sob comando de Iizuka, o braço ocidental trabalharia na versão internacional de Sonic Adventure. O time de Yuji Naka ficou no Japão, cuidando de coisas como o pretensioso Phantasy Star Online.

O Sonic Team USA corrigiu bugs e fez polimentos em Sonic Adventure. Assim que foi disponibilizado mundialmente, já começaram a sequência, Sonic Adventure 2. Novos personagens e melhorias a tornaram superior, e houve visível esforço em agradar o público local. Cenários da fase City Escape, por exemplo, foram inspirados nas ruas de São Francisco. Mission Street e Radical Highway também remetem a marcos da região, como a Ponte Golden Gate.

Mas não adiantou. O dano nos cofres era grande, e numa sangria de dinheiro, a Sega virou third-part. O Dreamcast foi descontinuado, para luto eterno dos seguistas. O temor de fãs radicais é que franquias características da casa fossem para o lado de lá.

Quanto à equipe de desenvolvimento, não houve resistência. Ao saber que a Sega trabalharia com terceiros, Iizuka aceitou com naturalidade. Mais plataformas, mais público.

"De minha perspectiva, as empresas podiam estar numa guerra promocional. Havia muita rivalidade sendo criada. Como fabricante de hardware, você sempre está competindo contra todo mundo no mercado. Mas eu só estava lá querendo fazer os melhores games que pudesse, e que eles chegassem ao maior número de pessoas possível".

O primeiro produto a fazer o salto foi Sonic Adventure 2 na versão melhorada Battle, portado para o GameCube em 2002. O fim de uma era.

O que parecia sacrilégio para muitos fãs de Sega e Nintendo aconteceu em 2002, com Sonic aparecendo pela primeira vez num console da Nintendo. Para alguns, ainda é uma imagem estranha...

Com a barreira quebrada, as agora parceiras começaram a se abrir para o "sacrilégio final": juntar os mascotes. Naka foi o primeiro a mencionar a ideia na Sega, mas saiu em 2006 sem vê-la acontecer. As conversas continuaram; havia a vontade, mas precisavam da melhor forma de unir universos tão distintos.

"Sempre pensei que seria ótimo ter Sonic e Mario no mesmo jogo", disse Shigeru Miyamoto [biografia]. "Mas colocados num jogo de ação, a sensação de velocidade é muito diferente, então não teria funcionado".

A solução foi sair de seus ambientes clássicos. Quando a Sega obteve a licença para criar games dos Jogos Olímpicos de Pequim, Iizuka procurou a Nintendo. Parecia o melhor para todos. "Foi a primeira grande conversa sobre juntar os personagens para competir e se divertir juntos", disse Iizuka.

Assim viria Mario & Sonic at the Olympic Games, para o Wii em 2007 e DS em 2008.
Supervisionado por Miyamoto, foi lançado na América pela Sega, e pela Nintendo no Japão. Além de primeiro com os mascotes juntos, foi também o primeiro jogo de Sonic fora de qualquer console da Sega.

Tempos de paz

Era só o começo de uma longa e frutífera parceria. Sonic apareceria de novo ao lado de Mario em Super Smash Bros. Brawl (Wii, 2008). Veteranos da rivalidade noventista realizaram o desejo de vê-los se pegando na porrada.

Com Mario & Sonic at the Olympic Games, a união foi selada de vez -- para horror de fãs radicais.

Gostemos ou não, a colaboração funcionou. Mario e Sonic em esportes olímpicos virou meio que tradição, recorrente a cada dois anos (com capítulos também para as Olimpíadas de Inverno). Sonic voltou ao elenco de Super Smash Bros. em 2014, nas versões Wii U e 3DS, e hoje é um dos principais personagens da série.

A Sega virou tão parceira que lançou vários exclusivos para a Nintendo. Foram publicados Sonic and the Secret Rings (Wii, 2007), Sonic and the Black Knight (Wii, 2009), Sonic Colors (Wii e DS, 2010), Sonic Lost World (versões diferentes para Wii U e 3DS, 2013) e Sonic Boom: Rise of Lyric (Wii U, 2014). Por algum tempo -- quem diria... -- Sonic se tornou exclusivo da Nintendo.

Com Sonic Mania, em 2017, a exclusividade em inéditos acabou e a Sega voltou às multiplataformas; dois anos antes, haviam relançado Sonic Lost World para PC.

"Esse relacionamento beneficiou muito a Nintendo e nós mesmos. Mas agora estamos chegando ao fim dessa exclusividade e empolgados em estar em todas as plataformas", disse o então diretor da marca Sonic e vice-presidente da Sega da América, Ivo Gerscovich. "Eles têm sido grandes parceiros e há grande respeito entre as empresas".

Mas não tanta...

Rendeu grana? Sim. Mas certas cicatrizes não são esquecidas. Há quem jamais tenha aceitado, ou vá aceitar Sonic na Nintendo, Sonic e Mario parças e essa amizade toda.

Um dos casos emblemáticos é de ninguém menos que Kalinske. Pai do sucesso do Mega Drive e até certo ponto, do próprio Sonic, o executivo nunca viu com bons olhos a aproximação. "Para dizer a verdade, ainda tenho problema com esse conceito de empresas que foram nossas inimigas e que lutaram com unhas e dentes contra nós, e agora são amiguinhas".

Em outra ocasião, sugeriu que se dependesse dele, acabaria a exclusividade da Nintendo com Sonic, reforçando sua dificuldade em engolir a parceria. "Eu ainda teria Sonic em consoles, e o colocaria em mais do que apenas consoles da Nintendo, o que me deixa louco, diga-se de passagem. Considerando que minha relação com a Nintendo não era tão boa, é duro pra mim aceitar Sonic na Nintendo, indo juntos para os jogos olímpicos no Rio".

Para alguns, Mario e Sonic serão eternos rivais, e a treta nunca vai acabar. Essa coisa de amiguinhos atual é pura cena e dura só até a Sega lançar um novo console, se é que vai acontecer um dia... Imagem: autor desconhecido, se souber me avise.

Na primeira vez que controlou Sonic em consoles da Nintendo -- em Super Smash Bros. do Wii U --, Kalinske fez questão de escolher o Blue Blur. "Sim. Claro! Foi um sonho virando realidade!", respondeu com humor quando perguntado sobre a experiência de socar Mario.

Al Nilsen, diretor de marketing da Sega nos anos 90, seguiu essa linha. "Isso remonta à nossa relação com a Nintendo no passado. Temos cicatrizes daqueles tempos. Pessoalmente, não consigo ver um mundo em que Sonic e Mario são bons camaradas".

Algumas feridas nunca se fecham.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

2 COMENTÁRIOS

  1. Que o passado fique no passado. Aquela luta afinal foi benéfica para ambos, dando o melhor de si e se superando, e para o público consumidor, agraciado com games incríveis. Eu sempre fui pela Nintendo, até hoje infelizmente nunca joguei num mega drive, mas já tive a chance de jogar games como Streets of Rage 2 e sei bem como a Sega fez jogos que marcaram a história e como essa luta influenciou a indústria de games como a conhecemos. Acho ótimo essa amizade entre esses dois ícones!

  2. Confesso que sou fã das versões mega drive, bons tempos do poderoso Mega Drive!!!! A verdade é que a Nintendo se rendeu ao mascote da Sega...a Nintendo queria muito o mascote ao lado de Mario!!!!

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