O ano era 1994. Sonic the Hedgehog era mais que reconhecido como um dos grandes mascotes dos games. Depois de bombar o Mega Drive, era natural esperá-lo nas máquinas de nova geração da Sega, como o Saturn.
Um projeto já vinha sendo preparado, nascido ainda com o 16-bit em foco. Com a mudança de prioridade para o console 32-bit, o que fariam com ele? As opções eram arquivá-lo, ou adaptá-lo, e a segunda foi a escolhida. Mas além do Saturn, havia outra plataforma para cuidar: o bisonho 32X, com poucos jogos e um futuro incerto.
Foi no meio dessa confusão de sistemas e rotas que um dos jogos mais esperados da história da franquia Sonic se perdeu. Tivesse sido realizado, e talvez o destino do próprio Saturn fosse outro.
Trifurcação
O projeto era tocado pela STI, divisão americana que produzira o emblemático Sonic 2. Vários membros chave da Sega do Japão tinham passado por lá, incluindo o influente Yuji Naka).
Mas depois de Sonic 2, vários voltaram pra casa; o STI estava bastante modificado. Sabia-se que o Saturn precisava do ouriço, diante da ameaça de novos sistemas como Jaguar, 3DO e principalmente PlayStation. Ao mesmo tempo, o 32X era modelado na Sega da América, criando uma estranha competição interna.
O que fazer? Ocupar as principais equipes com grandes jogos para o acessório do Mega Drive, ou para o novo sistema?
Já havia um projeto de novo capítulo Sonic dentro da STI. O nome original era só Sonic 16, sugerindo algo no Mega Drive. Seria um jogo 2D inspirado na animação da DiC Entertainment, cujo projeto foi apresentado e teve sinal verde da Sega da América. O conceito teria nascido em maio de 1994, com design de Michael Kosaka e assistência de Chris Senn (design) e Don Goddard (programação).
Nessa encarnação, Sonic se moveria em quatro direções, mais ou menos como num beat 'em up. Teria também habilidade de se segurar na borda de objetos, e de se esquivar e esconder de inimigos. Anéis seriam usados como arma, arremessados contra inimigos.
Mas o Saturn ainda precisava de um jogo de Sonic. Foi o início de uma série de alterações no projeto, que terminariam em Sonic X-treme.
Mike Wallis, ex-membro do STI, lembrou que ao entrar para a divisão, em novembro, o 32X estava em pauta:
Em essência, era um Sonic the Hedgehog para a plataforma Mars, daí encurtado para Sonic Mars. Durante a fase de desenvolvimento, o design estava muito no início e não tinha sido bem definido ainda, então era incerto se requereria (em termos de tecnologia) algo próximo do que o X-treme se tornaria. O time também não tinha passado muito tempo com a tecnologia do 32X antes de sermos direcionados a focar na plataforma secreta V08, e daí no Saturn.
Não houve ideia clara inicial de qual plataforma receberia Sonic X-treme. Algumas fontes, como Senn, afirmam que ele nasceu no Mega Drive, migrou primeiro para o 32X, e depois para projetos natimortos como o Saturn V08 (um cancelado hardware da Sega em parceria com a nVidia), até acabar no Saturn.
Ainda na fase 32X, Goddard fez uma demo que agradou Shinobu Toyoda, então vice-presidente da Sega da América. Ela era capaz de renderizar "milhares de sprites" com efeitos como rotação e escala a 60 FPS. Mas havia problema com a geração dos tradicionais padrões xadrezes de Sonic, já que "o 32X só podia desenhar algumas centenas de polígonos" com textura.
Foi quando começaram migrações, primeiro para o Saturn (provisoriamente chamado de Sonic Saturn e Sonic Ringworlds), como explicou Goddard:
Esperávamos ter tudo funcionando quando começamos a trabalhar numa nova etapa, em que Sonic estava sendo proposto para o Saturn, e ainda não tínhamos solução para o mundo em que Sonic correria. Finalmente contratamos o outro programador que eu precisava porque eu vinha fazendo tudo sozinho por quase 3 meses.
O programador em questão era Ofer Alon, e novos membros vieram. Mas se Toyoda os tranquilizava dizendo que o jogo não precisava ter todas as características do Sonic 2D (seria difícil fidelidade máxima enquanto aprendiam a usar 3D), qualquer resultado apresentado fora da STI era tratado como insatisfatório para os parâmetros altos da franquia.
"Mostrávamos qualquer coisa e imediatamente começavam a perguntar 'Onde estão os anéis e o que você coleta?', 'Não tem os loopings?', 'Quanto rápido podemos ir?'. Estávamos pegando um sidescroller 3D e indo para o total 3D, e queriam textura com correção de perspectiva e tudo a 60 FPS. Era pura insanidade!", disse Goddard, acrescentando que "então fomos checar o Saturn e era ainda pior do que as histórias que você ouve hoje sobre programar no PlayStation 2".
Ou seja: extremamente difícil de programar.
Perda de foco
Entre migrações, muita coisa aconteceu. Foram várias mudanças na equipe nos pulos entre plataformas, incluindo a saída de Kosaka e outros assumindo o comando. Ao mesmo tempo em que a animação perdia interesse do público, o foco saiu do 32X. O jogo foi perdendo o prumo cada vez mais.
"Sonic X-treme foi concebido como um jogo do 32X a princípio", garantiu o designer Stieg Hedlund, do STI, completando que apesar disso, "ele se moveu por várias encarnações do Saturn e o super secreto Saturn V08 em que estivemos trabalhando por um tempo com a nVidia". O tempo todo, a incerteza quanto à plataforma não era dissipada, e demos eram feitas com base em achismo das especificações.
Segundo Wallis, a transição do 32X para o Saturn foi devido ao mau desempenho do acessório, e nesse ponto — da percepção do fracasso do 32X — que consideraram a nova plataforma com a nVidia.
"X-Treme ficou no limbo por alguns meses durante aquele tempo [quando a Sega mudava o foco do 32X para o Saturn] enquanto debates internos e avaliações de tecnologia foram feitas no V08", afirmou.
Para Goddard, em algum ponto, o STI tentou tirar Sonic X-treme do Saturn e colocar na tecnologia NV1. Um dos nomes considerados nessa fase foi Sonic Boom. A NV1 tinha recursos impossíveis no Saturn, e X-treme só não saiu nela porque a Sega perdeu a convicção nos polígonos quadriláteros (padrão tanto do Saturn quanto da NV1):
Ouvi meio por cima uma conversa do Roger [Hector, diretor do STI] e outros no escritório do Ofer um dia, sobre alguma nova plataforma matadora do Saturn em que estavam trabalhando. Fiquei incomodado por estar de fora daquela conversa e naquele ponto eu realmente queria sair do Sonic. Supliquei ao Robert Morgan [programador e produtor] que me deixasse fazer algo original, que não tivesse amarras com licenças, e que Ofer assumiria a liderança do Sonic, e Robert muito amigavelmente fez isso.
Naquele ponto, a coisa gira até o Chris Senn e Ofer trabalhando naquela bizarra engine que tinha severas limitações, e Chris Coffin [Christina Coffin, programadora] fazendo seu jogos bônus por contra própria.
A nova plataforma era a NV1 da nVidia. [...] A NV1 podia fazer triângulos, quadriláteros e polígonos de 9 pontos, que eram muito interessantes e permitiam fazer curvas quase perfeitas. Você podia fazer uma esfera em 6 polígonos! [...] Ele fazia também uma incrível iluminação de cores, outra que o Saturn não fazia. [...] Coisa muito bacana...
Mas a Sega não ligava! Nossos grandes competidores, a SegaSoft (com ciúme do financiamento ilimitado que o STI tinha) também não ligava, todos só queriam saber de triângulos. Tem uma história paralela nisso, que teria sido uma grande mudança na questão de renderização, e hoje você provavelmente veria poucos apps usando triângulos, não fosse por umas cagadas da nVidia.
Após um período de testes, o time voltou com X-treme para o Saturn (só então com o título provisório final, Sonic X-treme), porque apesar dos recursos adicionais principalmente quanto à geração de curvas, o NV1 era tão frustrante para programar quanto o Saturn. "A coisa era TERRÍVEL para montar o pipeline gráfico", afirmou Goddard. "Era como cortar um cabo de mil fios e tentar descobrir qual era ligado com qual".
Mesmo assim, o programador vinha evoluindo com o hardware, chegando a produzir um protótipo de jogo com um UFO que impressionou Michael Hara, então executivo da nVidia. Mais tarde, a Sega deixaria a nVidia em definitivo, para desapontamento de Goddard, que desligou-se pouco depois.
Desentendimentos internos
Com a dificuldade de definir a melhor engine, não havia interação entre designers e programadores. Uma das engines de Ofer, por exemplo, tinha câmera que se movia para frente e para trás no ambiente, mas não girava. Ao mesmo tempo, o designer Yasuhara Hirokazu, veterano da série e um dos que haviam saído da Sega do Japão para trabalhar na STI, produzia conceitos impossíveis de realizar com aquele motor.
Numa das demos, Naka foi conferir o andamento, e numa atitude menos que animadora, só sacudiu a cabeça e disse "boa sorte". Em outro ponto, em março de 1996, Nakayama conferiu a demo POV, feita numa versão antiga da engine que usavam. Havia outra demo bem mais polida, relacionada aos chefes de fase, usando a engine de Coffin. A primeira, com taxa de quadros ruim, causou péssima impressão no presidente, que ordenou que tudo fosse feito baseado na demo de Coffin. Derivava ali o Projeto Condor, exclusivo para o Saturn.
Ele [Nakayama] disse com firmeza "Façam o jogo assim" [como na engine de Coffin]. Dada a importância de Nakayama-san, estando no topo da cadeia de comando, ninguém iria contra seu decreto. Significava que a versão POV do jogo, muito rudimentar e baseada numa versão antiga do editor de Ofer, não continuaria.
Além disso, infelizmente significava que aquela versão em que Ofer e eu havíamos trabalhado (e que era ANOS-LUZ superior a qualquer coisa vista até então) não podia oficialmente continuar sob o banner do Saturn. Se Ofer e eu tivéssemos mostrado nossa versão a Nakayama-san, tenho certeza de que ele teria gostado o bastante para nos deixar continuar.
Foi uma mudança drástica de rumos, que inutilizou meses de trabalho a poucos meses da data de entrega. Com o aperto na agenda e as limitações da engine do Project Condor, eles faziam turnos insanos de 20 horas para tentar completar a tarefa. Coffin praticamente se mudou para a Sega, tudo para tentar entregar o jogo antes do Natal de 1996.
Segundo alguns, o golpe mais duro viria na administração de Bernie Stolar, quando este teria conseguido para o time a engine de Nights. Ela providenciaria recursos que ainda não tinham, e provavelmente reduziria o tempo de entrega do resultado. Yuji Naka, ao saber, teria protestado e em forma de ultimato, prometido deixar a Sega se continuassem usando sua engine. Assim ela foi tirada da equipe, inutilizando mais duas semanas de trabalho.
Senn, porém, nega essa versão da história, dizendo que a engine de Nights nunca foi usada, apenas discutida. "A engine de chefes criada por Christina Coffin dava uma aparência similar, ainda que simplificada, a da engine de NiGHTS, mas a verdadeira engine nunca foi compartilhada ou usada", afirmou em 2008.
Para fechar o ciclo tenebroso, Coffin teve severa pneumonia somada a estresse, e Senn ficou doente a ponto dos médicos lhe darem apenas seis meses de vida (não se confirmou). O resumo do caos foi dado por Senn num FAQ sobre o projeto:
Sonic X-treme passou por muitas mudanças e dificuldades que teriam testado até os mais experientes veteranos da indústria. Falta de experiência, decisões de mercado ruins, ego, política, ambição exagerada, falta de timing, comunicação ruim... Esses foram alguns dos fatores que lançaram o desastre sobre o jogo.
Trazer Sonic para o 3D pela primeira vez era um desafio enorme — não só pela jogabilidade, mas pelo ponto de vista tecnológico, também. Isto fez o trabalho de definir como seria o game mais difícil, mas dificilmente tanto quanto as mudanças de tecnologia e plataforma. Nos primeiros 18 meses, o time passou por três mudanças de programador, causando basicamente um reinício da tecnologia do jogo a casa vez.
Problemas como esse dilapidaram o orçamento e criaram mais pressão no time todo pelo caminho. Ironicamente, foi só bem perto do fim que a engine de Ofer Alon estava pronta para produção plena, quando a Sega teve que interromper o financiamento e cancelou o projeto.
Com Sonic inviável para o fim de 1996, a Sega optou por Nights, de Naka, como destaque natalino do Saturn. A solução (ou remendo) para o ouriço azul foi uma adaptação de Sonic 3D Blast, do Mega Drive.
Havia também uma versão paralela conhecida só como "Sonic Saturn", sendo desenvolvida por Peter Morawiec (codificador das fases bônus de Sonic 2), dentro da STI. Uma fase de bônus chamada de "Sonic Pool", a início feita para essa versão, quase foi portada para X-treme. Mas nem esse projeto seguiu, cancelado pelo estouro da agenda.
Ofer e Senn ainda portaram o código de X-treme que tinham e tentaram seguir com uma versão para PC, mas ao abordar a divisão responsável da Sega, foram vetados. Ali o projeto foi oficialmente encerrado. A engine de Ofer estava pronta para produção, mas com só quatro mundos criados por Senn desenvolvidos a no máximo 60%, a conclusão de tudo levaria no mínimo 6 meses.
Sonic X-treme parecia mesmo destinado a não existir. Em 2011, de acordo com o livro Raise and Fall of Sega, Naka confirmou que não estava gostando do trabalho, e que seu cancelamento foi um "alívio":
A razão de não ter existido um jogo de Sonic no Saturn foi porque estávamos realmente concentrados em NiGHTS. Também estávamos trabalhando em Sonic Adventure — originalmente planejado para o Saturn, mas como a Sega estava produzindo um novo hardware, o Dreamcast, recorremos a uma mudança para o Dreamcast, o hardware mais novo da época. Então é por isso que não há um jogo de Sonic no Saturn.
Quanto ao X-treme, não tenho certeza dos detalhes da razão do cancelamento. Mas vendo como ia, não era muito bom pela minha perspectiva. Então senti alívio quando ouvi que tinha sido cancelado.
Futuro?
Com o game cancelado, a série seguiu na mão dos japoneses, com Sonic Adventure. O Sonic Team ficou no comando, com Yuji Uekawa redesenhando os personagens para o mundo 3D, em 1997. Por anos, o destino do material produzido durante Sonic X-treme foi incerto, como o próprio motivo do cancelamento.
Só com a popularização da internet os fãs conseguiram contato com a equipe. O site Sonic Xtreme Compendium, mantido por Chris Senn, reuniu a maior quantidade de conteúdo que se tem notícia, mas está offline há anos (acessível através de um backup de terceiros aqui).
Nenhuma cópia da engine de Alon surgiu, ao contrário da versão de chefes de Coffin. Uma das primeiras após o nascimento do Project Condor, ela foi colocada em leilão no site ASSEMbler Games. Apesar de alguns esforços para que fosse comprada e colocada sob domínio pública, acabou perdida, indo parar numa coleção particular.
O último grande pacote de material descoberto foi em 2009, quando texturas e dados dos níveis vazou para o público. Com um programa de visualização dos arquivos, finalmente os fãs conseguiram dar uma espiada no que Senn e Alon vinham fazendo, apesar do formato não-jogável.
Fontes
- Sonic Retro - Sonic X-treme
- Sonic Retro - Sonic 16
- Sonic X-treme Compendium