Poucos assuntos podem causar atrito tão depressa numa reunião de família, no grupo do Whatsapp ou no almoço da empresa. Nem falar mal de cachorro ou bebê consegue te fazer parecer tão antipático e elitista quando criticar a dublagem brasileira de jogos e filmes.
E para meu azar, ou não, sou um dos que aprenderam a não apreciar o resultado do nobre ofício dos estúdios nacionais. "Aprenderam", porque sim, até certo ponto da vida adulta, eu também não ligava para o áudio original.
Claro que sempre vou pensar nas versões traduzidas de coisas que cresceram comigo, como Chaves e Stallone Cobra. Mas depois de certa idade, quando você resolve sair da zona de conforto e se arriscar pelo terreno acidentado e inóspito do áudio original, é uma viagem sem volta.
Só depois de começar é que você percebe – se tiver boa vontade – o quanto estava perdendo de conteúdo das produções ao preferir a dublagem.
Alguém alegará que isso não vale para quem não entende nada do idioma original. Por que jogar com diálogos em outro idioma se você não entende nada, certo?
Em outros tempos, eu concordaria. Não me imaginaria assistindo ou jogando algo em russo, chinês ou coreano. Aí lembro do quanto melhor foi a experiência com Shenmue em japonês, ainda que eu não entenda nada além de konichiwa e arigatō, e algumas outras palavras que você ouve Ryo repetir à exaustão, como sumimasen.
Aliás, se um dia jogar qualquer Shenmue, em especial os antigos do Dreamcast, nunca, em hipótese nenhuma, jogue com o áudio em inglês. Aviso de amigo.
Mas é só pra aprender outro idioma? É viralatismo? Sou um baba-ovo de americanos ou "estadunidenses"? É trollagem, estou querendo aparecer, é pseudocultismo? O que tem de tão ruim na dublagem brasileira?
Não é necessariamente a dublagem brasileira. É que a dublagem por si é uma merda (por vezes imprescindível) em alguns aspectos e você ainda não descobriu.
Retratos locais
O primeiro problema que me ocorre é a famosa "regionalização".
Nem gosto de ouvir falar sobre regionalização. Não tem que regionalizar nada, salvo exceções, como um conteúdo não vinculado a uma cultura ou ambiente. Exemplo: uma animação que se passa em outra galáxia, ou sobre animais numa floresta ou deserto genéricos. Não importa se o cenário é o Equador, Namíbia ou Alemanha, a não ser que viole regras elementares sem uma boa licença poética.
Já pensou uma animação estrelada por uma girafa do Amazonas? Bem...
Mas é diferente quando falamos de algo ligado a um lugar, cultura e tempo. Peguemos Fallout ou The Last of Us. São histórias sobre os Estados Unidos. Falam da cultura local, de guerras nucleares deles, pestes que se abateram sobre eles, hábitos e até produtos deles.
Aí alguém faz uma adaptação – regionalização – e enfia uma referência à cultura brasileira, porque... sei lá, precisa ficar mais palatável para o público daqui? Imagine você jogando algo sobre a França, a China, onde seja, e do nada um carinha começa a falar como gosta do Dolly, ♪ Dolly, Guaraná Dolly, O Melhoooor ♪.
O público brasileiro é tão idiota que não vai absorver o conteúdo como parte da cultura de outro país? Precisa de conforto regional? Fantasiei um pouco no exemplo, mas só um pouco. Não está muito longe do que fazem.
Sim, mas e daí?
E daí se Kratos do nada falar que gosta de Dolly, ou Lara Croft ser torcedora do Flamengo?
Eu não aceito. Por isso, evito dublagens como o diabo evitaria a cruz, se ele existisse. E se você aceita, mesmo que possa ouvir o original, não te acho "inferior" nem qualquer adjetivo negativo. Mas acho – aliás, tenho certeza – que está perdendo, sem se dar conta ou importar, a chance de consumir partes únicas da criação original.
A regionalização às vezes mata características interessantes ou até cruciais de personagens e lugares, como sotaques.
"Mas vai implicar com sotaque também?" Sim. Um personagem não é criado com sotaque porque o roteirista/escritor escolheu aquilo a esmo. Ele ou ela estava tentando imprimir uma marca, dizer algo sobre o personagem. De onde ele veio, qual o passado, a criação, onde viveu, etc. São elementos da construção.
Aí a dublagem entra em ação e transforma um cara com sotaque jamaicano pesado, como o Jacob de GTA IV, num carioca que fala "féishta". Ou desaparece com o sotaque árabe de outro. Se o personagem não tem complexidade suficiente e dependia daquilo, você nem vai desconfiar dos vínculos com jamaicanos ou árabes, ou talvez só perca o efeito enfático do sotaque porque ele deixou de existir na dublagem.
De Guarujá à dupla caipira
Na infância, ninguém questionava porque Chaves queria assistir ao filme do Pelé. Pelé é Pelé, uma marca universal. Mas causava certa confusão como ele queria ir à Acapulco, mas depois estava no hotel no Guarujá, segundo a dublagem. É um seriado mexicano, o moleque é mexicano, a vila é mexicana, tudo é mexicano.
Mas ele foi pra onde? Guarujá. 🤣 Pra que enfiar Guarujá na história? Por que complicar o que não tem razão pra ser complicado?
A alteração de gírias é outro ponto questionável, já que elas refletem a cultura da época, o lugar, o tempo – o zeitgeist, diria eu, fingindo naturalidade, se fosse pseudocult. Algo não me parece certo se eu pegar um "Ready for the mosh pit, shaka brah" e traduzir como "Pronta para pular do palco, mermão".
Life is Strange, por sinal, é outro caso de trama sobre os Estados Unidos – não fosse assim, o original poderia ser situado na França, país do estúdio que o produziu. É sobre jovens americanos*, no estilo de vida americano, em cidades americanas típicas ou estereotípicas. É um retrato local.
Mas em Wavelengths, DLC de True Colors, uma das personagens tem em sua rede social uma citação a Evidências, de Chitãozinho e Xororó (sei, não é deles, mas você entendeu), só porque a música é meio que um meme.
Qual o sentido de uma moça dos Estados Unidos conhecer Evidências? A prima da irmã da tia da sua amiga que mora lá apresentou pra alguém e ela conhece, logo é super normal? Não. Não é comum, e pior: não estava no original, não tem relação com a personagem e sua construção. Não faz sentido; está lá só pra dar um "conforto" para o público local.
Pra mim, esse tipo de coisa não causa conforto. Só estranheza, perturbação. Fico me perguntando qual seria a citação original. Personagens são montados por esse tipo de detalhe.
Okie dokie?
Em Fallout da HBO, uma das marcas da protagonista Lucy é o bordão "okie dokie" diante das dificuldades. Tenho certeza que qualquer um, depois de ouvi-la uma ou duas vezes, entenderia o sentido e caso não, teria a chance de aprender.
Mas a versão brasileira não quis saber de okie dokie e meteu um "TÁ BOM ENTÃO".
Até lembra o sentido do original: um termo bobinho de concordância, meio sarcástico, às vezes infantil. Por outro lado, qual a dificuldade em mantê-lo? A gente usa OK, é quase igual.
E se a expressão tiver impacto futuro na trama (nesse caso talvez não, mas é um exemplo)? O brasileiro fica boiando, porque foi regionalizado com o "tá bom então". É meio que o lema dela, e não dá mais pra mudar. Ou pode, mas voltamos ao caso do Chaves que ia pra Acapulco, foi pro Guarujá, e depois estava na praia em Acapulco.
Alguns defendem que toda palavra seja traduzida em produções transmitidas aqui, sem exceção. Uma coisa meio totalitária-patriótica-nacionalista-catastrofista, em que anglicismos são uma doença degenerativa da nação, levando à perdição linguística. Não forço palavras no idioma local só por ver e jogar coisas em inglês, se existe equivalente em uso corriqueiro.
Não vou falar "rato" se o hábito de "mouse" está aqui desde o início da internet, mas também não preciso de "vou pegar um job", "estou sem budget pra sair" ou "preciso fazer um workout hoje". E se rato cair no gosto popular (você, lendo em Portugal, já usa o rato), o mouse some.
Conhecer tais palavras me servem, inclusive, para ampliar o vocabulário em inglês, não vandalizar o ouvido alheio com frases tipo "meu mindset hoje é de um coach vencedor". É questão de bom senso.
Atuação, mas qual?
Outro ponto é como a dublagem, especialmente em jogos, mata para o público local a parte mais vital do trabalho dos atores originais.
Voltando a The Last of Us: Ashley Johnson é uma atriz premiada, renomada e amada mundo afora pela interpretação de Ellie. O público que joga o game dublado pouco sabe do trabalho dela, porque só conhecem a captura de movimentos, e qualquer outro ator poderia tê-la feito. Já emoção, personalidade, não podem ser substituídos sem mudar o próprio personagem. Vira outro.
As qualidades dela como atriz estão distantes desse público. Eles não sabem como ela grita ou chora naquele evento ⛳, ou suas entonações quando brinca ou discute com Joel na Part I. Conhecem o trabalho da dubladora, Luiza Caspary.
Basta pra você? Okie dokie, mas não diga que gosta ou odeia Ashley Johnson, Troy Baker, Laura Bailey, Christopher Judge ou qualquer outro, porque se nunca jogou com áudio original, você mal os conhece.
Softcore BR
O terceiro ponto que não gosto nas dublagens é a suavização de conteúdos. Como se o Brasil fosse alguma ditadura religiosa que veta palavras imorais, os scripts nacionais tiram palavrões e atenuam diálogos. Qual o ponto, se já existe a classificação indicativa nas obras?
Com isso, a maioria do público que nunca viu além do dublado, não tem noção das coisas que os personagens de Samuel L. Jackson dizem. Beira o cômico como traduzem um "Fuck you, asshole" como "Vá se ferrar, seu otário".
É importante? Sim, é importante porque como disse antes, muitas gírias, inclusive ofensivas, são parte da cultura retratada na obra e da construção do personagem. Eu igualmente odiaria assistir uma versão dublada em inglês de filmes nacionais que transformassem um termo local em algo falado em dialetos do Brooklin ou Londres.
O último dos meus problemas com a dublagem, acho, vem mudando nos últimos anos, mas não muito: a entonação exageradamente formal. É como se cada frase precisasse soar como uma aula de dicção. Quase não se usa linguagem coloquial nos diálogos, ou usam com formalidade que quebra a naturalidade de um diálogo que seria informal. Hermes e Renato e Casseta e Planeta faziam chacota disso há décadas.
Por que alguém conversando com amigos ou no meio de um tiroteio, pronuncia cada palavra de forma impecável? A variação em relação aos originais é gritante em alguns casos, e só com áudio original tal coisa é notada – como o nacional às vezes transforma um grito gutural em um berro esquisito, ou um choro compulsivo em choramingo teatral de quinta categoria.
Tão ruim que é bom
Nada presta? Não é bem assim. A dublagem pode fazer filmes meia-boca virarem ícones. As traduções bizarras de Stallone Cobra como "Você é um cocô" nem se comparam com o papinho murcho da fonte – tanto pelo texto, quanto pela voz de André Filho, que dublou o ator até meados de 1992.
Tem como não gostar disso?
Original:
Hey, dirt bag! You're a lousy shot. I don't like lousy shots.
You wasted a kid for nothing. Now I think it's time to waste you.
Dublagem Mitológica do Brasil™:
Cretino! Você adora dar tiro. Eu odeio gente assim.
Você é imaturo. Você é um cocô... E eu vou matar você.
Não se perdeu nada de relevante, tirando que ele citava a morte de um rapaz. Cobra não virou fã de música brasileira, nem fala como um monge tibetano. A essência é a mesma. Assim, quanto menos a produção trata de uma cultura específica – e Cobra é um filme sobre polícia e bandidos, cujos retratos são universais na cultura ocidental das metrópoles –, maior a chance da dublagem funcionar.
Desde que não inventem de fazer Kratos citar Avassaladores. "Sou f0da, te esculacho, sou sinistro, melhor que seu marido". Aí, colega, é só entrar nas opções e mudar o idioma.