ou Pra muitos de nós, trabalhar numa empresa de games seria a realização de um sonho. Imagine então trabalhar na Nintendo, um dinossauro vivo que passou por literalmente todas as fases da indústria que ajudou a criar nos anos 60 e a ressuscitar nos anos 80.
Mas especialmente para mulheres, chegar lá não foi a experiência desejada. Pelo contrário, o que algumas funcionárias e ex-funcionárias encontraram, segundo relatos recentes, foi um ambiente nocivo, com patrões abusivos e a velha mentalidade "clube de meninos" que permeia o negócio.
Em abril, um ex-funcionário terceirizado acusou a Nintendo of America de coagir e encerrar contratos dos que queriam entrar em sindicatos. A Big N tomaria as ações através de uma empresa à parte, que contrata tais colaboradores, chamada Aston Carter.
A Nintendo rebateu dizendo que sequer sabia da intenção deles, e que o autor da ação foi demitido por vazar dados confidenciais, não por sugerir sindicalização.
Ainda em abril, o Kotaku esteve em contato com ao menos quatro pessoas ligadas ao caso. Eles confirmaram que a Nintendo pratica retaliação e vigilância sobre os funcionários. Terceirizados que falaram sobre sindicalização numa reunião tiveram contratos encerrados.
Eles confirmaram também que o funcionário em questão havia compartilhado algo indevido em redes sociais, mas a Nintendo já havia lidado com casos semelhantes com uma simples advertência. Logo, a interrupção do contrato pareceu retaliação pelo assunto levantado por ele.
Buraco mais fundo
Segundo outros dez funcionários e ex-funcionários da Nintendo of America que trabalharam na sede em Washington, a empresa trata terceirizados como "segunda classe". Entre os prejuízos em relação aos titulares da casa estão salários mais baixos (US$ 16 por hora) e ficar sem trabalhar por meses entre projetos, período no qual perdem benefícios como plano de saúde.
Em comparação, recentemente a Activision Blizzard anunciou que contrataria todos os funcionários de teste em tempo integral, com todos os benefícios e salário de US$ 20 a hora.
Alcançar tal valor, segundo um dos ex-contratados da Nintendo, seria algo "raro". Vale notar que a Activision Blizzard foi alvo de acusações similares recentes, levando a uma greve em julho.
O tratamento dispensado aos terceirizados seria tão ruim na Nintendo que sequer acesso ao básico teriam. Ao menos uma contratada do controle de qualidade, Jelena Džamonja, afirma que teve tratamento médico negado após sofrer um acidente nas dependências da empresa. Teriam negado até um carro para levá-la a um hospital.
"A ideia de ser contratada em tempo integral é como uma cenoura num bastão para manter você suportando [o péssimo tratamento]", disse Džamonja usando a metáfora sobre perseguir algo inalcançável mas que parece próximo.
E só vai piorando. A própria Džamonja levou uma reprimenda dos superiores por questionar se a Nintendo tinha planos para lidar com a crescente onda anti-asiática nos Estados Unidos durante a pandemia de Covid-19. Outra funcionária alegou sofrer repreensão em 2021 por questionar a obrigatoriedade de trabalho presencial, sendo imunodeprimida.
Clube dos meninos
A Nintendo foi descrita como um ambiente nocivo às mulheres. Uma contratada identificada como Hannah contou ao Kotaku em junho que abandonou seu emprego dos sonhos em 2019 após inúmeros problemas.
A gota d'água foi levar aos superiores o caso de um tradutor que compartilhou imagens e comentários de teor sexual com a personagem Paimon, de Genshin Impact – que tem aparência, voz e comportamento infantilizados.
"A Nintendo era quase como um pesadelo. É triste porque eu amo a Nintendo, cresci com a Nintendo", contou Hannah. "Estava tão empolgada por me juntar à Nintendo quando entrei lá e pensei que chegaria a algum lugar".
Mas a resposta à denúncia foi decepcionante. Seus superiores disseram que ela deveria ser mais discreta e a única punição ao tradutor – funcionário titular – foi passar por um treinamento sobre assédio sexual. A Aerotek (terceirizada da Nintendo, depois reorganizada como Astor Carter) já havia demitido um contratado antes, por fazer comentários sobre a cor da calcinha de Hannah.
Entre os entrevistados pelo Kotaku, o relato unânime foi da Nintendo ter um ambiente corporativo onde "o comportamento sexista era comum e pouca ação tomada para lidar com isto". Segundo mulheres, havia pouca esperança de promoção ou contrato permanente, exceto para os homens.
"Sua chance era provavelmente pior como garota", disse uma testadora que trabalhou em The Legend of Zelda: Breath of the Wild. "Normalmente [quem recebe as oportunidades] são os caras. Eles são todos amigos, eles assistem o Super Bowl juntos".
Se perguntavam aos gerentes como obter a contratação, funcionárias recebiam dicas vagas. Parecia proposital, segundo a testadora Valerie Allison.
"Havia muito favoritismo, clientelismo", disse outra ex-contratada, que trabalhou em games da era 3DS e Wii U. "Presumia-se que se uma mulher estivesse indo bem, era porque tinha amizade com a pessoa certa".
Assédio
Hannah e ao menos duas ex-contratadas relataram assédio sexual.
"Havia um homem [funcionário da Nintendo] que estava sempre fazendo comentários e piadas realmente nojentas, mas era amigo de todos lá. Todos o amavam", contou. "Eu e outras funcionárias não gostávamos daquilo, mas não podíamos falar nada porque se você disser algo, é chamada de 'muito sensível'".
Um dos acusados de assédio por Hannah e "várias outras fontes", segundo o Kotaku, é Melvin Forrest, veterano de testes da Nintendo e responsável pela formação das equipes da então Aerotek. Ele era conhecido pelo hábito de flertar e fazer comentários impertinentes sobre a aparência das mulheres.
Outro contratado, Chris Ollis, contou que durante um evento em 2010, um certo veterano do departamento de testes na Nintendo chamado Eric Bush queria que ele perguntasse a alguma funcionária a cor de sua calcinha.
Tal comportamento colegial era (ou ainda é) comum entre funcionários da Nintendo, quase sempre visando as funcionárias terceirizadas. Se atinge também as integrais, elas não parecem dispostas a compartilhar e comprometer seus postos.
"[O setor de teste] às vezes parecia uma fraternidade estudantil", disse outra ex-funcionária que trabalhou lá em 2017. Ela evitava funcionários mais poderosos mas ainda lidava com piadas inadequadas de colegas. Se reclamava, homens diziam que ela precisava ser "dura o bastante" para trabalhar ali.
Quando passou a ignorar os absurdos que ouvia, seu supervisor a elogiou por ser mais forte que "outra garota que havia chorado no escritório".
Stalking e discriminação
Uma ex-contratada lembrou que um testador mais experiente a perseguiu entre julho de 2011 e fevereiro de 2012. Ele fazia ligações e mandava mensagens de texto "perturbadoras", segundo quem as viu.
O Kotaku confirmou a veracidade do relato com ao menos três fontes. A vítima de stalking chorava e tinha ataques de pânico diários, mas nada foi feito porque o homem tinha amigos influentes na Aerotek.
"Ele disse com todas as letras que faria eu ser despedida se o denunciasse", contou a vítima.
Hannah revelou sofrer assédio na Nintendo desde 2012. Um gerente bem mais velho fez investidas e quando ela revelou ser lésbica, ouviu um "Que triste". Outros que receberam negativas insistiram, dizendo que ela estava "jogando duro" e se tinha mesmo certeza. Era tão desagradável que ela se manteve razoavelmente afastada dos homens, o que acredita ter prejudicado sua carreira.
Outras contratadas lésbicas foram advertidas quando vistas de mãos dadas em intervalos do trabalho. O supervisor citou uma política de "não tocar"; segundo elas, a regra raramente era usada contra casais heterossexuais em demonstrações de afeto público.
Pelo contrário. Segundo Allison, membros da Nintendo usavam o cadastro de terceirizadas como um "pool de encontros", um tipo de Tinder particular – sem consentimento delas, claro. Mulheres experientes avisavam as mais novas que se abordadas por algum funcionário interessado, não deveriam rejeitá-los com rispidez para evitar consequências profissionais.
Manter relação íntima com algum funcionário titular teria "vantagens", como a chance de ir à tradicional festa de Natal da Nintendo – onde terceirizados não entram, exceto como acompanhantes.
Diferenças no pagamento
Hannah também denunciou a diferença de pagamento entre homens e mulheres, mesmo quando têm a mesma função.
Já com nove anos de casa, ela descobriu que um funcionário abaixo dela, no mesmo departamento, ganhava US$ 19 a hora – ela recebia US$ 16. Após reclamar, conseguiu um aumento para US$ 18.
Outra mulher disse que recebeu o mesmo salário por seis anos, tendo aumento só quando ameaçou sair. Outra teve uma oferta que quase dobraria seu salário em uma empresa de games não revelada – demonstração de quão baixos são os salários dos terceirizados da Nintendo.
A Aerotek tem histórico conturbado. Ano passado, aceitaram pagar US$ 3 milhões após serem acusados de discriminação de raça e gênero na seleção de pessoal. Dois meses antes, haviam se dividido em três marcas, sendo a Aston Carter responsável por seguir administrando o departamento de testes da Nintendo.
Em fevereiro, um membro da Lotcheck (departamento que faz a checagem final em jogos de consoles) enviou uma carta, em nome dos funcionários de teste, ao comando da Nintendo. Dizia que o setor é "inseguro" e "profundamente desconfortável para as mulheres". Segundo uma delas, havia orientação a não procurar o RH ao sentir algo errado pois poderia ter havido uma "má interpretação".
Apesar de tudo, muitas mulheres optaram por continuar na Aerotek devido à relação com a Nintendo. A esperança era que a situação melhorasse e enfim o sonho antigo deixasse de ter contornos de pesadelo. Contudo, fontes dizem que tal lealdade não é recíproca.
"Você é um produto descartável", disse uma ex-testadora que trabalhou em Breath of the Wild. "E é lembrado que se não quiser fazer algo, alguém vai adorar ficar com a sua vaga".