Fallout é uma das melhores adaptações de game para TV

Primeiro, quero esclarecer que só joguei Fallout 4 (minha análise do final aqui) e sei que isso pode – e provavelmente vai – influenciar minha percepção sobre o quanto o seriado da Amazon se aproxima dos jogos. Estamos falando de um produto independente, mesmo que baseado neles, então tal fato nem deveria ser considerado, mas acho relevante avisar.

Com apenas oito episódios, meu primeiro pensamento antes de assisti-los foi "está bonito, mas não deve funcionar como história". Fallout está por aí desde 1997, com um lore gigantesco, centenas de personagens e todo aquele rolo de vaults e suas subtramas. Daria pra fazer algo envolvente em tão pouco tempo?

Errei. A aposta do diretor Jonathan Nolan – que idealizou a série após jogar Fallout 3, olha aí – foi concentrar a narrativa em três núcleos que os jogadores conhecem bem. E ficou bom.

Não contém spoilers importantes.

Três núcleos

Lucy: da ingenuidade no mundo ideal do vault 33 para o hiperviolento da superfície.

A protagonista é Lucy MacLean (Ella Purnell), uma nativa do vault 33 que me parece a mais unidimensional dos personagens centrais. O 33 é um vault "feliz e alegre", onde todos vivem suas vidinhas idílicas, comunitárias e artificiais ao extremo. Todos sorriem, se ajudam e são felizes como no mundo dos Teletubbies.

Lucy é o suco do 33: dócil como um cachorrinho e sorridente como uma criança, está prestes a se casar – e casamentos ali estão mais para contratos de reprodução do que relações sentimentais –, tem um pai carinhoso, um irmão afetuoso, um primo apaixonado (com quem teve certas "brincadeiras" no passado), mas lembranças vagas da mãe.

Mesmo depois da merda acertar o ventilador e ela ir parar na superfície, seu comportamento é, por quase toda a série, reflexo da educação que teve. Ela é capaz de apontar uma arma de tranquilizante para alguém enquanto pede por favor, e soltar seu bordão "okie dokie" antes de cumprir uma missão como decepar uma cabeça.

Esses atos, contudo, sempre visam um objetivo nobre; ela é uma alma pura de um universo regrado e perfeito, lançada num mundo real, hiperviolento e sem regras. Talvez Lucy mude nas próximas temporadas – parece ser o caminho aberto.

Obcecado por vingança, Maximus é um personagem de moralidade questionável.

O segundo protagonista é Maximus, jovem membro da Brotherhood of Steel nascido na primeira civilização na superfície depois do holocausto nuclear. Desde as primeiras cenas, fica claro ser um personagem de caráter complexo, pra dizer o mínimo.

Se Lucy é um desenho cômico do vault fofinho, Maximus é o retrato da própria irmandade: egocêntrico e vingativo, seu desejo de ser um herói o faz tomar decisões moralmente questionáveis mais de uma vez. Seu freio moral será Lucy, que o salva quando uma de suas decisões questionáveis o condena à morte preso em uma Power Armor sem energia. Anti-herói, duvido que alguém não tenha uma opinião forte sobre Maximus. Passei boa parte dos episódios torcendo contra ele e qualquer final diferente teria sido decepcionante. Ele termina exatamente onde deveria estar.

Fechando o trio, um necrótico que um dia atendeu pelo nome de Cooper Howard, quando era uma estrela de Hollywood que também fazia propagandas da Vault-Tec e odiava "comunistas", como chamava os inimigos do ideal capitalista perfeito da América. Grande parte da violência do seriado vem pelas armas de Cooper, que sem qualquer apreço pela vida e humanidade, tortura, mata e às vezes come quem cruza seu caminho.

As interações entre Cooper e Lucy oferecem parte das melhores cenas cômicas em Fallout.

A série de flashbacks com sua vida antes da guerra explica muito não só sobre ele, mas também é a melhor referência da base da história, com revelações sobre os principais antagonistas e costurando passado e presente.

Quase como um jogo

Mais até que a versão televisiva de The Last of Us, a adaptação de Fallout tem ambientação absurdamente fiel ao jogo. Cenários e figurinos são perfeitos; combinados com a fotografia, dá quase pra acreditar que algumas cenas são cutscenes de um novo capítulo da franquia e não um show de TV. O universo é enriquecido por elementos que mesmo que não participem da trama, aparecem esporadicamente como easter eggs.

No primeiro episódio, vemos o que deve ser um modelo de Assaultron desativado. Muitas armas e itens dão as caras, como os onipresentes Pip-Boy e Nuka-Cola, RadAway e os stimpaks – mais eficientes que nunca.

No primeiro tiroteio importante, há uma homenagem ao V.A.T.S., o sistema de mira que resulta em cenas sangrentas em câmera-lenta, que parecem tiradas direto dos games. E na parte final, quem gostou de Codsworth em Fallout 4 terá uma bela surpresa.

Lucy tenta ajudar todos o tempo inteiro, o que a coloca em perigo constante no mundo violento da superfície.

Um dos trunfos da série, porém, é não seguir à risca eventos de nenhum dos jogos, tendo todo seu repertório de lugares, facções e itens à disposição. A história poderia ser um Fallout 5, com uma trama entre vários vaults que cresce em complexidade – são ao menos quatro, os de número 31, 32, 33 e 4. Isso, junto com o tempo curto da temporada, fez com que muita coisa não fosse abordada a fundo, como as facções.

Embora haja um grupo rebelde importante na superfície, não ficou claro imediatamente pra mim se eram Minuteman ou raiders comuns (depois entendi que eram parte do New California Republic). O Instituto e o Railroad não deram as caras, assim como – e essa foi decepcionante – os Super Mutantes. Não há sequer uma vaga participação deles, o que achei uma pena porque imagino que teriam rendido boas cenas cômicas.

A rede de intrigas entre vaults se intensifica conforme fatos emergem e há pontos que demandam uma nova temporada, como um problema com o suprimento de água do 33.

Sarcasmo extremo

Apesar do enredo com críticas ao capitalismo, militarismo e pirâmides sociais, Fallout tem forte ênfase no absurdo e no sátira. Há vários momentos cômicos, a maioria protagonizada por Lucy, que tal como Maximus, ignora aspectos básicos sobre a vida na superfície.

Os habitantes do vault 33 são inocentes beirando a infantilidade, exceto por alguns...

Criada sob o propósito de servir à Vault-Tec – e no caso dela, seria procriar com qualquer parceiro que lhe fosse determinado –, ela oferece sexo ao colega com a inocência de quem oferece um sorvete. E ele, criado sob o militarismo fanático semirreligioso da irmandade, sequer entende direito o que isso significa.

Os conflitos de Lucy e Cooper são ainda melhores, explorando o choque de realidades e personalidades, como ao ser vendida para um mercado de partes humanas e acreditar que seria escrava sexual, para no fim ainda salvar a vida do necrótico, porque a natureza dela é ajudar, ajudar e ajudar.

O abuso da comédia bizarra é o único ponto que me causou pequeno incômodo. Não por ela em si, que é marca da série, mas por soar além do limite, às vezes. Cada inserção no Vault 33 mais parece uma aventura numa terra de abobalhados, como o primo apaixonado e covarde de Lucy. Mas na maioria do tempo, funciona e faz a temporada ser muito agradável de assistir. Você vai devorar os oito episódios sem notar o tempo passar.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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