Nintendo barrou GameCube multimídia por humildade, segundo ex-membro da SGI

Na segunda metade dos anos 90, o mercado de videogames começava a se mover rumo ao 3D. A quinta geração de consoles seria dominada pelo PlayStation original, mas a Nintendo também teve importante papel com o Nintendo 64.

O chip gráfico foi criado pela Silicon Graphics Inc., que dominava a computação gráfica de ponta mas queria o dinheiro do consumo de massa. A parceria com um dos mais renomados produtores de videogames parecia perfeita. Bastava descobrir como adaptar a tecnologia que tinham a máquinas mais acessíveis, centradas no entretenimento doméstico.

A missão coube a Tim Van Hook, engenheiro que experimentava com 3D desde os anos 70. Em texto que publicou em 2013, na ocasião do falecimento de Hiroshi Yamauchi, ele falou sobre seu aprendizado trabalhando junto à Big N. A mentalidade tradicionalista da casa barrou ou alterou vários projetos, incluindo o GameCube – que teria sido bem diferente do que chegou às lojas.

Foram várias fases: dentro da SGI, Van Hook fez o design do Reality Coprocessor. Depois, como membro-fundador da ArtX, ajudou a criar o chip Flipper, do GameCube. Por último, antes da ArtX ser comprada pela ATI, trabalhou no Wii.

onyx 2 rack sgi
SGI Onyx2: Silicon produzia 3D de ponta com esse tipo de monstro (e outros menores) e parceria com Nintendo foi entrada no setor de consumo de massa. No caso do Onyx2, a configuração simples tinha 8 CPUs MIPS R10000 64-bit e 4 GB de RAM; até 16 racks como esse podiam ser conectados, funcionando como um único supercomputador. E sim, a proporção é real.

Mesmo entre eles havia dúvida. Parecia impossível manter o nível gráfico de estações caríssimas num videogame.

Difícil de impressionar

"Como poucos funcionários da SGI acreditavam que seria possível, o trabalho sobrou para mim, o novato", brincou Van Hook. "Sem a menor modéstia, batizamos o programa que mais tarde conduziria ao Nintendo 64: 'Project Reality'".

Mas o pessoal da Nintendo não ficou impressionado com os paranauês gráficos:

Durante reuniões iniciais com engenheiros da Nintendo, exibimos nossas melhores demos. Os levamos por desfiladeiros de arenito simulados com dados de satélite, mostramos folhas translúcidas de árvores balançar com a brisa e explosões pulverizadas de polígonos fractais. Nossos convidados assistiram educadamente. Esperávamos ouvir o quanto legal nosso material era. O porta-voz nos disse, com deferência "Mas... Um game é... diversão".

Um mantra na Nintendo sempre foi diversão ≠ complexidade. O criador do Game Boy, Gunpei Yokoi, deixou como legado o "Pensamento Lateral": seu método envolvia empregar componentes já experimentados, mas de formas criativas e divertidas. Yamauchi, Shigeru Miyamoto, Genyo Takeda: o comando pensava de forma similar.

Ou seja: não interessava quanta firula os gráficos da SGI fossem capazes – ainda que quisessem entrar na era 3D, a casa manteria seu ethos.

"Não importa o quão incrível e deslumbrante seja sua tecnologia, não se esqueça para que ela serve, especialmente se você for um tecnólogo e se divertiu ao criá-la", concluiu Van Hook. "A tecnologia só funciona se tornar o entretenimento, bem... divertido".

Sem filmes

Mais tarde, com o Reality já adiantado, Van Hook explicou aos engenheiros que a arquitetura suportaria não só gráficos 3D, mas também processamento de imagem e descompressão de vídeo.

"Imaginem as possibilidades! Crianças poderão jogar games, assistir filmes, até assistir filmes dentro dos games! Games em filmes!", tentou argumentar. Mas de novo, a reação foi morna. "Nossos clientes da Nintendo ouviram meu discurso, tomaram notas, conversaram entre eles, uma pausa. 'Mas... Um filme não é um game. O jogador joga o game".

"Lembre-se de porque o público se conectou ao conteúdo", Van Hook tomou como lição do evento, concordando com a decisão.

GameCube seria bem diferente

satoru iwata e shigeru miyamoto
Satoru Iwata e Miyamoto em 2001, apresentando o GameCube. Console foi desenhado com foco só nos jogos. Mas se dependesse da ArtX...

Com o Nintendo 64 lançado, as partes começaram a discutir a próxima plataforma, que viria a ser o GameCube (então chamado de Dolphin). A Sega tinha saído do campo, mas Sony e Microsoft estavam prontas para apresentar consoles com conteúdo multimídia, acesso à internet, leitor de DVD, etc.

Lógico que nada disso parecia seduzir a Nintendo. A ArtX imaginou que a parceira tentaria lutar no mesmo terreno das outras, mas como lembrou Van Hook, não foi o que aconteceu. Com uma humildade quase surreal para quem conhece o histórico de autoconfiança (às vezes flertando com a arrogância) da Nintendo:

Preparamos nossa proposta competitiva abrangente, um "motor multimídia" universal. Claro, custaria mais e a produção das primeiras unidades teria que ser subsidiada pela venda de games. A Nintendo considerou nossa visão. Esperamos. Finalmente eles explicaram que não poderiam seguir por aquele caminho. "Somos uma empresa de games muito pequena. Não temos os recursos daquelas outras [Sony e Microsoft]".

Como resultado, o GameCube foi desenvolvido como um videogame e só. Nada de artifícios que a Nintendo considerava caros e fora de seu alvo. "Um pouco de humildade ajuda muito", disse Van Hook. "Escolha suas batalhas, organize seu fluxo de caixa, faça o que você faz de melhor".

Bela história, mas o desfecho da decisão a torna questionável. O PlayStation 2 – com leitor de DVD e outros recursos que a Nintendo não teve interesse – dominou a sexta geração. O GameCube amargou um terceiro lugar, perdendo até para o novato Xbox por cerca de dois milhões de unidades.

Browser de Mario

Van Hook também contou sobre um projeto arrojado de navegador que a Nintendo, adivinhe?, barrou.

A internet tinha explodido na época e tivemos essa ideia brilhante: um navegador similar a um jogo, para crianças, baseado no castelo de Mario onde tudo seria encontrado ao explorar o lugar certo. Pets no jardim, e-mail na caixa de correio, amigos na sala de jogos. Sem necessidade de pesquisas e construído seguro contra sites de conteúdo impróprio além dos muros do castelo.

Teria sido lançado entre o Nintendo 64 e a próxima geração de consoles. A Nintendo examinou o protótipo e não viu sentido naquilo. Crianças presas aos domínios de um castelo, para acessar conteúdo restrito ao que o software permitia?

"Mas... A internet é livre. E crianças não estão acostumadas a ficar confinadas."

nintendo 64 de van hook
Nintendo 64 que Tim Van Hook recebeu com selo de agradecimento da SGI.

Van Hook ainda trabalharia no design do Wii antes da ArtX ser adquirida pela ATI. E como reconhecimento, levou um exemplar de cada console pra casa.

"Essas são algumas coisas que peguei com o Mario. Ah, e um Nintendo 64, um GameCube e um Wii grátis para educar e/ou corromper meus filhos pequenos."

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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