The Last of Us – teoria de fã diz que FEDRA eram os heróis

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Contém spoilers sobre The Last of Us e Fallout 4.

Desde o lançamento de The Last of Us, há quase dez anos, vemos que no mundo pós apocalíptico da trama, não há papéis muito definidos de heróis e vilões. Quase todos são complexos, como as pessoas reais. Joel, protagonista que cruza um país matando monstros, já foi um monstro. Contrabandistas tentam sobreviver. Até canibais mostram aspectos sociais aceitáveis (fora comer gente, claro).

Na luta entre a milícia Vaga-Lumes e o FEDRA – último resquício do que um dia foi o governo dos Estados Unidos –, o primeiro aparece como um "poder popular", logo ganhando mais simpatia do público.

Foi assim que você viu? O FEDRA como uma força militar opressora e os Vaga-Lumes como uma resposta natural àquela opressão? Não se culpe, parece ser a visão da maioria.

Eu mesmo nunca gostei desse negócio de militar dando as cartas sem poder que o contrapese. Em Fallout 4, por exemplo, só não mandei uma bomba naquela nave voadora da Irmandade do Aço porque tinha um alvo melhor para explodir.

Mesmo que alguns aleguem – com razão – que a trama não força um lado ou outro como os mocinhos, não dá pra negar que o FEDRA gera um sentimento negativo. Parece nos encaminhar a isso em cada pichação, bilhete, história perdida.

Mas e se o tempo todos eles eram os mocinhos?

É que explora algumas teorias de fãs, como essa. Será que a Naughty Dog estava o tempo todo mandando pistas falsas, ou com o perdão pela referência, "estava lá o tempo todo e só você não viu"?

Parelelo real

procurados do fedra last of us 2
Ellie observa cartazes de procurados: e se o FEDRA não estivesse errado? É a teoria lançada por alguns fãs da série.

Desde 2020, o mundo acompanha uma "briga" (até sem aspas) entre governos tentando impedir a disseminação da Covid-19. Às vezes, com medidas impopulares como lockdowns, toques de recolher, fechamento de áreas públicas e espaço aéreo. Partes da sociedade se recusa a seguir os procedimentos, alguns sem querer entender a necessidade deles.

Por mais que medidas emergenciais sejam necessárias e tenham - sim - funcionado - em todo o mundo, com resultados ruins quando ignoradas, elas causam desconforto nas pessoas, é inegável. Organizar uma sociedade (no sentido amplo da palavra, em que a maioria entende seu papel na vida do próximo) assustada e desconfortável é difícil, como vimos com autoridades, celebridades, esportistas e outros influenciadores ignorando regras e de forma deliberada ou não, confundindo a massa.

Estou falando do mundo real ou do jogo?

De ambos. Voltando à ficção: você está no meio de um surto de uma doença nova. Ela mata (ou pior) em poucos dias, é altamente transmissível e não há vacinas. Apelar à razão com as pessoas não funciona, ao menos não até que ela tenha se espalhado de forma irreversível.

É onde entrou a FEDRA, a "Agência Federal de Resposta a Desastres". Como um órgão do governo, eles precisam conter o caos e manter o máximo de civis em segurança. E realmente tentam, inclusive numa das cenas mais revoltantes/emocionantes do jogo de estreia.

Mataram a Sarah!

A visão desfavorável dos militares se apresenta logo nos primeiros 30 minutos de The Last of Us, quando Sarah é morta por um soldado enquanto Joel tentava fugir do caos na cidade. Atiraram a sangue-frio num pai carregando a filha.

last of us sarah e joel
Sarah e Joel abordados pelo militar em cena de The Last of Us.

A cena deixa dúvida sobre quem é o vilão? Talvez não, mas mudemos o ponto de vista. Imagine-se na posição não só daquele soldado, mas de quem lhe deu o comando para atirar. Imagine que você é um general quando a cidade está em pandemônio, com um vírus se alastrando. Militares tentam manter um perímetro a salvo enquanto pessoas infectadas estão atacando e comendo outras.

Eles PRECISAM manter o perímetro seguro. O próprio Joel seria beneficiado pelas futuras zonas de quarentena, como conta à Ellie num diálogo perto do final. São medidas drásticas para um momento drástico e inédito da humanidade. Eles entenderam a gravidade.

Voltando ao ponto: está lá o soldado patrulhando quando encontra um cara coberto de sangue, carregando uma menina ferida. Ele não sabe de quem é o sangue, se estão contaminados. Seu superior também não e ordenou: ninguém entra no perímetro protegido.

A ordem é proteger a comunidade e não pessoas específicas. Eles já podem ter dezenas, centenas ou até milhares para cuidar.

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Joel nega ajuda à família na estrada, protegendo seu próprio grupo. Errado, certo?

Não parece certo fuzilar ao primeiro contato, mas o que fazer? Deixar um possível infectado passar e testar a sorte? A decisão precisa ser tomada em segundos. Não há tempo de isolá-los, o surto acabou de estourar.

Minutos antes, Joel havia colocado como prioridade a segurança de seu grupo, ou seja, Tommy e Sarah, ao negar ajuda a uma família na estrada. "Eles têm uma criança", protestou Tommy, recebendo de volta um "Nós também". Diante da indignação do irmão, Joel justifica com um "Você não viu o que eu vi", falando da casa do vizinho infectado, Jimmy. O jogador também não viu, mas ele provavelmente matou a mulher e o filho.

Joel estava errado? Os militares estavam?

FEDRA vs Vaga-Lumes

Segundo essa linha de raciocínio, a FEDRA não seria, portanto, um vilão. Seria o braço remanescente do exército tentando debelar o surto e manter alguma segurança e ordem. Ainda na introdução, o jogador descobre a sequência de eventos: a pandemia se espalhou, OMS e governos falharam em obter uma vacina. Os governos não conseguiam (ao menos no ponto de vista dos militares) manter a ordem, fosse por restrições legais ou inação. Vem o estado de sítio, determina-se toque de recolher, seguido de lei marcial.

Surge o Vaga-Lumes, exigindo o retorno do governo. O grupo paramilitar aparece como opositora aos militares. Eles atacam zonas de quarentena e insuflam a população a se rebelar contra problemas comuns durante aquele caos, como o racionamento de alimentos.

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Mesmo após 20 anos, vemos que a FEDRA conseguiu, a duras penas, manter zonas protegidas contra hordas de infectados. O preço foi altíssimo. Infectados executados com injeções que matam em segundos. Controle dos alimentos, controle social. Pessoas com fome.

Mas como seria sem controle? A resposta parece óbvia: um caos ainda maior, sem possibilidade de manter aquele espaço seguro. Mas os Vaga-Lumes discordam, questionando a FEDRA, insuflando a população contra o que chamam de tirania e por fim, atacando.

Ativismo x terrorismo

Se a gente extrapolar um grupo como os Vaga-Lumes para o cenário de mundo real, a atividade deles fica um tanto sombria, no mínimo. Façamos um comparativo com a nossa situação atual.

Digamos que a Covid-19 fosse de extrema letalidade. Algo como um vírus altamente contagioso e que mata 100% dos infectados entre 24 e 72 horas. Quase desconhecido, sem cura, sem tratamento, sem vacina. Não se esperaria algo muito diferente do que vemos no jogo: fechamento de fronteiras, criação de zonas seguras, controle social gradualmente mais intenso, etc.

Aí surge um grupo reclamando que a vida nas zonas de quarentena é ruim (de fato, não é boa), que os militares são corruptos (possivelmente são) e... explodindo coisas.

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Vaga-Lumes explodindo veículo ao atacar a zona de quarentena. Vilões, heróis ou neutros?

A primeira vez em que o jogador vê os Vaga-Lumes em ação é lançando bombas e tiros na zona de quarentena de Boston – o que a líder do grupo, Marlene, chama de "autodefesa". Mas eles não se importam com danos colaterais (civis feridos ou mortos). Como devem se lembrar, Joel é ferido naquela cena, enquanto o soldado da FEDRA o mandava sair rapidamente ali para sua própria segurança.

Como a própria Marlene admite pouco depois, o grupo vinha sendo dizimado pelas forças militares. Ou seja: sequer são fortes ou organizados para manter a si mesmos, imagine proteger civis. A situação é tão ruim que ela precisa confiar Ellie, nada menos que a possível cura da humanidade, a um contrabandista sem treinamento militar.

E imagine menos ainda que essa patota seja capaz de criar uma vacina, matando uma criança no processo. E muito menos lidar com a produção e distribuição em larga escala. Os Vaga-Lumes parecem um exército mambembe, cheios de ideais rebeldes adolescentes, mas pouca consciência do que é prático ou não.

A palavra de Marlene, como líder do grupo, não pode ser tomada como neutra – ela defende uma causa e não vê a própria limitação. Por todo o caminho, o que mais se vê são Vaga-Lumes mortos.

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Marlene tem uma opinião exageradamente otimista e heroica sobre o próprio grupo.

Mais um lembrete disso: mais tarde, vemos Joel sozinho exterminar dezenas dos melhores soldados que tinham, praticamente os levando à uma debandada.

Como lembra o autor da teoria, as práticas dos Vaga-Lumes passam longe de qualquer resquício de legalidade até em tempos de guerra. Em Pittsburgh, por exemplo, notas indicam que o grupo atacou a zona de quarentena guardada pela FEDRA, praticando um massacre. Entre outras barbáries, incendiaram militares vivos, levando a uma punição posterior com a execução de alguns Vaga-Lumes capturados.

Ou seja: enquanto o exército mantinha as zonas seguras, abreviava a vida de infectados com uma injeção de morte instantânea e fuzilava traidores sem tortura, os Vaga-Lumes comemoravam massacres e queimavam pessoas vivas.

Pra piorar, depois de tomar o poder, a milícia passou a usar os moradores como soldados, levando a descontentamento dos locais. Ansiosos por novas conquistas, não lidaram com a missão e perderam o controle da área, com vários Vaga-Lumes sendo executados pelos próprios moradores.

Eventualmente, civis entraram em choque com Caçadores e a área mergulhou de vez no caos, encontrada por Joel e Ellie sob controle dos bandidos, com a morte de muitos habitantes do que foi uma zona segura sob administração da FEDRA.

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Depois de agitar a revolta dos civis contra a FEDRA, os Vaga-Lumes não deram conta de manter o controle da área, que mergulhou no caos sob domínio de Hunters.

É pra isso que insistiram tanto tirar a FEDRA de lá?

Busca pela vacina: mais incompetência

Embora Tommy tenha sido um Vaga-Lume, ele perdeu a fé no grupo em algum momento. Nunca foi explicada a razão, mas podem ter sido os métodos sanguinários (algo que ele tinha como trauma de seu tempo viajando com Joel) ou as metas utópicas.

Ao chegar à Universidade do Colorado, outrora uma importante base para o grupo, o jogador encontra várias notas. Elas demonstram como o grupo era quase amador, com reclamações sobre guardas que dormem durante a vigília, falta de suprimentos básicos e baixas entre os soldados vencidos por infectados. Se a gente comparar com a estrutura do WLF, da Part II, chega a ser covardia.

A incompetência se espalha do campo militar ao científico. Uma gravação revela que um dos pesquisadores mais importantes morreu ao ser mordido por um macaco contaminado. Ao que tudo indica, ele se matou para evitar desenvolver o fungo, mas deixou registrado os anos de busca sem qualquer resultado.

Antiética pós-apocalipse

Um ponto central dos questionamentos sobre o grupo é a ética na decisão de matar Ellie para talvez ter uma vacina... Os Vaga-Lumes queriam mesmo curar o mundo ou ter um trunfo sobre a FEDRA e outras milícias?

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Ethan e Marlene: tão competentes que foram dizimados por um único homem, que sequer tinha treinamento militar.

Como a gravação da universidade explica, eles já haviam testado vacinas experimentais. Todas retumbantes fracassos. Ellie era mais uma esperança – a maior em 20 anos de pandemia. E eles tomam uma série de decisões... questionáveis.

Pra começar: como Marlene foi confiar Ellie, sabendo o que ela representava, aos dois smugglers em troca de armas? Beira a insanidade. A penúltima gravação dela, encontrada no hospital de Boston, é uma confissão da própria incompetência, subestimando os soldados e achando que seria melhor deixar a menina ser levada por dois contrabandistas só porque o irmão dele disse que era confiável.

"Mas não tinha ninguém". Em poucas horas após o encontro, Marlene levou Tess até as armas, num lugar que ela descrevia como perigoso e por isso, não permitiria que Ellie fosse junto. Era mesmo tão difícil?

A segunda: a decisão acelerada de sacrificar Ellie. Entre sua chegada desacordada ao hospital e a mesa de cirurgia, não haviam se passado 24 horas. É pouco para estudar e tomar uma decisão tão drástica, gastando a melhor cartada da humanidade (e a vida de uma criança).

E se não desse certo? E se a solução fosse outra e dependesse da menina viva? E se o Dr. Jerry e outros que a testaram estivessem errados?

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Ellie seria sacrificada sem ter a chance de opinar a respeito. Ainda que ela concordasse, era muito melhor do que a FEDRA faria?

A terceira é a decisão de sacrificá-la sem consentimento. Talvez com medo de Ellie discordar – após 20 anos, dois dias ou seis meses a mais fariam tanta diferença? Os Vaga-Lumes já tinham decidido por ela. Não permitiriam que ninguém os interrompesse.

O grande e último erro foi o mais humano de todos e partiu de Marlene: contar a verdade a Joel. Com uma mentira como "ela morreu afogada", tudo teria sido diferente. Vários Vaga-Lumes queriam matar Joel, mas nem seria necessário; como sempre, um comportamento "exemplar" da milícia. A decisão de Marlene foi a de uma mulher cheia de culpa e não prática, como a do militar que resultou na morte de Sarah.

Seria o golpe de misericórdia no grupo e nela própria.

Verdadeiros heróis?

Trazendo de volta ao exemplo do mundo real: aquela versão superletal da Covid-19 dizimando a humanidade. Forças armadas de vários países organizam zonas de quarentena para proteger o que sobrou da civilização. Um grupo digno de Brancaleone passa a fazer oposição aos militares, bombardeando áreas protegidas, ferindo civis e espalhando terror com um discurso sobre liberdade que vai da inocência à inconsequência. Apoiaria?

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Durante a série, a visão de todos os demais grupos sobre a FEDRA não é das melhores.

Claro que as práticas da FEDRA também são questionáveis em várias formas. A escassez de alimentos, por exemplo: em alguns pontos, sugere-se que militares tinham fartura de comida enquanto a população formava filas para obter um mísero cartão de ração.

Mas não dá pra negar que olhando bem, a FEDRA parecia ter uma estrutura mais preparada para "salvar a humanidade" do que os Vaga-Lumes. Quem sabe, numa versão futura, tenhamos respostas que faltam, como a razão para Tommy abandonar a causa.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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