A TV e o cinema, especialmente americanos, têm um histórico nefasto em melar excelentes conteúdos originais, sejam livros ou filmes de outros continentes. Muita gente que conhece Asas do Desejo até hoje não perdoa Hollywood por transformá-lo no meloso romance Cidade dos Anjos. O mesmo vale para inúmeras obras baseadas em games, que até o lançamento de Sonic, em 2020, e com boa vontade, algumas das produções baseadas em Lara Croft, tinham recepções terríveis, com justiça.
No meu entendimento, é um problema da mídia, não necessariamente de atores, roteiristas ou diretores, embora contribuam pro bem e pro mal.
Quando anunciaram o seriado baseado em The Last of Us, a gente tinha todos os motivos pra desconfiar. A maioria comemorou porque não seria da Netflix e sim da HBO, mas o velho problema da TV estava lá: como converter o conteúdo extremamente cru, rude e realista, com poucas concessões, em algo aceitável para a ampla audiência televisiva e seu formato em particular? Seria possível ter o melhor dos dois mundos?
Aqui e ali e em lugar nenhum

A primeira temporada funcionou cortando quase todos os conflitos com infectados, porque supostamente não teriam função narrativa, do que discordo em partes. Mas deu pra levar. Bella Ramsey também funcionou como a Ellie de 14 anos, tal como a versão mais sensível de Joel. Foi uma boa temporada.
Mas o segundo game é depressão, morte e ódio do começo ao fim. Teriam que contar a história de outro jeito para manter tudo "fofinho" o bastante para a TV, e tentaram. Só não esperava que as coisas fossem tão caóticas. Não precisa ser formado em literatura pra notar que o enredo da segunda temporada de The Last of Us é um tanto confuso, até perdido entre ser algo novo (veja a primeira temporada de Fallout, por exemplo) e copiar e colar retalhos do jogo de 2020, sem saber que direção tomar com convicção.
Não era questão de querer tudo igual, de copiar e colar as cenas do jogo na série, mas muita coisa desnecessária ocupa preciosos minutos, enquanto outras sumiram ou foram alteradas sem motivo exceto ser diferente.
Craig Mazin, que de novo escreveu todos os episódios — coautor com Neil Druckmann e Halley Gross nos dois últimos — optou por remover o mistério em torno de Abby. Então, em vez de vermos o ato de barbárie que ela comete em Jackson pelos olhos de Ellie e só mais tarde descobrirmos seus motivos, o diretor entrega de cara sua motivação.
No jogo, o motivo era óbvio: Druckmann nos daria o controle da "vilã" mais tarde. Ele queria criar aquele conflito interno no jogador, de ter a então odiosa Abby nas mãos e, pouco a pouco, entender seu lado. Ao revelar a história de fundo no episódio um, o público passa todo o tempo julgando as reações de Ellie em vez de pular cegamente em sua jornada. Uma escolha questionável, no mínimo.
Apocalipse suave

Não é o maior problema. Um deles é Ramsey. Como disse, ela não funciona na versão mais velha de Ellie. Não porque seja má atriz, feia ou outra razão que detratores arranjaram, mas porque as escolhas de Mazin foram ruins e especialmente tenebrosas para ela, que não convence de forma alguma como a Ellie de 19 anos — tanto que momentos mais toleráveis na temporada são nos flashbacks de aniversários de 15 e 16 anos, quando sua infantilidade é justificada em pequenos gestos, como enfiar a mão num bolo e escalar o dinossauro.
Qual o problema da mídia? Apesar do crescimento econômico da indústria, os games ainda atingem uma demografia menor que a TV. A primeira temporada foi assistida por um público de 32 milhões de pessoas (após 90 dias da estreia), enquanto o primeiro jogo, entre as versões PS3 e Remastered do PS4, vendeu 20 milhões de cópias. A segunda temporada alcançou 37 milhões de pessoas, contra pouco mais de 10 milhões do jogo.
O padrão é que se elimine o que possa chocar os mais sensíveis. Só que coisas chocantes como um cavalo explodindo e pessoas seriamente perturbadas por traumas dão veracidade àquele mundo sem civilização de The Last of Us. Senti isso na primeira temporada, e ficou ainda mais escancarado na segunda, com a eliminação de detalhes como as mortes de Alice e Estrela, uma série de diálogos que beiram o drama de novela global, e a transformação da personalidade de Ellie.
Enquanto a Ellie original é uma jovem mulher endurecida, triste, traumatizada e cheia de recursos graças à experiência na estrada com Joel, descobrindo sentimentos por Dina de um jeito maduro e culminando numa parceria total, a versão de Mazin continua infantilizada, com risinhos bobos no meio do caos, um triângulo romântico juvenil e cheio de hostilidades desnecessárias com Jesse, e incapaz de lidar com assuntos sérios como um adulto.
No episódio 4, o ápice da bagunça vem na cena em que Ellie e Dina descobrem os segredos mútuos da imunidade e da gravidez, sem qualquer impacto — e bisonhamente finalizada com uma cena de sexo. O "vou ser pai" foi esculhambado por parte da audiência e nem adianta tachá-los todos de homofóbicos, porque antes fosse só esse o problema.
Nerfada

Ellie parece uma criança com déficit de atenção em meio a uma guerra, em que a amada está em risco, a figura paterna foi massacrada em sua frente (parece que nem lembra, na maior parte do tempo) e ela mesma enfrenta uma milícia fortemente armada e treinada, mas segue seu caminho de risinho em risinho, levando duras de Dina — muito boa versão da ultracarismática Isabela Merced, embora também sofra com o enredo sofrível — e tomando pelo menos DOIS ESCULACHOS COM CAPS E NEGRITO de Jesse, que parece mais pai dela do que o próprio Joel, e que surge como um cavaleiro branco para salvá-la da morte certa num armazém cheio de Perseguidores.
É àquilo que Ellie foi reduzida: uma criança em risco. A determinada, embora perdida Ellie clássica, não existe. Ela é guiada por outras pessoas, e as coloca em risco constante.
Além da Ellie sem noção, a temporada tem cenas que fazem pouco sentido e mais quebram o ritmo do que importa, gastando tempo de tela sem servir a algo narrativamente relevante. A mais óbvia é a pequena desventura na ilha dos Serafitas, sabiamente cortada do jogo porque não conduzia a trama a lugar algum. Seu propósito na série, por suposição, é mostrar à protagonista que, como avisara Jesse, aquela não era a guerra dela e tanto WLF quanto Serafitas teriam prazer em estripá-la viva.
Mas poderiam ter feito isso de outras maneiras, sem uma viagem absurda, cheia de soluções difíceis de aceitar. Como Ellie foi parar na ilha, tão longe do aquário, levada pela correnteza? Não bastasse, os Serafitas a poupam no último segundo, e ela ainda encontra um bote estrategicamente esperando, para retomar o rumo.
Não dá, até pra ficção há limite de mentira aceitável.
A montagem está perdida, como se quisessem recortar partes icônicas do jogo e montá-las de outro jeito coerente. Às vezes fica bom, como na morte de Nora (não gostei da remoção de algumas linhas importantes como o "posso fazer isso rápido, ou muito pior"), e outras não, deixando de fazer sentido para quem tem a primeira exposição aos eventos.

A cena do violão com Joel, jogada para o episódio dos flashbacks, não dá certo, porque Ellie toca Future Days antes, no dia em que acha o teatro. O público é obrigado a lembrar do capítulo anterior para entender porque ela tocou aquilo, o que torna natimorto qualquer sentimento que o evento deveria ter. Como alguém vai se emocionar vendo Ellie tocar a música com melancolia, se não sabem o significado pessoal?
Das adições, a que achei mais interessante foi a batalha contra infectados em Jackson, que serve como ótima desculpa para os moradores não terem caçado o time de Abby imediatamente. Também ficou crível a forma como Abby descobre quem é Joel, já que mesmo para sua forma aposentada, era pouco realista aquele que só faltou mostrar a carteira de identidade para um grupo de estranhos armados perto da cidade.
Também foi benéfico, ainda que mal explorado, o regresso ao passado de Isaac, que o mostra como um sujeito idealista que vai se perdendo — e assim nivelado a outros personagens. O inesperado retorno até a juventude de Joel trouxe um fato sobre o relógio e ajudou a reafirmar sua tendência de protetor, e delata um pequeno erro de datas: sua lápide mostra que nasceu em 1987. Não poderia ter seis anos naquela cena, em 1983, nem 16 anos no dia da pandemia. Lápide errada.
O personagem que mais ganhou, contudo, talvez fosse o mais improvável: Seth. De um simples velhote preconceituoso sem qualquer camada, ganhou outras: avô, ex-policial, forte senso comunitário. Serviu de algo? Não muito: a arma que entrega à Ellie sequer é vista em uso depois. Mas nunca é bom ter personagens unidimensionais; eles empobrecem qualquer universo. A inserção dos esporos não mostrou muito a que veio, tal como as gavinhas e a rede neural de infectados da temporada 1. Muito curta, a série parece sofrer com falta de espaço para desenvolver elementos além dos centrais.
Na descendente

De drama em drama, a temporada 2 começa bem e vai se perdendo, e um dos melhores momentos é quando regressa aos aniversários de Ellie, como a razoavelmente bem recriada, ainda que reduzida, sequência do museu — não por coincidência, as coisas andam melhor quando Ellie é criança. Não há o que se questionar também sobre cenários e produção, sendo o ponto mais alto.
Mas ao voltar ao presente e nos entregar a mulher quase sem cacoetes de sobrevivente, que não tem ideia do que é triangulação e precisa ser supervisionada para não morrer assim que bota os pés fora de Jackson, penso com certa preocupação como farão para que ela seja capaz de enfrentar uma "ótima soldada" como Abby, como diz Lee. Entre tantas opções comentadas como Maisie Williams, Sophia Lillis, Cailee Spaeny e a própria Kaitlyn Dever, Ramsey agora me parece ter sido a menos apropriada — de novo, não por alguma das razões citadas por aí, mas porque nos momentos mais dramáticos, ela não chega lá, como um cantor que vai bem nas notas baixas e médias, mas não alcança as altas. Tive vontade de largar a série após a morte de Nora, na cena em que Ellie é cuidada por Dina no camarim, porque quase toda a dramaticidade original sumiu, e aquele é um ponto crucial do mergulho dela no abismo da vingança.
Se na segunda temporada as coisas foram assim, imagine lá pela quarta — sim, parece que fatiarão o que falta da história em duas temporadas, uma até a fazenda e depois o resto em Santa Barbara. Dos males, ao menos um pequeno alívio: Dever me pareceu excelente como Abby (fora aquele monólogo risível sobre a beleza de Joel) e a terceira temporada promete com o foco nela e Tommy a caçando.
Só não podem demorar. Se tiver outro intervalo de dois anos, é difícil acreditar que muitos ainda terão interesse.