Matrix Resurrections é um grande fan service com um filme no meio

Esse post tem spoilers menores do filme, como a nova profissão de Thomas Anderson (sem revelações importantes). Siga por conta própria.

Lançado essa semana, Matrix Resurrections é aquele filme que muita gente jamais imaginou que veria. Provavelmente nem a co-criadora, Lana Wachowski, que deixa isso implícito ou não tanto num dos diálogos, quando Neo (Keanu Reeves) ouve do sócio (Jonathan Groff, como um inconvencional Agente Smith) que "a Warner Bros. vai fazer com ou sem nós" – no caso, um quarto game.

Por que game? Neo e Trinity foram ressuscitados, você já sabia. Ambos estão de volta aos pods, sem memórias do passado. Neo não é mais aquele Thomas Anderson, programador de uma empresa de software chamada Meta Cortex. Ele é um game designer, de uma desenvolvedora chamada Deus Machina, que "por acaso" criou uma franquia chamada The Matrix.

thomas anderson game awards matrix ressurrections
Thomas Anderson é um renomado game designer em Matrix Resurrections.

The Matrix fez Thomas ser renomado mundialmente. Mas décadas depois, enquanto trabalha em outro jogo, ele se vê forçado a criar uma sequência – algo que prometeu jamais fazer. A semelhança com as irmãs Wachowski, que davam a franquia de filmes como fechada após Matrix Revolutions, naturalmente não é coincidência.

Considerando o conjunto da obra, Wachowski talvez fizesse bem em não remexer no passado. Se Reloaded e Revolutions já não chegavam na qualidade do primeiro da série (missão dificílima, justo lembrar), por que acreditar que seria possível fazê-lo vinte anos depois, sem o impacto tecnológico de bullet times e enredos de ficção envolvendo internet, algo que funcionava no início dos anos 2000?

Não funciona mesmo. Resurrections até tem momentos e não rasteja com a boca na sarjeta como o lamentável Revolutions. Mas no fundo é um fan service em formato de filme. E pior: não é nada sutil, com explicação demais, piadas de tiozão do churrasco e nenhuma novidade que faça dele indispensável.

o analista matrix ressurrections
O analista: olhos azuis, roupa azul, óculos de armação azul, borboleta azul, pílulas azuis: precisava mesmo de tanta referência?

A desculpa para trazer Neo e Trinity de volta até serve. E a sequência inicial do filme é boa. Neo – ou melhor, Thomas Anderson – vive sua rotina infernal de trabalho, com pressão corporativa e um grande vazio existencial. Reeves serve de novo com perfeição ao personagem, mesmo que Neo não seja o "velho" Neo, como nota Smith em uma das lutas.

Sem Zion para libertar, ele parece mais desorientado que nunca, sempre precisando de alguém para guiá-lo. Sem a Oráculo e com um Morpheus que está ali mas não está (já vamos falar dele), seus mentores são várias mulheres. Primeiro, a ótima Bugs (Jessica Henwick), que caberia fácil como nova Trinity num remake. Depois Niobe (Jada Pinkett Smith, com cinco quilos de maquiagem para envelhecê-la 60 anos), depois Sati (Pryianka Chopri) e por fim, entregando a própria vida nas mãos de Trinity (Carrie-Anne Moss).

Nenhum problema nisso, mas se espera o Neo quase Superman dos primeiros filmes, esqueça. Não há um momento de protagonismo exuberante dele, que chega a contar até com uma providencial ajuda de Smith. Pois é.

Já Trinity, após passar quase o tempo todo dormente na Matrix e vivendo sua vida artificial, continua chutadora de bundas como antes ou até mais, como se vê perto do final. Neo ainda pode ser O Escolhido, mas já não faz tanto sentido, com o crescimento de importância do papel de Trinity em sua própria existência.

thomas anderson matrix ressurrections
Neo e Trinity distraídos em suas novas vidas após a ressurreição. A relação é ainda mais importante no enredo de Resurrections do que nos outros filmes.

Os dois, felizmente, têm a mesma química do passado. Já alguns retornos não são tão felizes. Hugo Weaving faz uma falta absurda; Groff se esforça, mas não funciona. Parece uma cópia muito ruim de um reboot fraco, tentando imitar falas clássicas em mais um pequeno ingrediente do pacote de nostalgia forçada.

O pior, contudo, é Morpheus. Antes uma figura respeitada e de liderança, o personagem ressurge interpretado por Yahya Abdul-Mateen II e... Minha nossa.

A culpa não é dele, claro. Transformaram o sujeito num tipo de comediante, cheio de piadinhas de gosto duvidoso até em momentos cruciais como o oferecimento das pílulas a Neo – algo que acontece num lugar nada dramático ou glamouroso. Mais um provável sinal de que Wachowski queria tornar a sequência uma grande paródia de si mesma. Sorte de Laurence Fishburne ter ficado de fora.

Num filme de pouco mais de 2 horas, há muito o que ser contado, o que reduz o tempo disponível para cada personagem. Vários ficam subutilizados, como Niobe, Sati, o Merovíngio (que não passa de um quase-cameo) e o próprio Smith, que não é o grande antagonista do passado – talvez exatamente pela falta marcante de Weaving.

smith matrix ressurrections
Jonathan Groff se esforça mas não tem cara de Smith, atuação de Smith, quase nada de Smith. Hugo Weaving é uma ausência sentida.

Bugs e o Analista se sobressaem muito sobre o resto; o resto da tripulação da Mnemosyne beira a irrelevância, ao contrário daquele time original que tinha personagens marcantes como Mouse, Switch e Cypher.

Com duas fases bem divididas entre o despertar e a vida fora da Matrix, o quarto filme é o mais equilibrado da série. A parte inicial é boa o bastante para ter lampejos do primeiro, enquanto a segunda não faz feio como Revolutions. As cenas de luta em geral agradam, como ao enfrentar Exilados e especialmente a boa sequência de perseguição antes do final. Algumas são emboladas e deixam a desejar, como a cena do trem, que parece um rolo sem fim.

A palavra-chave dessa sequência é "nostalgia". Sem o menor pudor, ele usa e abusa de cenas dos primeiros filmes, muitas vezes explicando coisas óbvias e deixando a impressão de "desnecessauro". Há muitos flashes de cenas e repetição de linhas, algumas claramente sem a menor necessidade a não ser agradar (?) fãs.

morpheus neo bugs matrix ressurrections
Resurrections abusa do uso de cenas dos primeiros filmes. No mau sentido mesmo.

Outro elemento central é que Resurrections não se leva muito a sério. Quase nada, na verdade. Alguns diálogos são risíveis (quando não deveriam ser) e outros puro esculacho, como o encontro entre Neo e Morpheus no banheiro, que parece mais uma sátira de Matrix do que um filme oficial da franquia. É uma pena, mas qualquer resquício de seriedade, principalmente do primeiro, não existe neste.

Matrix foi um dos filmes mais influentes da história da computação gráfica em cinema, mas em 2021, o mítico bullet time já não é novidade. Claro que sendo berço da ideia, ela volta reciclada pelo surpreendentemente bom personagem de Neil Patrick Harris, o Analista, na agônica cena envolvendo Trinity.

Mas de novo: não tem o mesmo impacto. Mesmo cenas de lutas contra enxames de inimigos não tem aquele "fator Uau" da clássica luta de Neo contra a horda de Smiths em Reloaded.

A dramaticidade visual, como Neo e Smith lutando na tempestade em Revolutions, também não impressiona. Alguns segmentos chamam atenção pela fotografia, como o tiroteio no escritório (que lembra um pouco a cena do lobby de Matrix, com fumaça, água e luzes) e a horda na rua, com muito fog e sombras, remetendo aos filmes de zumbis.

neo e trinity matrix ressurrections
A sequência de perseguição cheia de efeitos especiais é uma das melhores da série, mas já não tem o mesmo impacto dos filmes no início dos anos 2000.

No geral, o apelo está em efeitos especiais como a nova cidade, máquinas e emprego à exaustão de cenas do passado. Mas o tempo passa e o conjunto carece daquela aura de novidade dos anteriores.

Sem revolução

Não vá para o cinema ou streaming esperando uma revolução. Resurrections entrega um pacote mediano, lotado de referências ao passado e com alguns bons momentos entremeados por outros de ranger os dentes. É quase uma sátira de si mesmo, meio ácida e meio pateta, ironizando sem concessões desde as diversas interpretações de fãs sobre a série  ("É criptofascismo! É uma metáfora da exploração capitalista! É transpolítica!"), o nível de violência ("Gosto dos meus jogos grandes, barulhentos e burros!") até suas marcas registradas como o bullet time.

Apesar dos defeitos, parece ser a melhor das continuações e no fundo, foi legal saber o que aconteceu com Trinity, Neo, Zion e outros elementos após o trágico final de Revolutions. E melhor (ou pior): o final é aberto mais sequências.

RESUMO

Matrix Resurrections tem seus momentos, mas parece uma sátira de si mesmo, despindo-se sem ligar para sua aura cult. Se espera algo cabeçudo e sério como o primeiro, vai se decepcionar, mesmo com o monte de referências.
Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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