The Last of Us foi ótimo na TV, mas o jogo ainda é meu favorito

Você chegou aqui porque não gostou do título? Deve ter pensado "lá vem o chorão criar defeito", "quer igual ao jogo, então vá jogar", "nerdola", etc.

Não tem problema. O seriado The Last of Us, desde o primeiro episódio, gerou fãs e detratores como não se via há tempos na TV. Talvez Game of Thrones e Braking Bad tenham feito parecido, mas não na escala de haterismo e fanboysmo alcançada por TLoU.

Parte dos fãs tem razão: a versão televisiva não tinha obrigação de ser xerocada do jogo. Nem deveria, porque cada mídia tem peculiaridades (base da minha opinião, mas sigamos). Mas também não teria problema se seguisse fielmente os eventos originais, o que nem sempre aconteceu.

Afinal, o jogo não virou fenômeno à toa, sendo capitaneado pela história. Sejamos francos: como jogo, gameplay mesmo, TLoU não tem nada demais. É bom, não revolucionário, inovador, definidor de padrões. Além disso, o público não-gamer não tem obrigação de saber o quanto a trama já era fantástica desde 2013. Para estes, a série foi uma oportunidade única – não vão jogá-lo nunca, provavelmente.

the last of us logo tv hbo

Mas desde bem antes do enxutíssimo episódio final, transmitido ontem à noite, eu tinha a convicção de que não superaria o original, respeitando as ditas peculiaridades de suas mídias. Tanto que comecei a rascunhar este texto ainda no episódio 7, pois estava convicto de que o recado da série estava dado.

O programa de Mazin teve momentos tocantes e respeitou a base de Druckmann e Straley. Mas o formato acelerado da televisão e os poucos e curtos episódios não ajudam em certos momentos. Inclusive no crucial: nos conectar de forma profunda aos personagens, especialmente quanto à relação entre Joel e Ellie, o que no jogo funciona de forma impecável.

"Mas é TV, não dava pra fazer diferente". Dava. Certas mudanças e cortes pareceram não ter razão exceto ser diferente. E outras não causaram o impacto que a gente esperava. Ou que eu esperava.

E o episódio 3, e o Bill, hein, hein?

O episódio 3 sai de TLoU como o grande momento, o trunfo dos fãs, o cala-boca das rodas de conversa e chats de rede social. Há quem garanta que Nick Offerman leva o Emmy pela interpretação. E não é de se duvidar. Nem consigo apontar qual o melhor entre ele e Murray Bartlett, se houve um.

A maior vitória nem é a nova história, que por sinal é belíssima, assim como a fotografia, a trilha sonora e todo o resto. Se você não se emocionou em algum ponto – como quando os dois, já idosos e no dia derradeiro de suas vidas, andam pela cidade decrépita pela falta de cuidados, num visual de outono – você está morto ou em coma por dentro.

O maior mérito é como conseguiram contar as novas histórias de Bill e Frank, com suas divergências do material original, mesclando-a com perfeição ao arco principal. Ela recrudesce em Joel a memória do que entende como seu fracasso em proteger Sarah e Tess – e a força para continuar protegendo Ellie.

Seria fácil terem se perdido, contando uma história longa e desconexa, um grande filler, como acusam alguns detratores. Não foi filler porque não tinham razão para criar enchimento num seriado em que o maior problema, se não o único, foi a falta de tempo.

As divergências, porém, não saíram de graça. O primeiro preço foi privar o novo público de momentos como as interações entre Ellie e Bill. Não eram só alívio cômico; se não alteravam o cerne da jornada (e muita coisa não altera, se formos pensar assim), eram daqueles pontos que formavam a personalidade arredia e contestadora de Ellie.

É bom lembrar também da diferença de momentos. O público de hoje é diferente do público de 2013. Ela não poderia fazer chacota da gordura de Bill, por exemplo, o que fatalmente levaria ao cancelamento da personagem na internet. Por esse lado, foi uma mudança sagaz.

Ellie mostrando dedo para Bill em The Last of Us.
Certas cenas originais não seriam bem recebidas pela demografia mais ampla da TV, imagino.

O segundo é que se a gente não for permissivo com "licenças poéticas", tudo se tornou menos convincente – ainda que conveniente para os fins que a história buscava.

Bill e Frank mantendo um porto seguro, uma casa enorme, tudo bem conservado, por quase duas décadas? Um centro de recursos valiosos, atacado por saqueadores com frequência e protegida por uma cerca de arame reforçado, armadilhas e dois caras, sendo um sem qualquer cacoete de sobrevivente? Todos os saqueadores, ou só aqueles no Massachusetts, são incompetentes como os bandidos de Esqueceram de Mim.

"Mas no jogo também era assim". No jogo, o local era um inferno para qualquer invasor, ao ponto de se tornar um inferno também para os moradores. Até para Frank, que não suportou a barra e decidiu cair fora. A da TV é uma versão idílica da "cidade de Bill", enquanto o personagem original convivia com uma realidade mais crível, de armadilhas por toda parte, sujeira, precariedade e tragédia, não de belas casas, mesas com toalhas, vinhos e jardins.

A dinâmica do neurótico Bill com o parceiro Frank, o cenário, o ambiente me parecem mais verossímeis no material original. Não que tenha sido ruim. Como disse, gostei muito do episódio. Fica entre os três melhores da temporada, fácil. Só foi diferente e cada versão tem seus méritos.

Softcore

O próprio Bill mudou muito, como outros personagens. Ficou mais "humanizado", como dizem? Mas qual o problema do Bill original? É menos humanizado acreditar num sujeito neurótico, estoico e isolado após o fim da civilização, com menos degradês de humor?

Fico imaginando o choque de alguém que tenha assistido ao seriado, se conferir o jogo pela primeira vez. Nem precisa do gore das lutas contra infectados, gargantas cortadas e corpos explodidos. Falo do Joel carrancudo, Bill solitário e amargurado contra o mundo, Henry deixando os protagonistas para a morte quase certa.

joel e ellie episodio 3 last of us hbo
Diferentes sim, mas não necessariamente melhores. Joel, como outros, ficou menos soturno e carrancudo na série.

Uma das superioridades que fãs apontam seria a dita humanização no seriado. Joel não é mais tão rude e soturno o tempo todo. Ele tem momentos de abertura; ele ri, chora e tem crises de pânico. Não dá uma bronca em Ellie quando ela salva sua vida porque é simplesmente incapaz de lidar com aquilo: eles têm um diálogo emocional.

Não gosto da ideia de que são melhores por isso. São diferentes. O jogo é mais obscuro, pessimista e cadenciado. A série, apesar das tragédias, é mais leve e rápida. O Joel da TV dificilmente funcionaria no jogo e vice-versa.

Já no segundo episódio, uma amostra disso na primeira mudança sensível, que é a razão para buscarem Robert. Joel não está mais procurando armas: procura o irmão – a quem não via há muito tempo no jogo após uma briga na qual Tommy lhe diz "nunca mais quero ver a merda da sua cara".

Percebe? Não é uma mudançazinha aleatória. Ela dá a pista da mudança na construção do personagem. Joel não é mais um cara frio, rancoroso, calejado, que muito lentamente se abre para Ellie diante de nossos olhos. Ainda é um pouco disso tudo, mas também um sujeito disposto a sacrificar a vida pelo irmão desde as primeiras horas de TV.

Faz sentido porque a série não conta com o longo miolo de gameplay para construir aquele Joel. A diferença entre o Joel do início da jornada e o que mostra a girafa à Ellie é gigante e assimilamos a transformação ao longo do gameplay. A girafa ficou, mas não haveria tempo para reconstruir o personagem – ele precisava surgir já semiconstruído.

Toda a série é salpicada de detalhes assim. Tess deixou de ter um final em que caía atirando e levando vários, para ficar fragilmente rodeada por infectados (ainda que consiga matá-los no limiar de consciência). Joel e Tommy não tem mais uma discussão acalorada que termina em empurrão. Henry não trai Joel na primeira dificuldade.

O inferno - e o céu - nos detalhes

Tanto pela suavização geral quanto pela falta de tempo, TLoU precisou de várias alterações pequenas, que somadas, fazem considerável diferença. Nem sempre para melhor.

Se no jogo temos um segmento de quase meia hora em que Joel e Tess caminham conversando antes de encontrar Marlene, seria inviável reproduzi-la na TV. Daí a existência de atalhos, como o encontro em um corredor, em que juntaram vários segmentos: a caminhada de Tess e Joel, a morte de Robert e a entrega de Ellie virou uma coisa só.

Difícil é não sentir, muitas vezes, que parece acelerado demais. É triste, mas compreensível. O que não bate são detalhes pequenos, que como disse, formavam algo maior, limados sem necessidade. Foram quase incontáveis durante a temporada.

Na clássica cena do primeiro encontro com um Estalador, por exemplo, Tess joga um objeto para distrai-lo. Era marcante porque além de mostrar o infectado mais de perto, explicava visualmente suas características como a cegueira e a ótima audição.

Não levaria 30 segundos reproduzi-la na TV, agradaria fãs antigos e ajudaria novos. Não seria mero fan service: era rápido e útil.

tess clicker garrafa last of us 1

Também houve alterações em diálogos que não pareciam necessárias. Joel e Ellie chegam a Kansas (Pittsburgh no jogo) e são emboscados, por exemplo. A cena foi reproduzida com alta fidelidade, mas o diálogo reduzido. Por que tirar o "Ele nem está machucado", que deixava ainda mais implícito como Joel conhecia as táticas dos bandidos?

Na cena em que Ellie atravessa a ponte improvisada após serem perseguidos por infectados no museu, quase bufei ao notar que mudaram o diálogo. Ellie não desdenha com um cômico "pfff" do cuidado já paternal de Joel. Tess só passa apressada por eles, não dá uma reprimenda em Joel pedindo foco, percebendo o que ele está sentindo.

É verdade que a maioria das alterações funcionam, assim como características que só a TV poderia ter. No episódio final, um Joel na sua versão mais feroz, cheio dos demônios do passado, mal dá tempo ao médico de argumentar, evitando uma das linhas originais em que ele dizia "Ela é nosso futuro, pense em todas as vidas que podemos salvar".

Já no episódio 7, Druckmann recapitula o cerne de Left Behind com precisão, entremeado por sequências dos quadrinhos American Dreams, como as meninas pulando entre telhados e a bronca na sala do diretor da FEDRA.

A série também teve a vantagem de usar elementos do mundo real. Entre elas, até Mortal Kombat II, inspiração óbvia do fictício The Turning. É o tipo de conteúdo que aumenta o realismo e que o jogo não poderia tocar.

Ellie e Riley no carrossel, Last of Us
Episódio baseado no DLC Left Behind foi um dos mais fiéis ao conteúdo original, com elementos do American Dreams e adições que enriqueceram a história.

Assim, a série abrange um pouco de tudo, cortando segmentos para tornar os episódios mais concisos e caber no tempo disponível. A escolha foi sacrificar a maioria das cenas de ação com infectados que, de fato, nunca foram o centro desse universo, mas pareceram ausentes até demais.

Ainda no caso de Left Behind, Ellie procurando o remédio foi resumido a uma rápida busca pela casa. Com mais tempo, seria legal vê-la explorando o shopping em busca de remédio? Talvez, mas não pareceu uma perda importante. Um monte de cenas de ação, com correria de infectados, não faria tanto sentido na construção dos personagens, o que mais importava.

Cenas complexas, como as envolvendo água, também foram eliminadas. Lembre que tanto a sequência no rio com Henry e Sam, quanto a parte final, em que Ellie se afoga antes de chegar ao hospital, deram lugar a eventos distintos. Quem precisava de paletes?

Vantagens naturais

É aí que o jogo leva vantagem. Houve certa irregularidade na qualidade das alterações que simplificam cenas, às vezes ceifando o papel de personagens.

A cena de Joel apunhalado por um pedaço de taco (aliás, tacos parecem estar no caminho dele...) foi uma mudança bem-vinda. Sua sobrevivência após ser trespassado por um vergalhão era o ponto mais mentiroso do jogo. Mas do jeito que fizeram, Ellie perdeu o protagonismo do momento – no original, é ela quem abre caminho à bala para o Joel ferido, com aqueles efeitos dramáticos simulando a perda de seus sentidos. Dava pra recriar e porque não fizeram, não entendo.

Outra mudança simples mas que altera a dinâmica é no episódio 8, quando Ellie enfrenta David. No original, Joel chega para apoiá-la enquanto ela trucida o vilão; na série optaram por uma parada em que ela vai em choque para fora e só lá o encontra. A justificativa é que só David tinha as chaves, como se portas não fossem arrombadas. Mutila aquela montanha-russa de adrenalina-alívio e dessa vez, reduz o papel de Joel.

Quando personagens foram bastante modificados, de forma geral agradam, ainda que detalhes se percam. Sam, que não era deficiente auditivo, ganha outra camada de complexidade. Pena que não tenham recriado a cena do robô de brinquedo, que tal como a cena da garrafa com Tess, era uma pequena parte da identidade do jogo – ao ponto de reaparecer como easter egg na Part II – que nunca existirá para fãs da TV.

A revista de Bill e o livro de piadas eram inevitáveis. Até o cartão de aniversário de Joel, que não participa da cena, está na mesa de Sarah, no mais puro e saboroso fan service. Certas menções fizeram o público sorrir, como a referência às pistolas d'água de Left Behind e o trágico destino de Ish, mas outras esquecidas, como a cena do caminhão de sorvete e o gosto de Ellie por gnomos de jardim.

Foi bacana também ver as referências visuais e contextuais ao segundo jogo, prenúncio das próximas temporadas. Jackson foi construída exatamente como na Part II, aproveitando a alteração na linha do tempo da história. No jogo, lembre, Joel chega à cidade no dia em que estão consertando a usina, enquanto no seriado ela já foi retomada há alguns anos.

O único que senti falta de verdade por ali foi Buckley. Se tiveram alguns segundos para demonstrar um coletor menstrual e explorar o livro de piadas, também dava pra manter o cachorro. Uma pena.

Faltou ação e infectados? Não, mas sim

TLoU nunca foi exatamente sobre ação ou humanos contra infectados. Eles eram um pano de fundo para a história de duas pessoas, com seus traumas e histórias, viajando pelos Estados Unidos após o fim da civilização e se tornando uma família. Assim, o seriado focou no mais vital e fez uma base sólida.

joel ellie carga last of us
TLoU nunca foi sobre humanos contra infectados, mas a história de desconhecidos virando um esboço de família. Com o tempo reduzido, a série focou no mais vital.

Mas sim, em vários momentos me peguei pensando "aquele combate seria ótimo se acontecesse agora". E com tão poucas interações com infectados, deve ter sido difícil, se não impossível, a audiência diferenciar um runner de um stalker ou stalker de um clicker.

Infectados se tornaram quase irrelevantes e no fim, após tanto alarde sobre a falta de esporos, as gavinhas em suas bocas e a "rede neural" de fungos no subsolo, foram elementos subutilizados. Esporos podiam ter ficado, tanto faria.

De novo, faltou tempo. Talvez pela escassez, as poucas cenas de ação foram memoráveis. A aparição do bloater com a horda de infectados explodindo do subsolo foi espetacular, apesar de curta e não envolver confronto com os protagonistas. Mazin e Druckmann preferiram desenvolver os grupos humanos, como os de Kathleen e David, expandindo suas histórias com religião e culto à personalidade.

Eu não reclamaria de sequências como David e Ellie enfrentando uma horda ou o grupo com Sam e Henry encontrando os protegidos de Ish infectados e se dividindo até sair em segurança do subsolo. Mas faltou tempo.

Doce ou salgado

Escolher entre The Last of Us nos games ou TV é o tipo de dilema que ninguém precisa enfrentar. Os produtos estão aí, com características próprias, acertos e erros inerentes. Qual você gosta mais é questão meramente pessoal.

last of us hbo girafa
A clássica cena da girafa recriada no seriado da HBO.

O seriado foi ótimo e mal posso esperar pelas próximas temporadas. A capacidade de recontar a história mantendo atmosfera, figurino e elementos fundamentais deixa grande expectativa para o futuro. Foi ótimo também explorar fatos intocados, como a razão da imunidade de Ellie.

Mas o jogo foi tão acima da curva que estabeleceu um padrão alto demais para ser igualado, quanto menos superado, mesmo que por sua própria encarnação televisiva. The Last of Us é a narrativa mais envolvente já feita em videogames, mas explorá-la a fundo exige cerca de 20 horas de gameplay. A série teve tempo total inferior a 9 horas.

Como competir? Não compete. Não seria justo e nem necessário.

Minha convicção é que, por sua maior duração, o jogo tem construção de personagens mais longa, o que funciona melhor para The Last of Us. Joel e Ellie lentamente se conectando, a forma como ele muda de um sujeito vazio para um pai de novo, a riqueza de detalhes, os incontáveis pequenos diálogos: tudo molda uma experiência difícil de ser batida em qualquer mídia.

É algo que não pode ser recriado com a mesma qualidade na TV, a não ser que a HBO e a Sony tivessem investido numa temporada com 20 episódios de uma hora cada. E se seguirem o padrão com a Part II, a sensação de pressa pode ser ainda mais aguda, já que o jogo é enorme. Ainda bem que os produtores já falam em em duas temporadas ou mais.

Chegou aqui sem conhecer a Part II, base para ao menos parte da segunda temporada? Prepare-se emocionalmente. Tudo que já chorou, riu ou odiou será multiplicado. Se quiser mais da aventura de Joel e Ellie, jogue (ou assista um gameplay completo no YouTube) The Last of Us Part I no PlayStation ou PC – cuja versão será lançada no próximo dia 28. Você não vai se arrepender.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

1 COMENTÁRIO

  1. O grande desafio mesmo é conseguir audiência com pessoas que já jogaram o game em si...se fosse ao contrário, com certeza vc veria críticas negativas em cima do game!!!!
    Valeu!!!!

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