É mais que conhecida a marcha da agonia da Sega, até pra quem não seguiu de perto o passado da companhia japonesa. No fim da 4ª geração plantaram o próprio fim, com disputas de orgulho e péssimas decisões de mercado. Ceifaram o sucesso futuro, o esforço do Mega Drive e o que ele prometia como herança. Ficou no passado o momento de glória, restando virar softhouse pra não quebrar.
Enquanto metiam os pés pelas mãos, a Nintendo mantinha total austeridade, ao estilo come-quieto. Os outros queriam mídia em CD? Eles preferiam o carregamento rápido dos cartuchos. Os outros se pegavam de tapa tentando tomar a dianteira nos 32-bit? Hiroshi Yamauchi era apoio irrestrito ao Super Nintendo. Assim mantiveram a sanidade financeira mesmo durante o boom do novato PlayStation.
Os bastidores guardam tramas incríveis, incluindo duas envolvendo algumas das maiores concorrentes de hoje. Com um pouco de boa-vontade da Sega do Japão, a história dos videogames poderia ser diferente. E muito.
Já pensou se em vez de Nintendo 64 e Sony PlayStation, tivéssemos Sega 64 ou Sega PlayStation? Pois é, uma dessas quase aconteceu.
Saturn, orgulho japonês
![Sega Saturn Sega Saturn](https://www.memoriabit.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Sega-Saturn-300x225.webp)
Até a metade da guerra entre os 16-bit, a Sega tinha construído um futuro promissor. Veteranos de arcades, mas fracassados em consoles até o Master System, foram do nada para donos de uma máquina adorada. Nos Estados Unidos, o Genesis conseguiu a proeza homérica de bater de frente com a Nintendo. E se não bastasse, ainda espancou a rival na Europa, América do Sul e Oceania. Ironicamente, só no Japão, terra natal, não emplacaram.
Sabiam que pra manter a popularidade obtida com o Genesis, oferecer o que o público pedia não bastava: era preciso surpreender. Não só ouvir o jogador, mas inovar. E inovar custa caro.
A primeira das inovações foi investir nos CDs. Àquela altura, parecia claro que o futuro do armazenamento de games eram mídias digitais. Era preciso dominar aquilo o quanto antes, uma disputa por excelência estava em andamento.
Veio o Mega-CD, mas logo ficou óbvio que não teria a mesma popularidade de um console-solo. Havia a dependência e o gargalo técnico do Mega Drive. Mas a Sega precisava de know-how, e como laboratório ele serviu perfeitamente. Foi um importante primeiro passo na tecnologia do CD.
"Era bem o começo do uso de discos e estávamos tentando ganhar experiência no desenvolvimento de um produto com discos óticos, porque não tínhamos ideia do que estávamos fazendo!" — admitiu tarde Tom Kalinske, ex-presidente da Sega of America. Jogos ruins como os FMV denegriram bastante o produto, apesar de títulos acima da média como Sonic CD e Lunar.
A Nintendo ensaiou seguir o caminho, mas sem concluir negociações com Sony e Philips, ficaram quietos. O fracasso do Sega CD e o ainda maior do 3DO também pesaram na decisão. A base de usuários do SNES lhes dava algum conforto para decidir com calma o momento de agir.
A Sega, por outro lado, tentava muita coisa. Uma lista de iniciativas que não davam certo e pouco a pouco torraram não só as finanças, como a imagem da empresa. Em consequência, fãs foram perdendo a paciência. Eram chacotas sobre o Street Fighter que não chegava, gráficos fracos do Sega CD, a falta de RPGs...
Seu fenômeno dos 16-bit não duraria pra sempre. Tal como o império do NES havia caído pouco antes, tinham convicção de que tudo podia mudar numa passagem de geração. Talvez não contassem com outra grande jogada de marketing, como a que bombou o Mega Drive. Precisavam de uma máquina foderástica, que fosse mesmo superior às rivais. Uma máquina para liderar a nova geração com autoridade.
![Nintendo 64 desmontado Nintendo 64 desmontado](https://www.memoriabit.com.br/wp-content/uploads/2014/05/nintendo-64-desmontado-300x194.webp)
Mas era da Sega Japan que vinham comandos, inclusive sobre hardware. A Away Team, equipe de 27 pessoas lideradas por Hideki Sato (mente por trás das máquinas da Sega), encarregou-se de criar a nova engenhoca. Em 2 anos de trabalho, tentaram colocar tudo o que havia de superior em hardware nela. Se hoje a maioria dos CPUs trabalham em vários cores (núcleos), o Saturn inovou com dois processadores principais. Além do "dual core", mais dois para gráficos e outros, num total de oito processadores.
Mais poder de fogo? Talvez, mas não era necessariamente bom. Programadores não se adaptavam, otimizando os games para single core. A falta de kits de desenvolvimento também prejudicava. Para que o software aproveitasse bem a CPU dupla, era indicado programá-los em linguagem de montagem (assembly). Não eram todos que a dominavam, mais complicada do que C. Yuji Naka teria dito que "só 1 em cada 100 programadores são bons o bastante para tirar vantagem dos processadores do Saturn".
Poucos enfrentariam um caos programático em nome do Saturn. O PlayStation virou o queridinho e o console da Sega ficou pra escanteio. Seu mérito era ser o provável ápice dos gráficos 2D, insuficiente quando acontecia a transição para 3D. A tendência era inevitável desde os Star Foxes, Virtua Racings e Virtua Fighters da vida.
Quando o Saturn chegou à mesa da Sega of America, viram que havia algo muito errado para o mercado local. Ele era caro para produzir, com muitos componentes. Era difícil para programar, com sua arquitetura peculiar. Joe Miller, da R&D (pesquisa e desenvolvimento), percebeu na hora que era uma roubada investir todos os esforços naquilo, e procurou Kalinske.
Precisavam "apenas" demover os japoneses. Bolaram alternativas como investir numa tecnologia oferecida pela Silicon Graphics. Seria fácil convencê-los a abrir mão de 2 anos de trabalho, explicar que haviam errado a mão? E ainda admitir a falha — ou escolhas erradas — no projeto, aceitando ajuda de americanos? Como se sabe, a cultura japonesa não é exatamente tolerante com o fracasso. Onde enfiariam o orgulho? Como trabalhariam e fariam marketing nos anos seguintes de algo feito pelos gaijin que corrigiram o "mestre"?
Sega of Japan wins. Ou melhor...
Kalinske lembra como a coisa se desenrolou, desde a oferta da SGI até a abordagem e a reação da matriz:
Ou seja: deixar americanos dar tamanho pitaco não seria fácil para o time da Sega. Abriria feridas. Então, o presidente Hayao Nakayama, contrariando a lógica, decretou apoio incondicional ao Saturn. A lógica era simples: console caro não vendia, vide Neo-Geo e 3DO. A Sega não deu a mínima pra isso, levantou a cabeça e foi em frente.
Pensa que acabou? Nakayama cismou de lançá-lo quase 4 meses antes da data marcada. Kalinske escolhera uma data só uma semana antes da Sony, mas os japoneses queriam mais folga. O detalhe é que não havia produto em estoque pra isso, e os americanos teriam que se virar. Como fazer distribuição adequada se não há estoque?
Faz-se o menos pior: foram forçados a escolher lojas que teriam o Saturn no lançamento. Isso causou grande desconforto com os "outros", preteridos, que passaram a boicotar a Sega. Alguns removeram tudo que levava o nome da empresa da prateleira dali por diante.
Em outra entrevista, Kalinske falou do impasse entre as Segas EUA e Japão, e como o preço final do Saturn era alto:
Depois de muito ajuste e discussão, chegaram ao valor de US$399 — cem a mais que o concorrente. Resultado: de maio e setembro, intervalo do lançamento entre ambos, o Saturn vendeu pouco menos de 90 mil unidades nos EUA. O PlayStation? Teve 100 mil pedidos só na pré-venda. Mas se a Sega almejava sucesso em casa, enfim tiveram essa pequena vitória: o Saturn foi bem aceito no Japão.
O que aconteceria se a Sega investisse no motor da SGI com mídias em CD, que tinham estudado bastante com o Sega CD? Talvez algo como o Nintendo 64, mas sem os problemas que este enfrentou com a falta de espaço nos cartuchos. E melhor: não seriam ignorados pelos desenvolvedores. Talvez o PlayStation não tivesse a vida fácil que teve. Muitos talvezes...
Sega PlayStation
![kalinske kutaragi nakayama kalinske kutaragi nakayama](https://www.memoriabit.com.br/wp-content/uploads/2014/05/kalinske-kutaragi-nakayama.webp)
E essa não foi a única vez em que a teimosia do staff da Sega levou a empresa mais pra baixo. Pouco antes de decidir lançar o PlayStation sozinho, a Sony teve real interesse numa plataforma em parceria.
A Sega gostou. Surgiu um financiamento conjunto para a Digital Pictures, que produziu vários FMVs do Sega CD, como Sewer Shark e Night Trap. "Nossa relação era muito próxima. Trabalhamos em várias coisas juntas, Sega of America e Sony estavam convencidas de que as próximas plataformas deveriam usar discos óticos" - lembrou Kalinske.
Engenheiros das duas empresas trabalharam nas especificações de um hardware usando CDs. Kalinske visitou a sede da Sony em Tóquio, para negociar com Ken Kutaragi. O executivo da Sony tinha uma proposta. "Ele disse que [o sistema especificado] era ótimo, e como todos perdem dinheiro com hardware, devíamos comercializar juntos um sistema só - o hardware Sega / Sony - e as perdas que tivéssemos, dividiríamos".
Kalinske achou ótimo negócio. A Sega tinha grandes franquias e logo, possibilidade de lucrar muito mais. Cada um faturaria com seus próprios jogos. A Sony ganharia experiência e relevância no setor. Parecia perfeito.
Com a aprovação da Sony, restava convencer seus superiores no Japão de que a empreitada era uma boa.
Nesse ponto, o staff americano estava bastante descontente com o autoritarismo e falta de diálogo com a Sega japonesa. Eles tinham certeza de que não era a hora do Saturn, e tentaram de tudo para atrasar o lançamento, pelo menos para ter mais jogos. Não adiantou.
A Sony botou a faca nos dentes e lançou o PlayStation sozinha, enquanto a Sega afundava. Pra piorar, o sucesso levou muita gente a migrar para o "lado Sony da força", incluindo o nº2 da Sega of America, Steve Race. O braço-direito de Kalinske, que sabia tudo sobre o Saturn, agora estava no comando do rival. "Ele conhecia todos os nossos segredos e nós, nenhum dele. E estávamos nessa desconfortável posição de tentar lançar um novo hardware, um sistema no qual eu não acreditava e não gostava", lamenta Kalinske.
Race tinha propriedade para atacar o projeto rival, e o fez sem dó.
O resto é história.
Em vez de Sony PlayStation, teríamos um PlayStation com assinatura de Sega e Sony, e todos os esforços de ambos em software? Parece bom. Obrigado por nada, Sega do Japão, mais um que jamais sairá da imaginação.
Imagem: Chris Isherwood