Você é do tipo que não se conforma em dormir sem avançar de nível no Candy Crush? Ou ficava ensandecido quando perdia no Flappy Bird? Arrancava os cabelos, mordia o joystick e socava paredes com Battletoads? Deixa de cumprir obrigações pra avançar de nível no RPG?
Não se preocupe, você não está sozinho. Só tome cuidado com a frequência que isso tudo acontece, pois pode estar num quadro muito ruim: o vício. Mesmo que não saiba, ou não aceite.
A recompensa dos videogames têm efeito viciante no cérebro, como uma droga. Apesar de conhecidos os gatilhos e casos, foram anos de discussão para enfim classificar a doença. A Organização Mundial de Saúde incluiu esse ano o vício em games como doença mental.
Não pense, porém, que a indústria de games em geral está preocupada com sua saúde. Eles usam aqueles gatilhos para forçar o público a gastar cada vez mais em seus produtos. São conteúdos adicionais, moedas douradas e itens exclusivos, apelando aos mais básicos instintos e comportamentos.
A psicologia a serviço do dinheiro.
A primeira reação é a negação. "Imagina, não sou viciado". Todos dizem isso, mas se seus hábitos se enquadram no que vai ler por aqui, melhor repensar seus hábitos.
Ser ou não ser?
Eis a questão controversa mesmo entre profissionais da saúde. Em 2013, a Associação Americana de Psiquiatras não identificou uma doença mental nos casos descritos como vício em games. Por outro lado, a possibilidade não foi descartada, ficando como tema de estudo — resultando na publicação de 2018.
Todo mundo que joga já deve ter conhecido ou ouvido falar de um "viciado". Não era o carinha muito bom em tal jogo, mas aquele que batia com as características propostas para ajudar a diagnosticar o viciado:
1. Passa muito tempo pensando em videogames. Perto ou longe do videogame, você está pensando nele, ou em quando terá uma chance de jogar de novo.
2. Tem sérias mudanças de humor. Você fica irritado, desanimado, triste, zangado, ansioso quando tenta diminuir o tempo de videogame, ou quando não pode jogar.
3. Sente necessidade de jogar por muito tempo, de jogar games cada vez mais empolgantes, ou precisa de equipamentos cada vez mais poderosos pra ter a mesma empolgação de antes.
4. Sente culpa. Sabe que deveria jogar menos, mas não consegue diminuir o tempo que passa jogando.
5. Perde interesse em participar, ou reduz demais o tempo de participação em outras atividades recreacionais por causa do videogame.
6. Continua jogando, sabendo de consequências negativas como sono prejudicado, atrasos em compromissos, gastos excessivos, discussões com pessoas próximas e/ou negligência aos deveres.
7. Mente ou omite para as pessoas sobre o tempo gasto e hábitos referentes aos videogames.
8. Joga para fugir dos problemas em vez de resolvê-los, ou para aliviar sensações de desconforto como culpa, ansiedade, desamparo ou depressão.
9. Arrisca ou perde relações importantes, oportunidades de trabalho, estudo ou carreira por causa dos videogames.
No Reino Unido, existem clínicas especializadas para o vício. A principal preocupação é com crianças e como o vício altera comportamento e educação. Jogos como Minecraft e de aplicativos de celular tomam cada vez mais tempo deles; na Coreia do Sul, o horário que menores de 16 anos podem jogar online é controlada por lei. Na China, a Tencent limita o horário que crianças podem estar logadas em seus games populares.
Se crianças preocupam, os adultos — maior público dos videogames há décadas —, parecem ratos de laboratório de todo tipo de truque consumista.
Táticas
Há muitos interesses envolvidos num negócio bilionário e as empresas não tem o menor pudor em nos viciar pra fechar as contas. É simples assim, sem meio termo.
A fonte de inspiração é a indústria dos jogos de azar. Dela foram herdadas várias técnicas. Outras, absorvidas e adaptadas da psicologia comportamental.
A caixa de Skinner
Uma das receitas básicas de um jogo é dar ao jogador recompensa adequada por atividades. É quase como um rato sendo treinado: ele é estimulado, aciona um mecanismo e recebe ração. Se fizer um truque mais complexo, recebe ração extra.
Parece frio e automático demais? Talvez, mas funciona.
Não é que todos os designers de games não ligam para diversão. Shigeru Miyamoto várias vezes falou sobre como o lado lúdico deve ser priorizado. Mas de novo, é um negócio bilionário e a psicologia uma arma.
Nesse artigo de 2001, John Hopson, especialista em comportamento que trabalhou em games das séries Halo e Age of Empires, explica:
Uma contingência é um conjunto de regras que governam quando recompensas serão dadas. [...] Cada contingência é um arranjo de tempo, atividade e recompensa e há infinitos jeitos desses elementos serem combinados para produzir um padrão de atividade que você quer de seus jogadores.
"...produzir um padrão de atividade que você quer de seus jogadores".
Ou seja, ao jogar, você está fazendo o que o designer esperava de você. Por mais que soe Capitão Óbvio, pensemos: você está "vencendo" o desafio do designer, ou seguindo exatamente o roteiro que ele planejou?
Há infinitas possibilidades de manipulação de seu comportamento. Quando a gente comprava um jogo inteiro, o desafio da produtora era trazer você de volta numa ocasional sequência, e a outras produções da casa. Era preciso oferecer o máximo num pacote fechado, ou o cliente não voltava. Itens raros estavam ali no código, só esperando você grindar o bastante para obtê-los. Todos com a mesma oportunidade. Meritocracia real aplicada aos games?
Com microtransações, gatilhos psicológicos passaram a ser cada vez mais parecidos com os de caça-níqueis. Uma mudança total de paradigma: antes era oferecido o máximo e o jogador que se esforçasse. Agora é oferecer mais a quem pagar mais.
A Caixa de Skinner, desenvolvida pelo psicólogo B.F. Skinner, comprova o que esses jogos usam. O experimento demonstra que um animal, devidamente condicionado, repete padrões de comportamento pela associação a recompensas ou punições. Ele se condiciona ao ambiente. Se um pombo recebe alimento com frequência ao pousar em certo lugar, ele fará isso de novo. Se um rato solta um objeto num lugar e recebe recompensa, ele repete.
Se você joga um videogame e recebe o estímulo certo, vai continuar jogando.
Falso poder
Jogos como Candy Crush e afins usam e abusam disso para prender o jogador. Embora a habilidade faça parte, muito do sucesso ou fracasso depende de fatores de ocorrência cada vez mais rara.
No início, o jogador obtém recompensa fácil e se sente bem — é a dopamina trabalhando¹. Com o tempo, a recompensa é dosada e por mais que a habilidade do jogador cresça, há um fator, geralmente randômico, que dificulta uma vitória que seria certa. Aumenta a percepção de desafio em busca da recompensa. Você fica acordado na cama, jogando ao celular em vez de dormir? Ou insiste no futebol que acabou de ter gols bizarros e trombadas de zagueiros "por acaso"?
Voltando ao exemplo do laboratório: como condicionar um rato a pressionar um botão bem depressa? "Eu criaria um botão que, a cada pressão, daria uma porção de comida", talvez tenha pensado. E erraria. Experimentos demonstraram que o ideal seria liberar alimento aleatoriamente a cada apertar de botão. Às vezes ele teria comida, às vezes não. Sem a certeza de que uma ação significa recompensa, logo o rato passa a apertar freneticamente o mecanismo.
É igualzinho nas máquinas caça-níqueis. Você sabe que pode ganhar, mas não se ou quando. Nessa crença de poder, sempre volta ao jogo. "A curto prazo, você sempre está ganhando, mas a máquina é programada de tal forma que, a longo prazo, ela irá reter um valor muito maior do que ela libera para os apostadores", explica o perito criminal Thyago Mendes.
"A ilusão de controle é elemento crucial na manutenção do vício do jogo", explica Steve Sharman, doutorando em psiquiatria na Universidade de Cambridge. "Ela instila a sensação de habilidade ou controle. Há uma série de fatores nos jogos que levam o jogador a acreditar que estão afetando o desenrolar da partida e algum casos até podem estar, mas são casos raros".
Leveling
Nivelar o desafio não é algo nocivo; é fundamental num videogame. Não é divertido ser aniquilado por um inimigo fortíssimo no começo da jornada, nem chegar ao final aniquilando todos como insetos.
Não somos exatamente como os ratos, que passariam a vida toda acionando alavancas em troca de ração. Se o game não nos der algo mais, largamos. É preciso cativar o jogador, fazê-lo sentir que está progredindo e que o progresso resulta em recompensas cada vez mais generosas, compatíveis com o esforço.
Num certo RPG, você nota que subiu levels rapidamente no começo, ganhando 10 pontos por vitória. Logo estará ganhando 100 pontos por luta, mas subindo muito pouco de nível. A recompensa (dopamina) se torna escassa, mas muito saborosa. Segundo Hopson, as desenvolvedoras observaram que aumenta a frequência de jogo quando o jogador se aproxima de um novo nível.
Recompensa menos frequente > maior desejo de recompensa > mais tempo de jogo.
Gates de tempo
Modelo muito usado em puzzles e simuladores. O jogador tem tempo limitado de ação, como ao perder e só ter acesso após certo tempo. Ele volta ávido e as recompensas seguintes terão efeito mais gratificante (e viciante). Alguns jogos lucram vendendo vidas extras ou atalhos para voltar antes do tempo. É a aplicação da adaptação hedônica, que parte da ideia da felicidade relativa.
Por exemplo, se você deseja um salário maior e ganha o aumento, ficará feliz. Mas conforme o tempo passa, seu parâmetro de felicidade muda. Logo vai querer outro aumento para ter a mesma satisfação.
O jogador sentirá a volta como uma recompensa maior do que significaria se tivesse continuado ali. É a ilusão reforçada pelo afastamento e a necessidade da recompensa negada.
No game design, também chamam isso de gating. Gates são como "portões" que controlam até onde o jogador pode ir, seja em tempo ou locais. Há hard ou soft gates. O hard gate exige cumprir uma condição para liberar o jogador, tipo as portas que precisam da chave em Zelda, ou as pontes quebradas de GTA III e Red Dead Redemption. Já os soft gates são mais "flexíveis", como uma área acessível, mas difícil de alcançar.
Nos games F2P, o portão para a recompensa costuma ser aberto com dinheiro.
A falsa gratuidade
O modelo de games Free to Play, ou F2P, é relativamente novo. Até o fim dos anos 90, você comprava o jogo (ou sua licença) e o teria na íntegra, por tempo indeterminado.
Hoje, muitos são baixados "gratuitamente". Mas quando o jogo começa, nota-se o óbvio: de graça ali, só o acesso. Pra ter sucesso, o jogador tem que gastar; quem gasta têm as melhores oportunidades, ferramentas. Se a armadilha foi bem montada, a negação da recompensa será um motivo quase irresistível para gastar e assim diminuir seu prejuízo naquele mundo.
O percentual de usuários que gasta é dito pequeno, entre 5 e 10%. Ainda assim, segundo dados de 2012, microtransações movimentavam quase 15 bilhões de dólares no mundo. A Take-Two disse através do CEO do grupo, Strauss Zelnick, que microtransações e não a venda de jogos, devem ser a base do faturamento em todos os futuros lançamentos.
"Uma das coisas que aprendemos é que, se criarmos uma oportunidade robusta, um mundo robusto, no qual as pessoas possam jogar apreciando de um jeito cada vez maior, elas continuarão voltando. Elas se envolverão. E há uma oportunidade de monetizar esse engajamento", disse o executivo, acrescentando que "há muito o que crescer" e "isso é só o começo".
Em suas principais franquias como GTA e 2K, as microtransações respondem por quase 50% do lucro da Take-Two.
Há inúmeros exemplos, como Hearthstone, Pokémon GO, a maioria dos MMORPGs, etc. Na China, ZT Online ficou conhecido como um cassino virtual, tamanha a extensão das facilidades pagas (gates, lembra?). Uma situação típica: o jogador precisa comprar uma chave que abre certo tipo de baú e deles saem prêmios aleatórios. Ao fim do dia, o jogador que usou mais chaves ganha outro prêmio.
Final Fantasy: Brave Exvius, um F2P para Android, usa o lapis como moeda para quase tudo. Ela pode ser obtida no jogo e rapidamente se comprada com dinheiro real. E na pressa de buscar vantagens num sistema de gacha, os jogadores gastam. Tipo esse, que torra 600 dólares tentando a sorte num vídeo.
É pouco? Então que tal esse moleque que gastou quase 8 mil dólares em packs do FIFA Ultimate "por engano" com o cartão do pai? Ou esse homem que gastou 12 mil dólares em Final Fantasy e quase arruinou a vida familiar?
Controle de interrupções
Uma forma de prender o jogador é tornar pontos de parada menos frequentes, obrigando-o a jogar por mais tempo. Como a recompensa está no fim da atividade, ele fica propenso a gastar dinheiro na busca.
No desespero, um simples ponto de salvamento é dopamina. Pense numa jornada cujos pontos intermediários estão separados por batalhas duras e/ou vários longos eventos. Ou num mundo complexo, em que você adoraria ter saves em pontos diferentes para explorar melhor a trama. Foi o que pensou a Konami quando resolveu que Metal Gear Survive teria apenas um slot de save. Os demais custam SV Coins, moedas compradas com dinheiro real. Até podem ser obtidas jogando; são necessários 39 logins para ganhar moedas suficientes para um slot. Nada que o dinheiro não acelere.
O inverso (várias interrupções) também funciona. Em vez de longas jornadas, trechos curtos com recompensas menores. Assim o jogador tem um constante motivo pra continuar jogando e obtendo recompensas cada vez maiores. O mecanismo é similar ao das quebras de texto: se o leitor não suporta um artigo enorme, insira quebras com cabeçalhos e imagens aqui e ali. Com pausas, ele lê 5 mil palavras sem reclamar.
Punição
Dizem que punição não funciona, mas a psicologia comportamental trata da chamada "esquiva". Em vez de recompensar o rato, puni-lo fisicamente. Sacanagem? Total, mas funciona.
Lembra do desespero da sua mãe (ou seu mesmo) na Colheita Feliz, porque se não fizesse login, teriam saqueado sua fazenda, os animais morreriam, etc? Não jogar tinha punição e você fazia o possível para evitar. Alguns games têm estruturas que colapsam se o dono não cuidar delas.
É a mais direta e cruel forma de te prender. Mas de novo, nada que um dinheiro não resolva, caso você tenha ficado um mês ocupado com outras coisas. Dá-lhe moedas douradas, verdes, regadores mágicos, etc.
A ilusão de sucesso contínuo
O videogame como escapismo saudável não é mau. Quem não gosta da sensação do "Stage Clear", do "You Win"? Do chefão final desabando, do piloto que parecia imbatível sendo vencido?
Mas o jogo é limitado, uma hora acaba. Após curtir a curva de aprendizado, masterizar sua técnica e fechar o game, o que fazer? Jogar outra coisa. Mas as desenvolvedoras não querem isso: querem que você continue ali, de preferência gastando.
Como segurar o jogador, mesmo que o conteúdo tenha acabado? Dando a ele a sensação de sucesso contínuo. Se a vida social é ruim, dê a ele um avatar popular e jogue-o num mar de amigos virtuais. Se a vida profissional é insuportável, permita que ele seja o que quiser dentro do jogo. O cliente fará qualquer coisa pela recompensa, inclusive prejudicando a própria saúde física e mental.
Jogos que permitem total customização do personagem são um perigo. Você pode ser você mesmo, seu clone forte e destemido, sua versão de sexo oposto. Com o ambiente certo, dosando a recompensa, é certeza de centenas de horas além do conteúdo esgotado. Você se loga e joga só porque tem um perfil evoluído, sem nada pra fazer de novo. No máximo atividades repetidas à exaustão, como minerar, fazer loot de itens, destruir inimigos mais fracos...
Mas e daí?
Talvez você retruque "jogos são assim mesmo". Pode ser difícil definir o que é um jogo, mas o consenso diz que:
- está sob um conjunto de regras;
- requer habilidade;
- é divertido, entretém.
Num tempo de e-sports consolidados, habilidade é primordial num jogo. Se eu me arriscar no Counter Strike ou xadrez contra um campeão (que jogue sério e sem desvantagens), serei trucidado e ponto. Não importa quanta sorte, ou outro atributo imaginário ou inconsistente eu tenha. É parte do jogo.
Mas as transações adicionais, vantagens em troca de dinheiro, transformaram games em algo diferente, voltados cada vez menos à diversão e mais em como nos viciar. Jogar virou sinônimo de nos fazer comprar slots de salvamentos, moedas, armaduras, carros, tatuagens, rostos, roupas. Somos muito mais que uma cobaia monetizável?
Não sei você, mas acho um futuro tenebroso.
Seu artigo é muito importante para a sociedade, tenha certeza disso