No começo dos anos 80, a Yamaha desenvolveu um chip que, anos mais tarde — depois de entrar em vários projetos de computadores e arcades — faria também parte do Mega Drive: o YM2612. Era uma versão capadíssima do YM2608 de 16 canais, usado em computadores. Junto com o SN76489 (um chip de 4 canais mono), o kit foi a chave do que a Sega queria em seu 16-bit: fazer o jogador lembrar do ambiente sonoro de um "fliperama".
Pouco depois, no fim da década, a Nintendo ainda se relacionava com a Sony e Ken Kutaragi (futuro "pai do PlayStation") aceitou desenvolver o hardware de áudio do Super Famicom. E assim foi feito, sob medida para a nova geração da Big N, com muito mais recursos que o concorrente, usando dois chips, um SPC700 8-bit e um DSP 16-bit. A qualidade de vozes era muito superior e as músicas tinham como base amostras reais, buscando maior fidelidade aos instrumentos de verdade em vez daquele típico som "eletrônico" do Mega.
Então como posso contrariar a lógica no título do post, dizendo que o som do Mega Drive "é melhor"? Que o chip mais antigo e com menos recursos superava o mais moderno? Porque sou um seguista viuvinha fanboy e carente de atenção? Porque os engenheiros de som que trabalhavam para a Nintendo eram incompetentes?
Não, ninguém em sã consciência discute o lado técnico. Qualquer cretino sabe que o som do SNES tem mais recursos e fim. Mas vou demonstrar que o som do Mega Drive foi melhor em determinadas circunstâncias. E que em certo segmento, era incontestavelmente superior.
Duvida?
Missões diferentes
O Mega Drive usava a modulação de frequência para produzir aqueles timbres peculiares e imitar instrumentos da melhor maneira possível. Por suas características, pode-se dizer que ele tinha seu próprio instrumento, um sintetizador.
Essa arquitetura era padrão quando ele foi desenhado, inclusive nos arcades e computadores. O som daquela geração soava daquele jeito e não poderia ser muito diferente pelo modo como os hardwares de áudio eram desenhados.
Já o Super Nintendo usa a abordagem da wavetable (tabela de ondas), um tipo de "arquivo de sons". As amostras compactadas desse arquivo são descompactadas e moldadas para ter máxima semelhança com o som desejado. Como toda a geração de som é baseada nessas amostras, o SNES não era como um sintetizador. Ele não criava sons a partir de sinais eletrônicos, ele "modelava" amostras de áudio.
O resultado? Som do Mega mais claro e estridente, especialmente em trilhas rápidas e com batidas fortes. Os graves são distintos e agudos brilham ao ouvido, aquele típico som de videogame a que o senso comum remete. Faixas similares no SNES soam abafadas e sem vida, como se o alto-falante estivesse sufocado por um travesseiro, porque é preciso filtrar as amostras para evitar ruído após a descompressão.
Por outro lado, temas orquestrais, suaves ou imponentes, com múltiplos instrumentos e maior fidelidade aos sons reais, são insuperáveis no console da Nintendo. Casavam perfeitamente com o grande acervo de RPGs que abusam desse tipo de faixa para cenários de fantasia. O SNES se afastou do "som de videogame" na direção do "som real".
Um exemplo é Rock & Roll Racing: faixas sofríveis no Mega Drive e excelentes no SNES. Embora o programador de áudio tenham sido Tim Follin, considerado mestres em tirar o máximo de hardwares e gênio do chiptune, com trilhas fantásticas no NES, não dava pra competir com o ponto forte do SNES. Ainda que soando tão MIDI-genéricas no SNES se comparadas às músicas originais, elas sangram ouvidos de tão agudas e ruins no sintetizador do Mega Drive.
É inegável também que o som do Mega Drive tem mais personalidade. É quase impossível ouvir uma trilha dele (ou remixada com aqueles packs de áudio) e não reconhecer os timbres quase de imediato. O som eletrônico caiu como uma luva para a reprodução da experiência do arcade em casa; o modelo base YM2608 foi usado em várias máquinas entre o fim dos anos 80 e início dos 90. Outros consoles já tinham brincado com FM, como o Master System japonês no console, e o Famicom com chip no cartucho, mas o Mega levou essa brincadeira a outro nível.
Embora surpreendentemente legal no remoto 1991, as músicas medianas do SNES soam como MIDIs ordinários, que com exceção de faixas clássicas, passam despercebidas. Quando tentavam trilhas mais vibrantes, como em shmups e games de ação (veja Thunder Spirits mais abaixo), o resultado era lamentável: o MIDI broxava tudo, sem falar do típico problema do áudio abafado. Grande parte por culpa das limitadas opções de amostra. A Nintendo reduzia bastante a liberdade de trabalho dos desenvolvedores.
O SNES deitava e rolava quando precisava de fidelidade ao mundo real, com flautas, guitarras, baixos... Daí os magistrais temas de RPGs e faixas cheias de efeitos, como os ecos e ambientações de Donkey Kong Country. Sem falar das vozes.
Comparações
Vamos aos exemplos, começando com uma demonstração da maior fidelidade do Mega em relação aos arcades da época: Turtles. Com a mão da Konami nas três versões (Turtles in Time no arcade e SNES, e Hyperstone Heist no Mega Drive), pra não ter desculpa.
Turtles
Sem dúvida a do SNES emula melhor instrumentos, e até inventa — dá pra ouvir uma guitarra que não se nota no arcade — mas a do Mega Drive manteve a mesma pegada. É como se a versão Mega fosse um cover da original, e a do SNES, uma adaptação. Dá pra entender isso?
O SN76489, gerador de som programável, servia como chip extra; Yuzo Koshiro tirou grande vantagem dele para reproduzir samples de teclados Roland, e assim conseguiu efeitos sensacionais nas faixas de Streets of Rage, The Revenge of Shinobi e outros jogos. Uma boa explicação disso, mostrando o áudio proveniente de cada chip.
Street Fighter II
Outro exemplo de como o som MIDIático pode arruinar tudo: o tema de Ryu nas mesmas três máquinas rodando Street Fighter II (Champion Edition no arcade e suas equivalentes, Plus no Mega Drive e Turbo no SNES)
No SNES é quase outra música... Pra não dizer que escolhi a pior, mais uma, o tema do Ken:
Assim como o Mega era uma bela porcaria para trilhas orquestrais, o SNES em alguns estilos soava terrivelmente. Chega a ser trágico como o Meguinha pôde surrar tanto o áudio do rival em ports de arcade que estiveram em ambos, como no citado Street Fighter II. Talvez fosse o caso de alguma mudança simples na arquitetura de áudio do SNES, mas enfim, eles queriam outro caminho.
Que fique claro: não acontece porque o chip do Mega Drive é melhor, e sim pelo planejamento de cada empresa para seus produtos. A Sega procurou o timbre dos arcades ajustando o Mega à arquitetura deles; já a Nintendo queria simular sons de instrumentos reais em jogos domésticos, como acontecia em computadores com placas de som, ocasionalmente adaptando arcades. Sem dúvida, o SNES foi uma evolução — ainda que a abordagem tivesse vida curta com a chegada dos CDs na geração seguinte.
Óbvio que programadores e compositores talentosos ultrapassavam obstáculos. Pra quem diz que o Mega Drive é só "bip eletrônico": Tim Follin derrubando barreiras com uma trilha de rock progressivo impressionante no não-lançado Time Trax:
Mais comparações
Algumas músicas de games dos dois consoles pra você comparar (clique para ouvir sem sair da página).
Thunder Force III Mega
Thunder Spirits SNES
Art of Fighting Mega
Art of Fighting SNES
Earthworm Jim Mega
Earthworm Jim SNES
Arcus Odyssey Mega
Arcus Spirits SNES
Sunset Riders Mega
Sunset Riders SNES
The Lion King Mega
The Lion King SNES
Boxing Legends of the Ring Mega
Boxing Legends of the Ring SNES
Uma seleção de faixas diversas dos dois consoles.
Músicas em versões "Megadrivers"
E como ficariam "músicas reais" no chip do Mega Drive? Confira várias músicas bem conhecidas rodando no áudio do Mega. Não por coincidência, as faixas de eletrônico / eurodance ficaram perfeitas. As do Nirvana me fizeram pensar em Moonwalker: imagine um jogo com Cobain soltando guitarradas em todo mundo... Danger Zone em cima de After Burner é quase como se fossem parte um do outro.
Call me Maybe (Carly Rae Jepsen)
Pet Sematary (Ramones)
Everlong (Foo Fighters)
What is Love (Haddaway)
Danger Zone (Kenny Loggins)
Rhythm is a Dancer (Snap!)
Californication (Red Hot Chili Peppers)
3 faixas de Nevermind (Come as You Are, Lithium e In Bloom)
Conclusão
Vou fechar com a resposta que me parece perfeita sobre porque o som do SNES não soa sempre melhor que o Mega Drive, como supostamente seria (tirada de um fórum do Sega-16 discutindo altos e baixos de cada um).
Mega Drive (Yamaha YM2612)
- 5 canais FM e um canal FM/PCM, quatro operações por canal
- Taxa de amostragem: 22,050 KHz
- Master clock 7,67 MHz (mesmo clock do CPU)
- Texas Instruments SN76489, 4 canais PSG
- 64 Kb RAM boot (do Z80)
Seis canais FM, três ondas quadradas, um canal de ruído. Um dos canais FM pode ser usado como PCM 8-bit. O conjunto é ótimo para síntese de som, mas o PCM é terrível. O Z80 principal tem só 8 Kb de RAM disponível, mas pode ler dados do cartucho por conta própria, o que não chega a ser um grande problema; ele pode acessar grandes quantidade de dados. Infelizmente o "bank switching" torna o PCM desagradável, ao menos se você está trabalhando com uma ferramenta de som só no Z80, que controla ambos os chips (2612 e o Texas Instruments).
A síntese FM pode soar ótima se usada por alguém que saiba fazer bons instrumentos FM. Infelizmente de novo, isso não ocorre muito entre programadores do ocidente, então a maioria dos games japoneses soam ótimos, pois suas equipes sabiam criar instrumentos razoáveis.
SNES (Nintendo S-SMP)
- SPC700
- + Sony DSP 16-bit ADPCM , 8 canais
- Taxa de amostragem: 32,000 KHz
- Master clock 24,576 MHz (independente do CPU, que é 3,58 MHz)
- 64 Kb RAM de áudio
Oito canais ADPCM e alguns efeitos via hardware. Teoricamente produziria melhores sons que o Mega Drive, mas a Nintendo complicou o design, então muito dessa vantagem acaba desperdiçada, senão a diferença entre eles seria muito maior. O SPC700 tem 64 Kb de RAM, mas não lê dados de cartucho por conta própria; precisa de assistência do 65816 (CPU). Isso significa que o programa de som, todas as amostras e todos os dados (não só da música mas também efeitos) precisam estar guardados em sua RAM, o que limita severamente o que pode ser feito.
Para piorar, o CPU não pode acessar a RAM do SPC700 diretamente. Em vez disso, há 4 portas de comunicação 4 bits, e para enviar dados é preciso que o SPC700 procure dados nessas portas e o CPU esteja enviando dados ao mesmo tempo (há um programa de boot do SPC700 que faz isso no boot do console), operação terrivelmente lenta e a razão de tantos games darem aquela pausa de alguns segundos quando vão trocar a música de fundo.
O SNES tem a desvantagem extra de que a Nintendo recusou-se a permitir que desenvolvedores usassem suas próprias ferramentas de som. Em vez disso, todas as licenciadas eram obrigadas a usar a engine de som da própria Nintendo - que bem limitada, resultava num uso superficial do potencial. Muitos desenvolvedores usavam amostras padrão da Nintendo, que não soavam exatamente uma maravilha, e os que forneciam suas próprias amostras, em muitos casos usavam sintetizadores FM, que acabavam não soando tão melhores do que o Mega Drive podia fazer.
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Agora pra fechar mesmo: Sonic 2 no áudio do SNES e Chrono Trigger no áudio do Mega Drive. Viu a bizarrice? Por isso "tecnicamente inferior" não exatamente significa "pior".