O ano é 2024, mas o preconceito contra games ainda é o de 1980

Em dezembro de 2023, o primeiro humano na história alcançou a kill screen de Tetris. Parece banal, mas pense: desde que o puzzle foi criado por Alexey Pajitnov na União Soviética e a versão do Famicom lançada em 06/06/1984, não se sabia de alguém que conseguisse alcançar o limite do jogo. Nem se sabia ao certo se havia um limite.

Homens, mulheres, adultos, crianças passaram pela Terra nos quase 40 anos desde então. Milhões, talvez bilhões brincaram com Tetris. Todos fracassaram em chegar ao final, ao menos na frente de uma câmera. Só ele, Willis Gibson, um americano de 13 anos, bateu Tetris – indo tão longe que o software para de funcionar porque não previa que alguém chegasse tão longe.

Numa visão poética, a kill screen é quase como Truman descobrindo a parede falsa. É chegar onde você nunca deveria estar para continuar dentro do show, é superar o desafio que programador nunca imaginou que seria superado.

Você, eu e qualquer pessoa de bom senso pode imaginar o que um menino de 13 anos com tal foco pode conquistar na vida se tiver a mesma disposição. A gente pensa com otimismo no potencial, no quanto é impressionante alguém jovem se dedicar a algo tão difícil e realizar.

Não é prova de que estamos diante de um novo Einstein ou um futuro ganhador do Nobel, claro. Jogos exigem conjuntos específicos de habilidade, que para felicidade dele, Gibson parece dominar. Grandes mestres de xadrez podem ser péssimos engenheiros ou militares.

Mas para uma parcela da população, o feito de Gibson não é nada de importante ou interessante. Ao contrário, é bobo e merece ser ridicularizado em rede nacional. Como para uma apresentadora da Sky News americana chamada Jayne Secker, que ao comentar a notícia na quinta-feira, soltou essa pérola:

Como mãe, eu diria saia de perto da tela, vá pra fora, pegar um ar fresco. Bater Tetris não é um objetivo de vida.

Coisa de boomer, eu ouvi?

Não é coisa de boomer

Ao contrário do que alguns, especialmente mais jovens, diriam nas redes sociais, não é "coisa de boomer" (a gente discutiria o sentido do termo boomer, mas não vem ao caso). Vendo reações à postagem no Twitter/X, notei muita gente jovem que concorda com a jornalista de 51 anos.

Vejam a tranquilidade com que ela faz chacota da notícia. Não sei vocês, mas aos 13 anos eu tinha objetivos simples. Um deles definitivamente não era estourar o placar de Tetris porque 1. eu não tinha um NES e 2. mesmo que o tivesse, não tinha a habilidade necessária para tal. Por muito tempo, fiquei obcecado em bater o G. Ceara de Super Monaco GP, problema?

Além da falta de empatia da cidadã, especialmente por ser uma criança – e mesmo que fosse um adulto estaria errada –, o comentário é mais um dos inúmeros lembretes quase diários para quem gosta dessa mídia chamada videogame de como pessoas fora dele ainda o veem e como essa mentalidade introjetada na década de 80 parece inacabável, mesmo que o setor seja há anos o mais rico de todo o ramo de entretenimento – ano retrasado, chegando ao acachapante dobro do tamanho das indústrias de cinema e música combinados.

"Mas bater Tetris não é um objetivo válido na vida, certo?" Errado.

A vida é feita só de objetivos grandiosos e construtivos o tempo todo? Quase ninguém vira chacota na TV porque decidiu fazer um set de exercícios "impossível" na academia ou correr a São Silvestre mesmo não sendo atleta e não chegando nem entre os 100 primeiros. Nem por ser campeão local de xadrez ou de dardos. Nem por resolver aprender a tocar violão mesmo sem interesse em ganhar dinheiro com música. Nem por maratonar séries de TV ou conhecer todas as falas de filmes de Tarantino, de Homer Simpson ou todos participantes do BBB. Nem por conhecer a escalação do time de coração no campeonato regional de 1956.

São atividades com ampla aceitação social. É onde videogames, por mais ricos ou difundidos que sejam, ainda não quebraram a parede do estereótipo.

Pesquisas recentes sugerem que 70% dos brasileiros jogam, número parecido com o dos Estados Unidos (66%) e não muito longe da Europa (53%). Mesmo assim, há quem se ache no direito de fazer chacota com suposta propriedade de quem não perde tempo diante da tela porque "pegar um ar fresco" é mais saudável.

E por que isso?

As razões para a imagem negativa são complexas pra gente entender sem um estudo, mas passa pela própria indústria no passado e como a mídia foi explorada e vinculada a determinados grupos.

tom kalinske ao lado de um boneco de Sonic
Entre 1993 e 1995, Tom Kalinske foi o primeiro executivo a buscar o público feminino nos games, um mercado até então focado exclusivamente nos meninos e homens jovens. Essa idealização, que ainda está sendo quebrada, criou um senso de grupo masculino hostil a qualquer elemento visto como "invasor". E quanto mais fechado, mais difícil de se desvencilhar do senso comum.

Até meados dos anos 90, quando a guerra entre Sega e Nintendo levou os consoles da seção de brinquedos para a de eletrônicos das lojas, videogames eram sim brinquedos, fabricados com cores berrantes e forte apelo infantil. Até ali, videogame era brinquedo de meninos, feito para que eles vivessem a fantasia do esportista, do herói medieval, do guerreiro salvador de princesas.

Foi durante a chefia de Tom Kalinske na Sega que a semente da mudança foi plantada quando a duras penas elevaram a participação feminina no Genesis de 3 para 20% em apenas dois anos, até 1995 – quando o 16-bit e a própria Sega já estavam a beira do colapso.

Mas o marketing consolidara a imagem do videogame como algo masculino por uma década, no mínimo desde o lançamento do NES em 1985. Por quase todo esse período, não só como masculino, mas também um aglutinador de minorias. Os "nerds" que para horror dos pais jogavam de forma desenfreada, os excluídos nos esportes físicos que eram ídolos no arcade mais próximo, tinham algo que os unia. Um prato cheio para o marketing.

Um dos gatilhos mais usados pelo marketing é o do pertencimento a um grupo. Ele foi aplicado à exaustão e com sucesso no mercado de games. Meninos que eram alvo de chacota dos amigos não-gamers, do zelo às vezes ignorante dos responsáveis como essa jornalista, de repente se realizavam com aparelhos eletrônicos e computadores caros e modernos, não mais brinquedos.

Fogo amigo

Isso aumentou o senso de pertencimento, num efeito retroalimentado de mais marketing > mais união > mais dinheiro. O grupo se fechou até se tornar tóxico com qualquer elemento "externo" – como o público feminino – mas também entre os próprios jogadores, numa eterna busca por autoafirmação interna. A disputa pelo merecimento duvidoso do rótulo "gamer de verdade" é o puro suco da autoafirmação em grupo (desculpem psicólogos por mexer em suas gavetas).

Como explicar às pessoas que elas estão erradas sobre você, se você mesmo não larga os padrões? Como desfazer conceitos errados ficando numa barricada?

Trevor Phillips
O ator que interpretou um dos personagens mais reconhecidos da história dos games e portanto conhecedor em primeira mão do esforço envolvido, é pouco fã do próprio trabalho – chamando Trevor de "cartoon" em tom de desdém. Não é um padrão, ao menos em declarações públicas, mas fala um pouco sobre a opinião de não-gamers sobre games. E não parece algo fácil ou próximo de mudar.

A percepção dos games como algo inferior a outras mídias não é exclusividade de quem está fora. Às vezes o fogo é amigo, como Steven Ogg, que nos últimos anos vem tentando se desvencilhar do personagem Trevor, a quem deu vida em GTA V. Não só se desvencilhar, mas dando declarações que soaram inacreditáveis* quando a gente pensa que saíram da boca de quem interpretou um dos personagens centrais no maior produto da história da indústria de entretenimento.

* Em 2022, Ogg se recusou a interpretar Trevor para um cliente na plataforma Cameo, discursando sobre ser um ator e não um "cartoon", enfatizando que Trevor não existe e que não via sentido nas pessoas o pagando para que falasse como o personagem.

O "fogo amigo", no caso, é pela importância do que ele fez. Ogg nunca teve interesse em games e já havia relatado ter feito o teste para GTA V achando que seria captura de movimentos para uma animação. Mas ao desdenhar de seu personagem icônico, usando o termo "cartoon" em tom pejorativo, deixou claro que sua visão da mídia videogame não é das mais positivas.

Conseguem imaginar Keanu Reeves dizendo que não quer mais ser lembrado por Neo ou John Wick porque não são reais e que não entende porque alguém se importa com seus filmes?

Além do marketing, a própria TV não educa as pessoas sobre o tema. Ao contrário, parecem dispostos a manter a corrente de que videogame é hábito de crianças e adultos que nunca atingiram a maturidade – talvez por ser uma mídia concorrente, que ano após ano vem tomando seu público.

Fazendo um mea culpa, a mídia especializada também não ajuda, com poucos órgãos que abordam o tema sem descambar para um tom juvenil e datado que parece mais preocupada em agradar o algoritmo do Twitter do que o leitor – quase metade dos jogadores têm mais de 29 anos, então por que continuar usando a mesma comunicação visual e escrita de apelo adolescente?

Pré-conceito

Quando se fala de "preconceito", é bom que fique claro que se trata de uma forma bastante literal do termo: um conjunto de ideias pré-estabelecidas e antiquadas sobre videogames. Você ser alvo de gracejos no trabalho porque disse que vai passar o fim de semana jogando ou chacotas do cônjuge diante da família porque prefere jogar do que ir ao cinema não é um preconceito estrutural e histórico como outros da nossa sociedade, com consequências mais danosas. Gamers não são espancados ou perdem vagas de emprego por serem gamers (talvez um caso isolado aconteça, não como uma prática estrutural da sociedade).

Mas o fato é que em 2024 – pare, repita em voz alta e perceba: 2024 –, com jogos bilionários, franquias chegando à TV e cinema, ainda não atingimos o ponto crítico, ao "horizonte de eventos" em que finalmente videogames serão vistos como o que são: apenas mais uma mídia, nem pior e nem melhor.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

1 COMENTÁRIO

  1. Triste esse preconceito que ainda existe!!!! Fala galera do Memoriabit, ja foi o tempo em que video game era considerado brinquedo e Xadrez era o único jogo que trabalhava com a mente das pessoas em termos de extratégia e afins!!!! Tenho até uma certa inveja de quem trabalha na área gamer, tanto jogcando ou criando games...independente se é PC, celuar o console, seria a profissão que muitos gostariam de ter!!!! Sobre Tetris, eu vi o vídeo...e olha que a molecada dessa geração atual só quer mesmo jogar jogos avançados e raramente aparece uma criança jogando determinado jogo antigo e assim vai!!!! Me fez lembrar até de uma matéria de vcs aqui mesmo sobre jogos atuais estarem mais fácil do que os de antigamente, sendo que Tetris o grande inimigo mesmo é a velocidade do jogo que vai aumentando de acordo com a dificuldade, me lembra até um pouco de Columns da Sega que tanto gosto e ainda jogo!!!! Infelizmene a mídia ainda não ver com bons olhos esse tipo de proeza e dedicação sobre determinado jogo, ainda mais que difícil o jogo vai se tornando com o tempo!!!! Valeu!!!!

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