Quase todo mundo que acompanha o mundo dos games já ouviu falar em uma das siglas mais odiadas dos últimos tempos: NFT. A possibilidade de desenvolvedores usarem seus jogos como plataformas para transações em blockchain soa como um apocalipse de como conhecemos os jogos até hoje.
Se a princípio, a ideia de negociar seus personagens, armaduras e armas como itens únicos parece inofensiva, não é difícil imaginar que empresas, pra variar, farão o uso mais agressivo e nefasto da tecnologia. Muita gente vem alertando sobre como pode terminar isso. Há previsões quase catastróficas.
Sem entrar no mérito a fundo, um dos jogos de destaque que usam blockchain é Mir4. O MMORPG da desenvolvedora coreana WeMade foi lançado na Ásia em 2020 e apareceu no resto do mundo em agosto passado. Obteve grande público desde então, especialmente por ser listado gratuitamente na Steam.
Não tem segredo. Basta bater o olho pra sacar que é um RPG com aquele estilo de trama clássica oriental. Princesas em perigo, criaturas monstruosas, feiticeiros, guerreiros com espadas maiores que eles e guerreiras com roupinhas fashion. A história gira em torno de uma certa Princesa Cheonpa, que tem asinhas de dragão, e uns tais Touros Malvados que sequestram mulheres para... enfim.
Jogadores podem se enfrentar em PvP ou participar de aventuras em PvE. É um típico pay-to-win: quem colocar dinheiro real em equipamentos tem vantagem rápida e descomunal sobre os jogadores gratuitos. Tem elementos de gacha e colecionáveis. Roda em qualquer máquina, até celular. Tem partes quase arcaicas e outras bonitas. Personagens e armaduras são bem desenhados, mas cutscenes ordinárias em vídeos pré-renderizados.
Então qual o segredo de Mir4? Money, parça.
Draconiano
Mir4 tem vários sistemas comuns de MMORPGs, como clãs, moedas, colheitas e minérios. O que atraiu tanta gente é o Aço Negro (Darksteel), empregado de várias formas. É quase um minério de "fusão universal", servindo para craft de armas, itens, encantamentos, etc. Além das moedas de cobre, que são a base da economia de Mir4, você vai precisar de Aço Negro pra quase tudo.
Mas a partir de certo momento, o aço também pode ser fundido e convertido em moedas chamadas Draco, uma utility token real. Utility token é como são chamados criptoativos focados numa aplicação, como dentro do ambiente de um jogo, para clientes de uma loja, etc. O Draco serve tanto para comprar Aço Negro dentro de Mir4, quanto podemos converter grandes quantidades de Aço Negro em Draco.
Ao contrário de criptomoedas recebidas deixando GPUs consumindo milhares de kWh por mês, você obtém Aço Negro jogando Mir4. Uma das formas é "minerar" mesmo: colocar seu personagem com uma picareta na mão perto de uma das minas e deixá-lo trabalhando. Também são dados pacotes do minério ao completar missões e atividades. Depois, o Draco pode ser convertido em dinheiro do mundo real através do aplicativo de carteira digital Wemix.
O Draco está cotado no momento a pouco mais de US$ 0,73 e caindo, tendência há semanas. Poucas semanas após o lançamento de Mir4, o ativo chegou a valer quase oito dólares, na fase mais estável. Foi quando atraiu gente buscando renda extra – mas valendo dez vezes menos, muitos caíram fora.
Mesmo assim, tem quem jure ainda tirar mais de R$ 500 mensais em Mir4. E "sem fazer nada", já que a jogabilidade é muito baseada em tarefas automatizadas. Você seleciona missões e objetivos, clica em Iniciar e pronto: o personagem faz o resto sozinho. Você só precisa mantê-los preparados e fim. Enquanto escrevo, minha Besteira e meu Guerreiro estão em outras janelas, em modo de economia de energia, matando uma legião de monstros por XP e itens.
É possível? Sim. É fácil ganhar dinheiro? De jeito nenhum.
Ataque dos bots
Em primeiro lugar, não dá pra sair acumulando Aço Negro desde o início. Como ele tem serventias específicas como criação de itens fundamentais no progresso do personagem, você será obrigado a gastar tudo que receber no começo. Não vai acumular o bastante para trocar por Dracos e também não dá pra manter o personagem estagnado por razões que veremos logo.
Algumas das melhores fontes de Aço Negro estão em áreas acessíveis só após semanas jogando: a Praça Mágica e o Pico Sombrio. E chegando a esses lugares, você terá problemas para lidar com concorrentes pelo minério.
A concorrência não é sempre das mais honestas. Ou melhor, quase nunca. Já é desagradável quando um personagem com muito mais pontos de poder chuta você da mina e toma seu lugar. Nas principais locações, onde há as minas mais produtivas, isso VAI acontecer.
Mas para piorar, bots estão infestando Mir4. São tantos que lembram o Smith, de Matrix: mesma aparência, já que não passam pela personalização inicial. A maioria são Besteiras (arbalists), com nomes aleatórios como "bl3x5no1". Virou praga em todos os servidores e até ajudam em certas ocasiões, como ao procurar bater chefes ou mobs mais fortes do que seu nível.
O problema é que bots não estão lá pra ajudá-lo e sim farmar o minério. Eles se teletransportam, aparecendo em cima das minas assim que elas respawnam, não dando chance de jogadores reais com níveis mais baixos tomarem o ponto. Alguns também retomam o ponto ocupado, segundo relatos (não presenciei).
Isso obriga você, que planejava minerar pra valer a partir do nível 40 – mínimo para fundir aço – a desenvolver mais o personagem. Se tiver uns bons níveis acima dos bots, você pode chutá-los longe e reassumir a pedra com técnicas que causam atordoamento (stun). Matar personagens pacíficos, mesmo bots, aumenta seu PK na maioria das regiões e leva a punições, como a redução do ganho de experiência.
Então, quando alguém disser "chegue ao nível 40", conforme-se com a ideia de ir bem além antes de começar a carreira falida de minerador. A WeMade está consciente do problema e supostamente tenta resolvê-lo, mas parece ter só piorado.
O que fazer caso identifique um bot numa mina e tenha um golpe que causa atordoamento? Quem pode, muda seu status para Hostil e o derruba ou mata. Mas aí vêm outras razões para upar seu personagem, mesmo que esteja ali só pela grana.
Milícias e trolls
Antes de seguir, uma explicação sobre os spots de Aço Negro. As raridades em Mir4 são divididas por cores, valendo para tudo, desde baús, itens e também as minas. As raridades são comum (cinza), incomum (verde), raro (azul), épico (vermelho) e lendário (amarelo).
Ou seja: se estiver andando em algum lugar e topar com um baú que emana um brilho verde, já sabe que ele é "incomum". Na interface do jogo, itens raros tem fundo azul e assim por diante.
Minas, plantas, baús, lugares de meditação e tudo mais são divididos por raridade. Quanto mais raro, melhor o produto que sai dali. Uma mina lendária de Aço Negro é para poucos, pois rende briga entre personagens de poder alto. Enquanto uma mina épica entrega cerca de 180 unidades do minério a cada 10 segundos, a lendária eleva o valor pra mais de 300, fora itens adicionais.
Na verdade, até pedras azuis (com cerca de cem unidades a cada dez segundos) já podem causar briga, mas é comum ter seu personagem chutado ou morto por jogadores mais fortes enquanto estiver numa pedra vermelha ou amarela. Nem se iluda sobre explorá-las em paz se não tiver pontuação de poder alta o bastante para inibir agressores. E nem isso é garantia.
Além de personagens poderosos aleatórios, há clãs ou guildas que dominam áreas e determinam quem pode se aproximar das minas (geralmente, só eles). Alguns reúnem centenas de personagens com altíssimo poder e se tornaram tão dominantes, que gerou-se uma espécie de ditadura. Mesmo clãs pequenos perturbam o progresso de jogadores "independentes" – no NA11, já fui perseguido por dois membros de um clã por reagir a uma agressão enquanto minerava Aço Negro e não é raro ser atacado aleatoriamente.
Há guerras entre clãs e alguns, como o DTM, são vistos como moderados, permitindo que jogadores "normais" façam suas atividades como minerar – afinal, não dá pra jogar sem ter ao menos o suficiente para criar seus itens. Mas eles também vetam o acesso aos melhores pontos de mineração e não há exatamente um "código de conduta".
Exemplo: uma personagem da DTM com 118 mil de poder matou minha Besteira com 31 mil enquanto minerava no 2F do Pico Sombrio (área aquém das necessidades de alguém tão poderoso). Perguntei no chat por que fez aquilo e o jogador alegou que eu "estava muito perto" dele 🤣. Eu não representava qualquer risco. Um personagem com quatro vezes menos poder é como uma criança tentando nocautear Mike Tyson. Não há justificativa exceto "fiz porque quis".
Ou seja, Mir4 é acima de tudo um jogo de poder: quem tem, faz o que bem entender. Muitos colocaram dinheiro real nos personagens, e não foi pouco. Especialmente clãs chineses e coreanos chegam nos servidores e não há o que fazer a não ser seguir regras deles. A desenvolvedora vai defender o free-to-play que busca um passatempo pacífico ou quem botou 100 mil dólares no jogo e mata por diversão?
Quem reagir a tais abusos ou violar regras impostas por milician... digo clãs pode ser morto em segundos. E se cair em desgraça com clãs dominantes, será perseguido pelos membros, o que vai destruir sua experiência no jogo. Veja a imagem acima: são quase 300 usuários com poder acima de 90 mil. E foi só uma página.
Resta, portanto, jogar por meses, com frequência, para elevar o nível de seu personagem para sobreviver nesse ambiente hostil sem morrer a cada dez minutos. Isso abre outra possibilidade de fazer dinheiro com Mir4 – mas não se empolgue, vai dar tanto trabalho que poucos chegarão lá.
Personagem como NFT
Com o desabamento do valor do Draco e cada vez mais Aço Negro necessário para a fundição, jogadores de Mir4 estão focando em outra forma de ganhar dinheiro real: a venda de personagens. Ao contrário de outros games, em que personagens são intransferíveis, Mir4 incentiva a criação e venda deles, mas como NFTs.
Explicação rápida: NFTs são tokens não-fungíveis. De forma superficial, são um código que representa algo; no caso, um personagem de Mir4 e todas as suas características. Quando um personagem é desenvolvido até o nível mínimo 60 e 100 mil de poder, ele pode ser "lacrado" na forma de um NFT e vendido a outros jogadores. Você não vende a conta: só o personagem é lacrado e oferecido como produto.
Há relatos de jogadores vendendo personagens entre 200 e 500 dólares. O mais caro até hoje, uma besteira do servidor Asia24, com pontuação de poder de 189 mil, foi vendido por 55 mil tokens Wemix. Na cotação de hoje, quase US$ 280 mil.
Mas aí entram os "contratempos". Primeiro, é muito trabalhoso levar um personagem aos 100k de poder. Nível não é tão difícil conseguir: após ter acesso à Praça Mágica, o jogador consegue doses cavalares de XP na praça de experiência, com 1 hora ou mais matando monstros de forma automatizada.
Mas para alcançar tal poder, é preciso conseguir itens épicos e lendários, liberar torres, elevar tiers de técnicas, melhorar o equipamento, etc. Tudo custa muito Aço Negro, Cobre e tempo. Talvez seja necessário deixar o PC ligado 24 horas por dia enquanto seu personagem atravessa noites em batalhas automáticas – torcendo para algum engraçadinho não te matar por pura diversão enquanto você dorme. Pra não levar meses, será preciso dinheiro real na receita.
E pra completar, o serviço de "lacrar" o personagem como NFT ainda custa 4 mil moedas de ouro do jogo. As moedas são bem mais difíceis de obter: você precisa vender itens no mercado interno. E 4 mil de ouro vai exigir muita venda – ou que você gaste uns 30 dólares, se quiser o atalho.
Claro que valendo cinco reais a unidade, 500 dólares não soa mal para algo feito em um jogo no qual você não precisa colocar um centavo, só seu tempo e energia elétrica. No momento, a venda de personagens é a forma mais realista de fazer dinheiro com Mir4. Mas é uma longa jornada.
Serra Pelada digital
Considerando as dificuldades, diria que Mir4 é quase uma Serra Pelada digital. Pra quem não lembra, é uma área no Pará que ficou famosa entre os anos 70 e 80 pela mineração de ouro. Atraiu milhares de pessoas sonhando com riqueza, mas a maioria nem sabia o que estava fazendo lá. Quem ficava com o ouro grosso eram peixes grandes como a Vale do Rio Doce e outras companhias.
Os grande clãs de Mir4 não estão lá por diversão ou rendinha extra. São empresas, que compram contas poderosas e atraem outras para minerar Aço Negro nos melhores pontos sem concorrência. E até pra eles, já é questionável o lucro nesse "modelo de negócio", pois o Draco se desvalorizou e são precisos milhares de unidades de aço para gerar uma única moeda. A quantidade é variável e hoje está em 380828 / 1. Sim, 380 mil partes de Aço Negro para gerar 1 draco.
Faça as contas. Um spot amarelo de Aço Negro dá 300 partes a cada dez segundos, no ajuste básico – com melhorias de espírito, o rendimento sobe um pouco. Caso tivesse abundância de pedras amarelas (e como explicado, não vai rolar), você conseguiria uns US$ 0,80 por hora, ou seja, no máximo R$ 100 por dia. Isso no melhor – e mais utópico – cenário possível, deixando seu personagem ralar com picareta 24 horas por dia, sete dias por semana. Ou vários bots, com o constante risco de tomar ban em todas as contas.
"Então está dizendo que tenho uma chance?"
Pra quem vai minerar em terras de milicianos, bots e moleques ansiosos para matá-lo por umas risadas, não parece boa fonte de renda. Mas se quiser entrar em Mir4 pela diversão – e quem sabe vender seu personagem no futuro, sem compromisso – já é outra história. Pode ser viciante, então vá com calma, automatize tarefas e não pense nele como fonte de dinheiro fácil, porque não é.