Sheng Long. Um nome que pra muita gente, até hoje é reconhecido como o mestre de Ken e Ryu, da série Street Fighter. Mas como assim, o mestre da dupla não foi o Gouken? Gouken e Sheng Long são a mesma pessoa? Existiu um Sheng Long?
Seja qual for seu nome, o cara é protagonista de uma das mais conhecidas lendas dos games. Sua presença (ou falta dela) em Street Fighter II foi tão influente no imaginário coletivo que alcançou o time de produção. Num processo de realimentação, a lenda potencializou o personagem e foi catalisadora de alterações na série e nos jogos de luta em geral. Por causa dele, vimos shoryukens de fogo, por exemplo.
"Reptile foi algo bem divertido de fazer", contou Ed Boon, um dos criadores de Mortal Kombat, revelando a influência do lutador secreto na série rival:
Street Fighter sempre tinha aquilo de "Oh, tem alguma coisa no jogo", e as pessoas especulavam "Você deve bater Sheng Long para ter uma chance" [...] Lembro de pensar "Uau, seria legal se houvesse uma ocorrência totalmente rara de um personagem que as pessoas poderiam dizer que viram, mas seria tão raro que não conseguiriam repetir a hora que quisessem".
Quase 30 anos passados, ainda tem quem não entenda onde termina Sheng Long e começa Gouken. Ou onde termina a lenda e começam os fatos. E pensar que tudo começou numa tradução errada – seguida por uma pegadinha que foi longe demais...
Será que Sheng Long está mesmo lá, escondido nas profundezas dos bytes do jogo e nunca mais revelado? De tantas histórias de jogadores que garantem ter encontrado o ancião lendário, pelo menos uma não era real? Ou tudo nunca passou de uma grande mentira?
Origens
A primeira citação ao nome Sheng Long foi em Street Fighter II, o histórico arcade de 1991. E só na versão americana, por um erro do time de tradução da Capcom. Cada personagem tem uma frase de vitória. O brasileiro Blanka (que aparece derrotado ao lado) diz "Ver você em ação é uma piada". Chun-li diz "Sou a mulher mais forte do mundo", etc.
Ryu diz ao adversário derrotado "You must defeat Sheng Long to stand a chance". Em português, seria traduzida como "Você deve derrotar Sheng Long para ter uma chance".
A frase original era "昇龍拳を破らぬ限り、おまえに勝ち目はない" ou em rōmaji, "Shōryūken wo yaburanu kagiri, omae ni kachime wa nai!". A tradução literal seria "Enquanto não conseguir quebrar o Shōryūken, você não tem chance de vencer!".
Então de onde foi aparecer "Sheng Long"? O nome do golpe em japonês é escrito em kanji 昇龍拳, romanização "Shōryūken", onde:
- 昇 - subir;
- 龍 - dragão;
- 拳 - punho.
A tradução mais óbvia seria "Punho Ascendente do Dragão" ou similar. Simples de entender que Ryu estava falando do golpe em que ele literalmente berra shoryuken! e sobe enquanto golpeia, não?
Mas o kanji japonês tem origem chinesa. E em chinês, 昇龍拳 teria a romanização "Shēng lóng quán".
- 昇 - Shēng, subir;
- 龍 - Lóng, dragão;
- 拳 - Quán, punho.
O Shēng lóng, Shenlong ou Shen-lung (Hong Kong) é um dragão espiritual da mitologia chinesa. Segundo a Wikipedia:
É o senhor das tempestades e também portador da chuva. Equivale a outras criaturas como Tianlong, o dragão celestial. Os dragões espirituais são azuis escamados e governam o vento, as nuvens e a chuva, dos quais depende toda a vida agrícola.
A melhor tradução talvez fosse "punho do espírito do dragão". Seria o tradutor americano de origem chinesa ou ele achou que essa pronúncia era mais interessante? Ninguém sabe ao certo, mas é de onde veio o nome Sheng Long.
O que não fazia o menor sentido no jogo, já que nenhum golpe ou personagem se chamava Sheng Long. Ninguém dentro da Capcom no Japão havia citado tal nome. Revistas de games também não – até então. O mestre de Ryu e Ken sequer existia, para efeitos práticos.
E aí veio uma revista e fez a confusão...
Primeiro de abril
Em 1992, Street Fighter II já era um fenômeno dos arcades. A The World Warrior logo faria o Super Nintendo vender mais que pão quente e donos de Mega Drive imploravam aos deuses por uma versão.
Mas quem começou a difundir a lenda foi a tradicional revista Electronic Gaming Monthly. Em sua edição de abril, publicaram uma matéria sobre o jogo na seção "Tricks of the Trade", ensinando como encontrar Sheng Long, que seria um personagem secreto.
Note que boatos sobre o personagem eram frequentes por causa da frase de Ryu. Jogadores ouviam histórias aqui e acolá de gente que garantia ter encontrado Sheng Long, mas não lembrava ou não sabia como tinha feito. Alguns diziam que ele era um chefe final, outros que seria selecionável; rumores desencontrados só foram aumentando o status da lenda. A própria EGM havia dito antes que tudo não passava de boataria.
"Nós na EGM estamos sempre certos, mas quando publicamos que Sheng Long não existia, fomos inundados por centenas de cartas negando isso", diz a matéria. "Após semanas de verificação de cada afirmação dos leitores, finalmente resolvemos o mistério de Sheng Long". E vinha a instrução de como fazê-lo aparecer – e melhor ainda, com fotos.
Como fazer Sheng Long aparecer?
Segundo a EGM, o jogador deveria usar apenas Ryu durante toda a partida, não sofrer nenhum golpe até o início da luta contra Bison e – começa a ficar óbvia a sacanagem – lutar contra o último chefe durante 10 rounds sem que um toque o outro.
Ao final dessas condições absurdas (especialmente a última, já que Bison em The World Warrior era extremamente agressivo), a luta terminaria em empate. Sheng Long apareceria, jogando Bison longe e tomando seu lugar. O tempo travaria em 99 segundos, obrigando pupilo e mestre a lutar até o nocaute de um deles.
Sei, você já viu algo parecido, mas calma.
A matéria bombástica foi publicada em revistas do mundo todo. Um dos maiores segredos de Street Fighter II tinha sido descoberto? Jogadores passaram meses tentando repetir os passos. A presença de fotos dava um ar de veracidade ao método.
Só na edição de dezembro, a redação se cansou e revelou que tudo não passava de uma piada bem elaborada do Dia da Mentira. Foram quase oito meses de busca por algo que simplesmente não existia. Os sinais estavam lá e não eram exatamente discretos; no rodapé da página havia um grande aviso de concurso para que leitores indicassem qual matéria daquela edição era falsa...
E um agradecimento pra lá de suspeito: Sr. W. A. Stokins, de Fuldigen, HA, leitor que teria mandado a explicação mais precisa do método.
- W. A. Stokins = waste tokens ou "desperdiçar fichas";
- Fuldigen = fooled again ou "enganados de novo" (a revista fazia piada todo ano);
- HA = hahaha mesmo.
Não existia no jogo, mas Sheng Long passava a existir ainda mais vívido de outra forma: no imaginário popular.
Como fogo
A revista foi publicada quatro meses antes do lançamento da versão para Super Famicom e seis antes do Super Nintendo. Os boatos tinham tanta repercussão que lógico, chegaram no pessoal da Capcom e não deu outra: lá estava o nome do "Mestre Sheng Long" no manual americano do jogo.
O mito se espalhava como um fogo fora de controle. Era como se a mentira – da EGM ou das lendas que circularam a partir do erro de tradução – tivesse criado raízes por toda a mídia, indústria e público, ao ponto de afetar um material oficial como o manual. Para os americanos, Sheng Long era o mestre de Ryu e Ken e fim. Mas de fato, Sheng Long não existia nem no arcade, nem no SNES, nem em versão alguma do jogo, na história, nada. Não existia.
A Capcom, contudo, já tinha sido seduzida pelo barulho. Se as pessoas queriam tanto um Sheng Long, por que não dar algo a elas?
Serve o irmão?
Ao observar a matéria da EGM, você deve ter notado a semelhança com a entrada de Akuma em Super Street Fighter II Turbo. E com certeza não foi por acaso, embora a Capcom nunca tenha confirmado oficialmente a influência da pegadinha no desenvolvimento do antagonista.
Akuma ou Gouki apareceu em 1993 na última versão da "família" Street Fighter II. Foi quase como um presente de despedida, já que o jogo seguinte seria o Alpha ou Zero. Chamava atenção sua aparição, muito similar à do Sheng Long da piada da EGM. Suas características batiam em alguns pontos: Akuma surgia na luta final, acabava com Bison e enfrentava o jogador. Era um adversário poderoso, cujo shoryuken era envolto por chamas.
As condições para trazer Akuma eram desconhecidas e especulações foram as mais malucas possíveis. E ao contrário do que se imaginava, Akuma não era Sheng Long, mas sim o irmão "encapetado" do mestre de Ryu e Ken.
Seu visual trazia referências à primeira aparição pública do mestre conhecido como Gouken no mangá da série, desenhado por Masaomi Kanzaki entre 1992 e 1995. Além de um kanji nas costas, Gouken era muito forte, visivelmente mais velho que a dupla clássica e usava um colar de contas.
Tudo isso foi colocado em Akuma. A principal diferença era no visual mais escuro e maligno, com olhos vermelhos e o cabelo espetado. Com a adição dele e sua história de fundo, o nome Sheng Long morria de forma oficial. O mestre de Ryu e Ken já era Gouken em pelo menos dois produtos oficiais: o mangá e o jogo Super Street Fighter II Turbo.
Mas e o Sheng Long, hein?
Nada disso bastou e as pessoas continuaram se iludindo com o bendito Sheng Long ou Gouken ou sabe-se-lá-o-nome-do-mestre. Em 1997, a EGM, não satisfeita com a primeira rodada de esculhambação, sacaneou de novo. Na edição de abril, a revista mandou uma reportagem mostrando que Sheng Long dessa vez viria, em Street Fighter III: New Generation.
Como antes, a matéria foi elaborada com imagens falsas mostrando o suposto personagem. Além das fotos editadas, havia arte e história, contando que Sheng Long era o irmão mais velho de Akuma, ambos treinados por Goutsetsu (escrito assim mesmo na matéria). Os irmãos teriam desenvolvido uma grande rivalidade durante os treinos e o mestre os mandou para diferentes destinos, de modo que desenvolvessem suas técnicas.
Akuma teria se rendido ao lado sombrio enquanto Sheng Long se tornou um mestre pacífico. Inventaram até uma frase de vitória óbvia pra ele: "Você deve me vencer para ter uma chance".
A revista justificou que Sheng Long seria o nome na América, enquanto no Japão ele seria chamado de Gouken, nome que já existia desde o background da história de Akuma.
A mentira era ainda mais crível. E o nome Sheng Long já tinha aparecido num jogo não-canônico da série, Street Fighter: The Movie, em que é citado (mas não aparece) nos finais de Ryu, Ken e Akuma.
Alan Noon, um dos designers do jogo baseado no filme, contou em 2007 que a equipe teve autorização da Capcom para criar Sheng Long, dando detalhes de como seria o personagem:
Sheng Long seria incrível. Ele vestiria quimono preto com a parte superior longa, verde, acolchoada, sem manga, amarrada por uma faixa preta. Seu cabelo era muito longo e branco, numa única trança correndo por suas costas. Ele também teria uma longa barba estilo Fu Manchu como em filmes de kung fu. E agora as coisas ficam mais selvagens... Ele usaria uma faixa preta sobre os olhos. A razão pra isso é que Akuma teria atacado Sheng Long numa tentativa de matá-lo e apesar de falhar no assassinado de Sheng, teria conseguido arrancar seus olhos, o cegando. Sheng Long era muito durão mesmo assim, ele nem precisaria dos olhos para lutar.
Certo, então agora o design começa a ficar mais maluco... O componente final do design de Sheng Long seria seu braço. Até onde sei, originalmente os hadouken de Ken e Ryu seriam representações de seus Chi, focadas num único ataque de muito poder. "Hadoken" supostamente se traduz em algo como "onda de força" e na arte original, você pode ver um fantasma das mãos deles no projétil. Acho que de forma geral, o típico consumidor ocidental do arcade daquele tempo não estava acostumado com o conceito do Chi, então esses ataques eram citados de forma genérica como bolas de fogo.
Em algum ponto da série, Ryu de fato começou a lançar bolas de fogo e Ken desenvolveu o dragon punch flamejante. Como parte do design de Sheng Long, tentei explicar esses fenômenos. Minha ideia era que em níveis maiores de iluminação, aqueles caras mestres de caratê começariam a agregar aspectos do "dragão" em seus estilos de luta. Sheng Long seria tão avançado que na verdade começaria a manifestar característica de dragão. Como as palavras "Sheng Long" são uma tradução para "Soco do Dragão", parecia ter sentido que sua manifestação do dragão aparecesse em seu braço do soco. O braço ficaria escamado e verde, com vários chifres protuberantes por sua extensão. Seus dedos se fundiriam em duas garras mais largas. A Capcom assinou e estávamos prontos para criar meu Sheng Long!
O personagem de Noon teria chegado ao ponto de ser digitalizado, mas a Capcom acabou por vetá-lo, permitindo apenas Akuma no jogo. Sheng Long teria que esperar outra chance de aparecer para o mundo.
O nome é outro
Adorando a lenda em torno de seu produto, a Capcom foi criando mais lore com Ryu, Ken e afiliados. Em Street Fighter Alpha: Warriors' Dreams, de 1995, Gouken teve a primeira aparição num jogo da série – numa única ilustração no final de Akuma.
O visual também é baseado no mangá, com o colar e a calvície, mas com barbas longas brancas, um curioso tufo de sobrancelha escura e sem faixa na cabeça. A imagem tem a primeira aparição de outro personagem: Goutetsu, o mestre de Gouken e Gouki.
Descobrimos que Gouken foi treinado junto com Akuma pelo mestre Goutetsu, mas só o segundo sucumbiu ao lado sombrio de sua natureza. Já Gouken modificou o estilo de luta para torná-lo defensivo e não de assassinato (Ansatsuken) como era. Akuma acabaria matando o próprio mestre e também Gouken.
Com Gouken morto, acabaria o oba-oba?
Claro que não. Se a série Alpha explorava eventos antigos da linha do tempo, por que não voltar ainda mais? Em 1996, Gouken apareceu num episódio de Street Fighter II: The Animated Series. O design ainda era fiel ao mangá, até mais que em Warriors' Dreams, com cabelos escuros e o manjado colar. Em 2005, na animação Street Fighter Alpha: Generations, Gouken seria visto de novo, mas numa versão jovem, um tanto parecido com Ryu mas com cabelos longos.
A esperança de ver Sheng Long como personagem real voltou à tona no fim de 2007. O produtor da série, Yoshinori Ono, deu sinais em dezembro de que o mestre de Ken e Ryu poderia ser incluído em Street Fighter IV. Ono disse em entrevista à EGM que "aquelas piadas que sua revista publicou no passado podem achar um caminho no jogo como fanservice".
No dia 01/04/2008, através do blog oficial do jogo, a matéria assinada por Natsuki Shiozawa dizia que o jogador encontraria Sheng Long em SF IV ao vencer todos os rounds usando Ryu e sem ser tocado pelos adversários, além de aplicar um shoryuken contra o último chefe. Será que enfim o dia estava chegando?
Não era bem assim. "Sheng Long" teria sua estreia de fato em Street Fighter IV, mas como Gouken. Quer dizer: até era o velho mestre, mas não com o nome Sheng Long.
Já cansados da brincadeira, o pessoal não curtiu muito a terceira pegadinha e reclamou. Três dias depois, o blog fez uma nova postagem explicando toda a saga, desde a matéria de 1992 e afirmando que logo viriam novidades, mas "Sheng Long continua sendo e sempre será o personagem de uma lenda".
Mais tarde, enfim veio a confirmação de Gouken em Street Fighter IV. Com imagens e dessa vez reais. A Famitsu publicou várias imagens em setembro e em novembro a Capcom liberou o vídeo de revelação de Gouken.
O visual tinha traços predominantes do mangá, mas também resquícios do Sheng Long da EGM, como os longos cabelos brancos.
Conclusão
LENDA
Num estranho ciclo de lendas alimentando fatos, o mestre de Ryu e Ken apareceu nos jogos, depois dos mangás e quase estreou no The Movie. Mas Sheng Long em Street Fighter II nunca passou de uma lorota tão potencializada que o fez tomar forma com outro nome, embora sejam a mesma pessoa: o velho mestre, irmão de Akuma e discípulo de Goutetsu.
Continua agoniado para ver Sheng Long? O MUGEN é se amigo.
Caramba Capcom tinha que fazer um Street um jogo onde apareça esse Sheng Long o mais fudelanças dos bichos das goiabeiras das galáxias kkk seria maneirão personagem mais forte de todos fica dica Capcom traz Sheng Longão pá nois.
Não sei como não apareceu um hack do SF2 com o Sheng Long, tinha tanto hack do jogo...
Acho que é capaz de existir, eu é que nunca procurei bem 😀
Lembro da galera tentando dar perfect em todos os rounds para aparecer o Sheng Long!!!! bons tempos foram aqueles o de fliperama!!!! valeu
Imagino as fortunas que muitos jogadores devem ter gasto nessa lenda, quem sabe ao menos se tornaram excelentes em Street Figher com o Ryu, ao serem ''forçados'' a conhecerem milimetricamente o jogo, rsrsrsrs! Como diria o Doc Brown em BTTF: "Gastei mais de 30 anos e quase toda a fortuna de minha família para realizar aquela visão.". No caso não o capacitor de fluxo, mas Sheng Long...
Imagine um boato desses em uma época onde a gente mandava cartas para saber dicas nos jogos. A informação tinha a velocidade das bancas de jornais.