Game-key cards: a Nintendo é um ente querido que precisamos deixar

A Nintendo é como aquele tio divertido que virou outra pessoa, mas continuamos apegados.

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História comum de muita família: memórias de infância de um parente divertido; digamos um tio. O que estava nas festas, batizados e Natais, fazia geral rir, brincava com a molecada e se dava bem com todo mundo. Mas o tempo passou, seu tiozão ficou idoso e meio ranzinza; mudou de temperamento e briga com todo mundo por besteira.

De repente, você se dá conta de que aquela pessoa não existe mais. Só ficaram as memórias e a sensação de "como ela ficou assim"?

A mesma que tenho com a Nintendo, e não é de agora. O último console que tive deles foi o Wii — acho que nunca demonstrei o bastante aqui no MB a apreciação que tenho por ele —, e se pra muita gente estar invariavelmente atrás das concorrentes em hardware não importa, o comportamento da empresa com seus consumidores deixa a desejar há anos. De strikes ridículos contra uma comunidade que ama seus produtos, aos ataques dignos de guerra contra projetos independentes que não causariam dano a suas marcas, a Big N criou, por esforço próprio, a imagem de feroz defensora de suas marcas.

Nintendo Switch 2
Falou em travas, a Nintendo é entusiástica em adotar. Algumas não fazem sentido para o consumidor.

Não raramente, esforços visam aumentar lucros. Tudo bem, a Nintendo não é fundação de caridade, mas a virulência e falta de consideração com a opinião do consumidor desagrada os próprios fãs. Alguns continuam apegados, defendem o indefensável, como se fosse mesmo um tio querido. Outros seguem a vida.

Frankenstein

O mais recente tapa no consumidor é o game-key card, do Switch 2. Com ele, a Nintendo incentiva uma nova era: o da versão "mais ou menos física". Para quem gosta do ritual de comprar a mídia, ter a embalagem bacana nas mãos e saber, com satisfação, que ali dentro está o jogo, é o golpe final — pois não tem jogo.

Como eles mesmo explicam no site, "Game-key cards são diferentes de cartões de jogo comuns, porque eles não contém os dados do jogo completo. Em vez disso, o game-key card é sua "chave" para baixar o jogo completo em seu console via internet. Após baixá-lo, você pode jogar ao inserir seu game-key card em seu console e iniciá-lo normalmente".

Se tem uma palavra que não se aplica nesse processo, é "normalmente". É uma mídia física sem um bit sequer do jogo, logo, não é cópia física. Também não é digital, pois você precisa da chave física para baixar e jogar. Parece um tipo de monstro de Frankenstein entre os formatos. É a união do pior dos dois mundos.

Não precisa ser especialista pra ver que as desculpas são fracas. Em julho, o presidente Shuntaro Furukawa tentou justificar numa reunião, para acionistas sabiamente preocupados, que foi preciso fazer assim porque alguns jogos do Switch 2 são maiores que os do console anterior.

Claro que o problema não é esse. Um cartucho do Switch podia ter até 32 GB, mais que suficiente para a maioria dos títulos. Além disso, nem todos serão em game-key card; Cyberpunk 2077, por exemplo, está num cartucho de 64 GB, com a CD Projekt Red dizendo na cara da Nintendo que era "a coisa certa a se fazer", o que deixa deliciosamente implícito que o contrário é o errado. E numa real necessidade, dividir jogos em mais de uma mídia é prática comum desde a era dos CDs.

A questão é econômica, então? O senso comum é que se uma publicadora quer maior lucro, vai usar a chave em vez de entregar o jogo num cartucho de 64 GB; assim, não teria gasto com o cartucho comum, e sim com o de alguns KB ou MB para a chave digital. Será? Continue e já vamos ver.

Chave com validade

Game-key card da Nintendo
Cedo ou tarde, será uma chave sem nada para abrir.

Mais do que ferrar a vida de quem só queria conectar o cartucho e jogar — um dos propósitos da mídia física —, a abordagem torna a vida de colecionadores e preservacionistas um tanto mais difícil no Switch 2. Embora os game-key cards possam ser emprestados, vendidos, doados, roubados como um cartucho comum por não serem atrelados a uma conta, como um jogo digital clássico, a exigência de download antes de jogar as torna belas inutilidades num futuro talvez não muito próximo, mas certo.

Vinte ou trinta anos, não importa: vai acontecer e de nada servirão estantes cheias de chaves com servidores desligados.

Se jogadores não gostaram — mas continuam comprando —, o mesmo não se pode dizer, claro, de desenvolvedores. A Ubisoft lançou Star Wars Outlaws por game-key card e segundo um arquiteto de som do motor Snowdrop, foi necessário porque o card do Switch 2 não teria velocidade para carregar dados como em outros consoles e PC usando SSDs.

Ou seja: para ter uma versão física que não é física, só vendendo a chave para o jogador baixar o jogo para o armazenamento interno e então conseguir jogar. Era melhor comprar a versão digital, a não ser que você faça questão de ter uma caixa bonita com uma chave dentro, que custará bem mais.

Fiz uma pesquisa de títulos em game-key card via Amazon e digital no site da Nintendo, preços em reais:

  • Hogwarts Legacy - Nintendo Switch 2 (434 x 299)
  • Street Fighter 6 - Years 1-2 - Fighters Edition (379 x 281)
  • Yakuza 0 Director's Cut (309 x 249,90)
  • HITMAN World of Assasination - Signature Edition (439 x 162)
  • SONIC X SHADOWS GENERATION (398,90 x 259,90)
  • Mario Kart World (499 x 499) 🤣
  • Star Wars Outlaws Gold Edition (518,49 x 299)

A média é superior a 130 reais entre as versões "digitais de fato" e digitais por game-key card. O ponto é que, segundo estimativas, o custo de produção do game-key card não é tão inferior ao que seria um card de 64 GB com jogos inteiros, pois o custo deles hoje é irrisório para desenvolvedores. O arquiteto da Ubisoft citado antes confirmou que o custo de produção do cartucho sequer foi citado como razão da escolha pela chave. A diferença só faria algum peso para estúdios pequenos, com poucos recursos, o que não se aplica aos casos de Sega, Capcom e Ubisoft.

Então, por que não entregar o jogo inteiro?

A Nintendo gosta de controle total sobre software, do início ao fim do uso da plataforma e além. Não surpreende a investida no formato. Não só eles. Doom: The Dark Ages foi lançado com 85 MB num disco de PlayStation 5. A versão Xbox seguiu o caminho: 342 MB. Indiana Jones and the Great Circle saiu com 20 GB em disco, dos acachapantes 120GB do jogo completo.

O diferente aí é ser a Nintendo, que ainda dita tendências.

doom dark ages banner arte
Doom: the Dark Ages no PS5 tem 85 MB no disco e 85 GB para ser baixado. Não é só a Nintendo, o problema é ser ela, como seria partindo de Sony ou Microsoft.

Questões importantes sobre preservação precisam ser respondidas. Em abril, quando o formato foi anunciado, o CEO da Nightdive Studios, Stephen Kick, notou que era um movimento "desanimador". "Você esperaria que uma empresa tão grande, com tamanha história, fosse levar a questão de preservação um pouco mais a sério."

Outro golpe veio da Biblioteca Nacional do Japão. O órgão arquiva jogos em formatos como cartucho e discos desde o ano 2000, mas avisou que não fará esforço na preservação dos game-key cards, pois não os considera mídia física. "Como é um cartão-chave, por si só, eles não se qualificam como conteúdo e ficam fora do escopo de coleção e preservação", disse um representante. Também houve contestação pela Capcom, que trata as vendas como digitais, e o ex-diretor criativo da Ubisoft, Alex Hutchinson, que disse odiar o formato pois faz parecer que "estamos perdendo um pouco do que fez o negócio especial".

Quando o Switch 2 e sua loja digital forem história, alguém terá as respostas de preservação, mas ao que tudo indica, não por vias legais. Com chaves que não abrem nada, a solução — difícil e criminosa, levando a outros milhões gastos em processos — provavelmente será a quebra da proteção do console e extração dos dados baixados.

Por isso e tantas outras que pode parecer extremo, mas a Nintendo me lembra aquele tio gente boa do passado. Passou da hora de quem tenta ignorar a toxicidade colocar a cabeça no lugar e seguir em frente.

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