Preconceito contra gamers: o inferno são os outros?

Além de escrever aqui e num site sobre design gráfico (que anda meio largado), uso o Facebook para assuntos aleatórios. Costumo deixar publicações abertas, acho que estimula o debate e a troca de ideias. Mas em meio à polarização política que tomou conta do Brasil, "troca de ideias" tem sido realidade distante e acabei lendo desaforos por conta de opiniões pessoais.

O assunto em questão não é relevante, mas uma das respostas me chamou atenção. Já estou acostumado com defecadores de tabuleiro, até ignoro. Mas dada por um leitor declarado aqui do MB, a frase – ad hominem clássico, atacar a pessoa em vez do argumento – foi algo como "Você vive preso ao mundo de ilusão dos videogames, por isso pensa assim".

Oras, se tal coisa vem de alguém ignorante sobre o universo dos jogos, é esperada. Ruim, mas esperada. Desde sempre, ser adulto e admitir que pratica certas atividades, entre elas jogar videogame, é pedir pra ser alvo de ideias preconcebidas e deboches.

Começando na lenda urbana de estragar a TV, passando pela falta de socialização, a figura do depressivo que fica enfiado num quarto escuro jogando games lentos e claro, a infalível "Por que não arruma namorada em vez de ficar nesses joguinhos?", sempre tem algo negativo, jocoso ou depreciativo rondando a relação adultos e videogames no imaginário popular.

hugo lost mae
Posso subir de nível primeiro? Obrigado.

Não importa se você quer uma namorada ou até se já tem e jogam juntos. Não importa quantos amigos fez jogando. Não importa se jogar é seu merecido lazer depois das aporrinhações do cotidiano. As pessoas vão pensar – e às vezes falar – e não há nada que você possa fazer a respeito. Não adianta se desgastar explicando que não estamos mais na década de 80, quando videogame era um brinquedo que ficava no quarto das crianças.

Esses estereótipos já foram parar até nos jogos. Em GTA V, Jimmy de Santa é o padrão: obeso, preguiçoso, alienado, só pensa em fumar e jogar games violentos. Acaba sendo cômico pelo exagero, mas é o retrato do inconsciente coletivo fixado ao longo de décadas. Talvez seus pais, tios ou avós nascidos nos anos 60 e antes tenham uma imagem mental não muito diferente. Paciência, vida que segue.

O problema é quando o preconceito vem de quem também joga. É algo alimentado por poucos, mas são barulhentos. Não é a primeira vez que algum debatedor saca essa para tentar me desqualificar. Talvez você tenha passado por coisa parecida online, dentro de casa ou no trabalho. Em qualquer ambiente onde souberem do seu hobby, cedo ou tarde vai acontecer.

Veja também → "Bombado burro": o estereótipo em personagens de games

Como em outros hobbies alvos de preconceito (quadrinhos, anime, colecionismo, RPGs, etc), o adulto fã de videogame esteve, até certo ponto, num grupo socialmente não muito bem aceito, às vezes nem por ele mesmo. O que começou a mudar com o fortalecimento da atividade como uma subcultura: a dos gamers.

Dizer que joga não era mais motivo de vergonha, mas pertencimento a um grupo. Não havia mais temor de soar infantil por preferir o jogo X do que o livro Y, ou por preferir jogar um lançamento do que assistir um seriado. As ideias dominantes foram questionadas e – graças às mudanças no mercado e público – videogames passaram a ser aceitos como qualquer outra mídia.

Mas esse sentimento de grupo nem sempre é dos mais sadios. Ao valorizar aprender ou aperfeiçoar um idioma, um dito gamer ataca colegas que preferem o jogo dublado. Adora a oportunidade de fazer chacota de quem joga tempo demais (na métrica dele), mas também decreta quem merece o precioso rótulo de "gamer" de acordo com o tempo registrado na Steam. Vive falando da "namorada gamer" perfeita, mas tacham moças que fazem streaming de posers e cosplayers de attwhores.

É como se valesse tudo pra validar sua posição no grupo, inclusive usar os clichês que passaram anos ouvindo.

Nerd virgem

Esse é KimmoKM, finlandês que na época do meme tinha uns 19 anos. Sua imagem foi usada e abusada como o modelo do "gordo virgem que joga videogame no porão dos pais". Ele não se importou muito ou não captou a maldade da chacota - numa entrevista, foi levado a pensar que era um ídolo dos gamers, alguém que "joga videogames e não liga para o que os outros pensam".

O preconceito mais clássico e duradouro. Mesmo você leitor ou leitora, em plena vida adulta, talvez já com filhos, deve ter ouvido como arma de depreciação. É muito usada entre os jogadores e quase nunca como brincadeira inocente.

O estereótipo do nerd é antigo; nasceu entre os anos 50 e 60 com o conceito dos óculos antiquados, a camisa bem abotoada e inteligência acima da média, atrelados à inabilidade social. O termo viria de "knurd" – bêbado ao contrário, em inglês, denotando o cara que prefere estudar ou fazer alguma atividade "chata" em vez de curtir festas, beber e afins.

Daí para o virgem foi um pulinho. Filmes como O Professor Aloprado (1963) e A Revanche dos Nerds (1984) pegaram o gancho do nerd sexualmente fracassado. Quer dizer: não que a virgindade seja um problema, especialmente num público que está começando a vida adulta, mas aos poucos o personagem foi se degenerando: anti-higiênico, feio, esquisito, solitário, chato.

A aplicação mais comum, ao que parece, é por recalque e ação de manada. Notícias sobre grandes colecionadores e recordistas sempre recebem as piadinhas infalíveis, seja homem ou mulher:

  • "Tem tudo isso de jogo, aposto que não tem mulher."
  • "Joga muito tempo, deve ser nerd solteirona."

E daí pra baixo. O lance é tão disseminado que erram até ao tentar vender algo a esse público. Em 2012, foram lançados no Reino Unido dois sites de encontros focados nos gamers. Um era voltado a quem buscava relações sérias e outro só para sexo casual – este publicou uma série de vídeos em tom cômico "ensinando" usuários virgens a se sair bem. Foram removidos do YouTube por mostrar moças em trajes mínimos falando bobagens como "No fim das contas, as mulheres têm certas necessidades... e estou precisando de alguém para encher o meu buffer".

Alienado / infantil

Mesmo com a mudança no público ao longo dos últimos quase 30 anos, ainda há quem veja o gamer como o sujeito isolado do mundo, que nunca leu um livro nem vê noticiário, perdido num universo de fantasia infantil.

O mito do jogador culturalmente limitado foi mote do artigo. A imersão, com horas em frente à TV, levou quem não gosta daquilo a criar seu conceito de que quem joga videogame passa muito tempo distraído (verdade), logo vive em fuga da realidade e logo, deve ser ignorante quanto a "assuntos de adulto". Afinal, videogame é coisa de criança, não esqueça...

O alvo original dos videogames eram crianças, de fato, mas quem não acompanha o mercado perdeu o bonde. Não viu a mudança rumo à demografia atual – o que aliás, sequer é resultado de um movimento recente, mas contínuo desde os anos 90, quando Sega e depois Sony "adultizaram" propositalmente seus públicos com sucesso.

Nos Estados Unidos, bom parâmetro por ser o maior mercado global, 64% dos jogadores de videogame estavam na faixa dos 18 aos 54 anos em 2020. As duas faixas mais densas (18-34 e 35-54 anos) ficaram à frente dos menores de 18 anos também de forma isolada. Sem falar dos 15% de usuários acima dos 55 anos, apenas 6% inferior ao público infantil.

Statistic: Age breakdown of video game players in the United States in 2020 | Statista

Fonte: Statista

Curiosamente ou não, aquele crítico mordaz passa horas ouvindo música, assistindo futebol ou novela sem questionar se o tempo de lazer foi bem gasto. É como se o hobby dos outros tivesse o dever de ser construtivo (seja lá o que isso significar na cabeça dele).

Se o parâmetro for o nível de escolaridade, nem assim o papo se mantém. Segundo pesquisa de 2016 que traçou um perfil do gamer brasileiro, a maioria (54%) tem formação superior, seguida por outra grande parcela com ensino médio (40%). Menos estudo que isso representa apenas 6% do grupo, incluindo crianças.

Perdedor

O perdedor é um estereótipo amplo, que vai desde o nerd fracassado sexual até o que vive de subempregos ou mora com os pais. Todo tipo de subdesenvolvimento social pode recair no rótulo do "loser", dado com frequência aos gamers.

A indústria de videogames passou a do cinema em cifras há tempos. O dito loser, que segundo a lenda toma Toddy quentinho preparado pela mamãe e recebe mesada, é quem sustenta um negócio global de 138 bilhões de dólares.

"Mas isso não faz o mamador de Toddy menos perdedor", diria o mentalidade de bully insatisfeito. Talvez, mas um estudo de 2013 sugere que de loser, o gamer não tem nada. Quem joga videogame geralmente é a antítese do perdedor que dizem, tendendo a ter maior poder aquisitivo, ser mais sociável, educado e bem-sucedido nos estudos e trabalhos do que aqueles que normalmente o atacam.

"Há essa concepção de que a comunidade [gamer] é feita por solitários e rejeitados", explicou Matt DiPietro, então vice-presidente de marketing do Twitch, que encomendou o estudo. "E isso não poderia estar mais errado". Eles seriam quase 50% mais ligados a amigos e um pouco (3%) mais frequentemente empregados do que pessoas que não jogam. Ainda segundo o estudo, gamers são mais aptos a lidar com tecnologias modernas, como dispositivos e serviços online.

Tal como o nerd, historicamente rotulado como perdedor social, o gamer perdedor é um mito alimentado pela cultura tradicional. O cinema é campeão em eternizá-los como estranhos, ineptos, com o talento e hábito de jogar sendo o único escape. Temos que parar de acreditar na piada e de reproduzi-la.

Revisado em 02/2021
Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

3 COMENTÁRIOS

  1. Já passei e sofri com essa coisa: Vídeo game estraga televisão!!!! No final das contas foi uma época em que acabei passando mais tempos no fliperama e locadoras do que em casa!!!! Não tinha outra tv, apenas a da sala...mas tenho boas lembranças das locadoras e fliperamas, passava mais tempo vendo os caras jogando do que eu mesmo jogando, entende? Nem sempre tinha dinheiro para comprar fichas de fliper ou alugar horas em locadoras, essa fase de locadoras e fliperamas me fez ganhar muitos amigos e ali sempre havia uma certa troca de idéias sobre lançamentos, jogos e dicas...não existia a internet ainda, sinto falta disso nos momentos de hoje...onde todo mundo fica em casa vendo coisas do youtube, sites e afins!!!! De qualquer maneira, jogar vídeo game ajuda a esquecer um pouco dessa loucura de guerra, pandemia e violência que acontece no dia a dia dos brasileiros!!!! valeu!!!!

    • Pior que o 'estragar televisão' tinha um fundo de verdade, caso ficasse a imagem estática (como a pausada) por muitas horas na tela. Mas o resto era lenda mesmo e a gente acabava pagando o pato 😀

  2. "tendem a ter maior poder aquisitivo" na verdade é o inverso. Quem tem maior poder aquisitivo pode se dar ao luxo de jogar videogames. Existem infinitas diferenças entre brincadeiras e ofensas de fato. Eu cresci jogando videogames literalmente desde os 2 anos de idade e tecnicamente nunca mais parei, o que não me impede de modo algum de tirar um sarro sobre meus gostos ou de fazer piadas autodepreciativas.
    A falácia ad hominem é criticável e ponto, independe do que startou a mesma.
    Todos nós que jogamos conhecemos ao menos um exemplo do péssimo esteriótipo de loser que deixa de tomar banho pra jogar videogame, na verdade, eu mesmo conheci mais de um e sequer está preso aos homens tal esteriótipo. O fato é que literalmente PRECONCEITO por jogar videogame é algo que já passou faz muito tempo. Hoje a definição de nerd feliz ou infelizmente não tem mais absolutamente nada a ver com a de outrora, basta ver que pessoas que não levam nenhum jeito para estudos ou para a tecnologia se chamam de nerds porque assistem cultura pop. O rótulo de nerd já não era mais qualquer problema desde o meu ensino médio, de 2010 a 2012.

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