Uma rara entrevista com Gunpei Yokoi, em 1997

Gunpei Yokoi foi um dos grandes nomes na história da Nintendo. Criando brinquedos mecânicos e eletrônicos como Ultra Hand, Ten Billion Barrel e a série de portáteis Game & Watch, o designer entrou de vez para o time das lendas com sua obra mais famosa, o Game Boy.

Falecido em outubro de 1997 de modo tão triste quando esdrúxulo — atropelado ao sair do carro para examinar os estragos num acidente de pequenas proporções —, ele já não estava mais na companhia que o revelou. Depois do fracasso do Virtual Boy, saiu para fundar sua própria, a Koto Laboratory, e ainda teve tempo de projetar o WonderSwan, portátil colorido da Bandai — lançamento póstumo.

Sua mentalidade foi sempre voltada para produtos simples e de fácil uso, em contraste com um mercado que seguia rumos distintos. Nessa entrevista de 1997, ele e Yukihito Morikawa, (da menos conhecida MuuMuu, creditado em Jumping Flash! e Jumping Flash! 2), conversam sobre temas como tendências da geração como jogos com muita ajuda, game design e planos.

Ele parecia inclinado a "desconectar-se" dos aparelhos de TV e tentar novas abordagens. Infelizmente pra todos nós, não teve tempo.

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Gunpei Yokoi

Original em japonês traduzida pelo Shmuplations. Confira esse belo documento da indústria de games.

Games e gameplay

Morikawa: Yokoi, como se sente a respeito dos games recentes?

Yokoi: Há uma variedade de consoles agora, mas pra mim, a maioria não é de "games" de verdade. A palavra "game" significa algo competitivo, onde você pode ganhar ou perder. Quando vejo games recentes, vejo que a qualidade veio caindo; vejo mais e mais games que querem oferecer a experiência de uma história curta ou um filme.

Isto é mais óbvio com role-playing games, onde a porção "game" não é o foco principal, e tenho a sensação de que os desenvolvedores só querem mesmo que você experimente a história que eles estão escrevendo. Então, quando você pergunta o que acho dos games hoje, bem... É uma questão muito difícil pra mim. Acabo tendo que dizer que games hoje não são de fato games pra mim.

A essência dos games é competição, penso que seja um resquício de nosso passado como animais, e a competição pela sobrevivência do mais apto. Acho que você vê isso refletido em toda a história da humanidade, como as pessoas com saúde e poder querem ter haréns, obter mulheres... Esse tipo de coisa está na raiz da humanidade.

M: Verdade, games são realmente diversificados agora, e o aspecto do "gameplay puro" dos jogos foi empurrado para os lados. Você foi muito ativo na era em que games eram tudo sobre gameplay; o que acha da cena hoje?

Y: Quando me pergunto por que as coisas são assim hoje, imagino se não seria porque acabaram as ideias para games. Games recentes usam os mesmos elementos básicos de jogos antigos, mas focam em personagens, melhorias gráficas e velocidade de processamento... Basicamente, eles criam games através de um processo de ornamentação. É onde estamos com os consoles hoje, mas acredito que há ainda variações de gameplay competitivo para serem descobertas.

Kunekunetchyo
Kunekunetchyo. Imagem: BeforeMario

Disse o mesmo quando saí da Nintendo e comecei minha própria companhia, a Koto Laboratory; mas quando chegou a hora e a equipe me perguntou "bem, o que devemos fazer, então?", de fato achei extremamente difícil pensar em coisas novas. Mas quando lançamos o chaveiro Kunekunetchyo¹, que tem um estilo realmente de jogos antigos, e foi um sucesso comercial, senti que minhas ideias estavam meio que recuperadas.

¹ série com dois games portáteis em formato de chaveiro, lançados pouco antes da morte de Yokoi pela Koto. Kunekunetchyo era um tipo de clone de "snake", o "jogo da cobrinha".

M: Acho que devo ser um dos culpados pelo fenômenos que você descreveu, de games não sendo mais games...

Y: Mas as coisas que você fez nunca pretenderam ser esse tipo de game do qual estou falando. Você os criou pela perspectiva do que pensa que os fãs de consoles querem hoje, e definitivamente não acho nada errado nisso.

Realismo e limites gráficos

M: Como você disse, games que estão tomando elementos básicos de gameplay e os vestindo com algum enredo são os que mais vendem hoje. E nós definitivamente não queremos games muito grandes na MuuMuu, então em certo sentido, estamos fora da tendência também. Estamos fazendo games que são o completo oposto dos tradicionais que você descreveu, mas concordo totalmente com o ponto do que está dizendo, que o mainstream dos games hoje é, de certa forma, "não-games".

Y: Sim, acho que estamos nos entendendo. Não importa o quanto a computação gráfica se aproxime da realidade, ela nunca será capaz de superar os visuais reais. Sempre haverá um limite inalcançável.

Ganbare Morikawakun 2Gou
Ganbare Morikawakun 2Gou

M: Em Ganbare Morikawa-kun 2 Gou ["Pet in TV" no Ocidente], não tentamos exagerar nos visuais — os deixamos meio que baratos e estilizados. Fotorrealismo não é sempre o melhor caminho a seguir. Consoles atuais têm muito mais poder, e você pode exibir muito mais coisas impossíveis no passado. Você tem muito mais cores para trabalhar, pode usar vídeo, e amostras de música estão disponíveis. Contudo, não acho que haja qualquer futuro na busca pelo fotorrealismo. Quero dizer, no século XVII os artistas já estavam abandonando o fotorrealismo como estilo, sabia? Acho que buscar isso só vai aumentar a quantidade de trabalho nos games desenvolvidos, mas não vejo um grande futuro.

Y: Estes mundos de jogo realmente precisam ser tão fotorrealistas, me pergunto? Na verdade, considero mais do mesmo se os gráficos são tão realistas. Há uma linha similar de pensamento no mundo do entretenimento: usando lentes de suavização de foco quando mulheres são filmadas, por exemplo. Quando isso é feito, cada pessoa projeta sua concepção de "bela" na mulher filmada, e todos a verão como sua Vênus Pessoal.

Se as coisas são muito realistas, não há espaço para sua imaginação, e a realidade daqueles rostos que você pensava serem bonitos serão revelados. Ou para usar outra expressão comum, é mais erótico quando a mulher deixa alguma pele coberta. Mesmo se um videogame não tem poder para gráficos muito complexos, acredito que sua imaginação tem o poder para transformar aquele sprite talvez irreconhecível chamado "foguete" em um incrível e poderoso foguete "de verdade".

M: Não devemos roubar dos jogadores a habilidade de adicionar sua própria imaginação ao que veem. Como designers, mostramos a eles linhas pontilhadas onde haveria um recorte, mas devemos deixar este recorte para o jogador. Se tiramos isso dele, não há espaço para imaginação. Infelizmente, a tendência hoje é exatamente essa. Há muito fanservice e entrega para o jogador, fazendo tudo para eles. RPGs são especialmente ruins: são como aqueles resorts "tudo incluído", onde cada detalhe é cuidadosamente pensado e cuidado para você. Eles o colocam num caminho linear e não há espaço para sua imaginação fluir.

Y: A televisão foi do preto e branco para as cores, e agora que estamos vendo TV em alta definição, é quase que detalhado demais. Você tem o problema que mencionei, de ver as rugas do rosto bonito. Como a televisão é a principal mídia de informação, acho que é melhor que ela seja clara, mas games não requerem isso. Penso que o mundo de um game parece mais vasto quando você pode usar a imaginação.

Game Boy

Gunpei Yokoi Game BoyM: Falando nisso, sinto que entendo um pouco melhor porque você fez o Game Boy monocromático. E não foi um problema tecnológico que o fez ter a tela monocromática, certo?

Y: A tecnologia estava lá para usar cores. Mas eu queria em preto de branco mesmo assim. Se você desenha dois círculos num quadro-negro e diz "isto é um boneco de neve", todos que olharem sentirão o branco da neve e intuitivamente reconhecerão o boneco. Isto porque vivemos num mundo de informação, e quando você vê aquele desenho de um boneco de neve, a mente sabe que a cor tem que ser branca. Fiquei convencido disso ao tentar jogar alguns games de Famicom numa TV em preto e branco. Quando você começa a jogar, as cores não são importantes. Você é atraído mentalmente para o mundo do jogo.

M: É uma decisão muito ousada. Isso me lembra dos meus primeiros Macintoshes com monitor monocromático.

Y: Na verdade, foi difícil fazer a Nintendo entender. Parcialmente, usei meu status na companhia para convencê-los [rindo]. Após lançarmos o Game Boy, um membro do meu time veio até mim com um sorriso sombrio no rosto: "Há um novo portátil no mercado similar ao nosso...". A primeira coisa que perguntei foi "Ele tem tela colorida, ou monocromática?". Ele disse que era colorido, e eu o tranquilizei "Então estamos bem" [rindo].

M: Telas coloridas também drenavam a bateria mais rapidamente.

Y: Quando começamos a desenhar o hardware do Game Boy, levamos em conta que tipo de software seria feito pra ele, e pensei que aquela abordagem resultou num produto muito eficiente. Design de hardware não é sobre fazer a coisa mais poderosa que você puder.

A maioria do design de hardware hoje é deixado para outras empresas, mas quando você faz o hardware sem levar em conta as necessidades dos eventuais desenvolvedores de software, acaba o inchando com recursos sem sentido. Desde o início, deve-se considerar o design tanto pela perspectiva de hardware quanto de software.

Game design

M: Aliás, qual o seu processo para criar games?

Y: Primeiro pego o personagem (ou personagens) que serão controlados e os substituo por marcadores como um ponto, então penso no tipo de movimento que será divertido. Basicamente, tento me colocar no lugar do jogador e descobrir o que ele pode apreciar. Além disso, quando faço personagens, tento desenhá-los de modo que ensinem o jogador como jogar. Em outras palavras, se o inimigo for muito bonitinho, não será visto como um inimigo do jogador. Mas se você lhe der uma aparência "de inimigo", o jogador não precisará ler o manual ou qualquer coisa para saber "oh, melhor eu evitar esse cara".

Recentemente, houve alguns games de luta poligonais fantásticos, mas quando você projeta qualquer coisa numa tela plana 2D de televisão, no fim restam só caixas de colisão. O sentido de três dimensões é apenas visual. Quando começa a jogar o game, aquele sentido de profundidade não tem relação com o gameplay: a espada que seu personagem move na verdade vai acertar um alvo que é só uma caixa de colisão bidimensional, horizontal.

M: Meu processo é o contrário: começo com visuais, então lido com o movimento. No início as TVs eram capazes só de mostrar transmissões, então vieram os VCRs permitindo vídeos, e aos poucos a TV absorveu mais e mais novas mídias. Consoles também, sinto que são uma forma de "periférico da TV" pra mim. Então sim, quando você pensa dessa forma, não há nada de especialmente novo sobre os games: são só mais um tipo de imagem que a televisão pode exibir.

Projetos futuros

Y: Quando eu era garoto, havia tantas coisas que queria fazer mas não eram possíveis porque eram muito caras ou a tecnologia não existia. Agora que 10 ou 20 anos se passaram, aquelas ideias de que tinha desistido podem ser realizadas. A máquina "My Puzzle" foi uma dessas ideias de 20 anos atrás. Se eu tentasse fazê-la antes, teria custado uns 30 milhões de yen [cerca de 300 mil dólares] [rindo]. Não havia monitores de vídeo na época. Então, acho que temos muitas oportunidades hoje para realizar nossos sonhos da juventude.

M: Tenho 38 anos agora, e há uma parte de mim muito cansada, que quer acalmar as coisas. Acho que quero rostos em meus games desenhados não tão realistas, apenas com linhas em preto e branco e simples. Desse jeito posso deixar as coisas para a imaginação de cada jogador. Se eu fizer um rosto bonito, os jogador verão o que tentei apresentar, e outras possibilidades estarão perdidas.

Acho que games hoje estão a caminho de um tipo de inflação similar a que filmes de Hollywood passaram, deixando para trás histórias interessantes para focar só em CG e visual. Filmes como Dia da Independência e O Mundo Perdido são totalmente desinteressantes além de seus visuais, e acho que as pessoas ficarão cansadas disso. Acho o mesmo para os games: eles vão alcançar certo ponto de visuais impressionantes, mas e aí? Para o game Pet in TV da MuuMuu, todos me perguntaram porque usei só 16 cores para tudo, apesar das incríveis capacidades que o PlayStation tinha. Mas eu sentia que o game não seria melhor se eu usasse todas as cores. Da mesma forma, o PlayStation pode lidar com 10 vezes mais polígonos, mas eu queria um mundo brilhante de brinquedo, não realista. Uma de nossas supostas qualidades como japoneses é usar a criatividade em meios escassos; quando isso se aplica aos games, parece que todos esquecem!

Y: Sim, é como querer gyoza [um pastelzinho barato] recheado de caviar ou matsutake [cogumelo caríssimo] [rindo]. Em qualquer ocasião, estive pensando em sair da televisão para meu futuro trabalho. Imagine se eu mostrar a você um brinquedo aqui na mesa, você veria e pensaria "oh, isso parece bem divertido de jogar". Mas se eu mostrar o mesmo brinquedo e o colocar numa tela de TV, subitamente as pessoas vão pensar "nossa, isso parece estúpido". E é isso que quis dizer sobre a realidade ter apelo mais forte que os visuais da televisão podem um dia sequer sonhar em ter parecido. Ninguém se cansa dos movimentos básicos de um brinquedo de verdade ou da figura humana. Agora eu gostaria de criar algo real assim, mesmo que seja algo simples e barato. Se as pessoas considerarem interessante, vão jogar naquilo por muito tempo.

M: Pessoalmente, colecionar pedras é meu novo hobby. Gosto de tocá-las e segurá-las nas mãos. Até bem pouco tempo, passava a maior parte do meu tempo livre jogando videogames, mas eles podem ativar só uma certa parte do seu cérebro, suas experiências sensoriais se estendem apenas a som e visão. Faz muito tempo desde que permiti a meus outros sentidos alguma diversão! Então recentemente voltei a a atividades "não-game": pescar, jogar a linha, sentir o corpo do peixe quando ele é pego. Talvez eu precisasse disso para restaurar o equilíbrio em minha vida.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

4 COMENTÁRIOS

  1. Cara, eu arrepiei na resposta sobre o Game Gear, sensacional. E, claro, já na primeira resposta o Yokoi falou exatamente o que penso. Ótima entrevista.
    Seu post me lembrou de uma dúvida que tenho, na verdade é mais um desejo do que dúvida. Eu fico pensando na quantidade de material e coisas legais sobre os games, impressas mesmo, que estão em japonês, todas perdidas, e ninguém, nenhum japonês tentou traduzir para o inglês. Só eventualmente aparece algo aqui e ali.

    • O Yokoi foi um visionário no tempo dele. Pro mercado atual as ideias podem não funcionar, mas na época foi perfeito.

      Esse site Shmuplations é um dos poucos que conheço dedicados a traduzir material do japonês, deve mesmo ter uma infinidade de coisas. Dá vontade de aprender japonês só pra traduzir...

      • Valeu pela dica. A questão da barreira do japonês nem é o principal problema. O problema é ter acesso ao material físico, entende... mesmo que eu fosse fluente em japonês a quantidade de revistas e artigos sobre o tema estão perdidos entre jornais e revistas que nunca foram digitalizados, coisas que estão nos armários e caixas de papelão de japoneses aleatórios.

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