O ano era 2010. Em algum escritório do Brasil, um engravatado abre sorrateiramente sua conta no Orkut no poderosíssimo Core 2 Duo da empresa. Ele não vai trabalhar: vai checar o status de seus pés de berinjela, se galinhas botaram e se amigos fazendeiros pilantras andaram saqueando sua produção. E depressa, antes que o chefe veja.
Se rolou uma identificação, é porque você também jogava Colheita Feliz, o simulador de fazenda free-to-play que virou febre naquele período. Acessado através do Orkut, não tem usuário da finada rede social que se não jogava, ao menos não conheça de nome.
Colheita Feliz foi criado em 2008 pela desenvolvedora chinesa Elex. A publicação foi da Mentez, que tinha escritórios em Miami e no Brasil. Ao contrário do que muitos dizem, não era um clone de FarmVille – o app famoso do Facebook seria lançado pela Zynga só no ano seguinte.
Como o Facebook já dominava outros territórios, FarmVille acabou mais conhecido mundialmente. Mas não foi só no Brasil que produtores de legumes digitais e carne de burro se espalharam.
Fenômeno na China
A fonte de inspiração de Colheita Feliz eram jogos mais antigos, como a série Harvest Moon. Mas não havia nada de grandioso ou elaborado. Era um joguinho simples, em Flash, altamente focado na repetição e recompensa para viciar.
Se fuçar o perfil de amigos já era sedutor para um público ainda descobrindo redes sociais, imagine com o acréscimo da fazendinha que dava moedas douradas e permitia vandalizar a propriedade dos outros...
A descrição oficial era:
Construa sua própria fazenda, cultive plantações, crie animais e decore tudo com seu estilo. Além de cuidar de suas próprias terras, você também pode roubar frutas de seus amigos ou ajudá-los a cultivar plantações sadias. Compre novas áreas de plantio e expanda seu território!
Um bom resumo. Além das recompensas grátis, claro que o jogador podia usar dinheiro real para acelerar o desenvolvimento da sua fazenda.
Para tal, teria que comprar as desejadas moedas verdes, que saíam em pacotes tipo cem unidades por R$ 10.
Nesse ínterim, a Mentez encheu a saca de dinheiro. Juntando Colheita Feliz e o lucro de outros jogos sociais no mesmo formato (pague para ganhar), lançaram um serviço financeiro dedicado, o Paymentez, em 2011. A fintech ainda existe, enquanto a publicadora deixou de atuar em 2013.
Inimigo dos patrões
O sucesso em terras brasileiras foi tanto que marcas anunciaram dentro do jogo. Em vez de plantar milho e flor, de repente você tinha um pé de chocolate BIS. Por mais bizarro que pareça, funcionou. O pessoal plantou sementes de cacau azul para cultivar a recompensa. Depois foi lançado um novo cacau especial, para promover o BIS Limão.
Ansiosos pelas recompensas – e para evitar que a estimada fazenda fosse vandalizada ou que seus bichos deixassem de produzir –, jogadores tinham que fazer login com frequência.
Quer acelerar a colheita? Compre adubo especial? Mais segurança? Compre um cachorro para proteger suas terras. Tudo com dinheiro real...
Muitos ficaram viciados. Outros, viciados e revoltados com o resultado negativo das colheitas, bugs e falhas de comunicação com a desenvolvedora.
O efeito foi similar em todos os mercados de Colheita Feliz. Na China, onde era jogado pela rede social Xiaonei (mais tarde Renren), o sucesso começou no final de 2008, rapidamente alcançando a Rússia. Até outubro seguinte, ao menos 23 milhões de pessoas jogavam Colheita Feliz todos os dias. Já estava também no Brasil, Taiwan, Alemanha, Polônia, Holanda, Índia, Japão e Vietnã.
A armadilha para viciar era a recompensa através do controle do tempo. Várias plantas e animais produziam em intervalos conhecidos. As mais rápidas, a cada uma ou duras horas; as mais rentáveis podiam levar dezenas de horas. Sob o risco de bobear e ser saqueado pelos amigos (e pela chance de roubá-los, também), o viciad... digo jogador acabava entrando no app várias vezes por dia.
A ânsia por cuidar da fazenda fez o jogo invadir a vida social além do previsto. Bastante gente não resistia e jogava durante o trabalho. Chefes iam à loucura e empresas passaram a bloquear o acesso à rede social, para não prejudicar a produtividade.
No fim de 2009, estimava-se que redes sociais roubavam mais de 12% da produtividade dos funcionários. Muito estava na conta dos joguinhos viciantes como Colheita Feliz.
Roubar para vencer
Uma característica da jogabilidade, roubar a horta dos amigos, também deu pano pra manga. Na China, havia preocupação com o impacto cultural da ideia massificada de "roubar para se dar bem". A possibilidade foi um dos grandes atrativos locais da Colheita Feliz, onde chegou a ser apelidado de Vegesteal (algo como Vegerroubar).
"O governo local tentou interferir para fazer os produtores do jogo mudarem o tom moral 'inapropriado'", explicou o estudo Cyber Asia and the New Media, de 2013. "Mas como a censura da internet já era assunto delicado na China, o governo preferiu não irritar mais os netcidadãos com um tema que não ameaçava diretamente as autoridades".
No Brasil, também houve críticas casuais ao recurso. "Nossos filhos estão sendo "treinados" para roubar e destruir o trabalho dos outros", acusava publicação na Brasil Wiki em 2010, que também questionava a mensagem de Colheita Feliz. "Que roubar é bacana, permitido e divertido?"
Desapropriados
Mesmo com todas as reclamações cada vez que o servidor caía ou quando moedinhas desapareciam de uma noite para outra, quase ninguém queria – ou conseguia – se livrar do vício. Com o fim do Orkut, restou uma fuga: correr para o Facebook, que tinha o clone Happy Harvest, além do próprio FarmVille.
Para tristeza dos fazendeiros virtuais, o apocalipse inevitável veio em 2016, quando o Facebook deixou de dar suporte ao Flash, indispensável para rodar o jogo. Fizeram até abaixo-assinado online, mas não adiantou. Foram para o limbo eterno as suadas hortas, burros, árvores de chocolate e berinjelas criadas ao custo de muita moeda virtual e dinheiro real.
E tempo, muito tempo.
jogos nesse estilo existia de monte no Facebook...confesso que sinto falta disso!!!! valeu!!!!