A história do NES (Famicom)

Seja conhecido como Famicom, NES, Nintendinho ou pelos nomes de inúmeros clones que surgiram – e surgem até hoje –, o 8-bit da Nintendo será eternamente citado com um dos maiores videogames da história. Sua criação e a política da Big N ao trabalhar com parcerias marcaram época. Franquias clássicas tiveram berço no console, como Mario, Zelda, Final Fantasy e Metroid, entre tantas.

Apesar do cenário catastrófico pós-crash da indústria em 1983, a Nintendo acreditava no segmento doméstico. O designer Masayuki Uemura começou a projetar o que seria lançado naquele mesmo ano como Family Computer: um videogame mais barato e melhor que os competidores, achando brecha entre computadores pessoais para conquistar um desconfiado consumidor.

Videogames eram vistos como algo superado, sem espaço. Um terreno estéril que ninguém queria explorar. O brinquedo da Nintendo estava se metendo numa roubada, apostava muita gente.

Missão simples. Nada que um encanador pançudo não pudesse fazer.

Após a quebra do mercado de games, poucos fabricantes teimaram em produzir. A maioria partiu para computadores pessoais, a aposta do futuro. A ideia de ter um aparelho "mais do que diversão" havia seduzido os consumidores (especialmente pais) e insistir com outro videogame era arriscado. A flexibilidade dos computadores era a bola da vez.

Veja também a Ficha técnica

Planejando um aparelho 16-bit, a Nintendo foi obrigada a rever o projeto devido ao alto custo de tal hardware na época. Segundo Hiroshi Yamauchi, então presidente da Nintendo, a ideia era "dar aos desenvolvedores condição de realizar tudo que tivessem em mente".

Nascimento de um ícone

O Famicom (de Family Computer) teve preço inicial de ¥14,800 (algo como US$ 120). Seu visual remetia a um brinquedo, pequeno, com uma combinação de cores claras e vermelho, bem chamativo. Cartuchos coloridos como um arco-íris tinham rótulos simples, mas depois foram ficando caprichados, com desenhos elaborados e atraentes. A Nintendo nem disfarçava: queria seduzir as crianças.

O controle era completamente diferente do padrão de então. Nada de joystick e manches: só um direcional em cruz numa barra retangular, com dois botões de ação, mais um select e um de pausa.

Era uma evolução de sua própria criação com a linha de portáteis Game & Watch. No controle II, select e pausa dão lugar a um microfone e controle de volume.

Family Computer
Family Computer, o popular Famicom: assim os videogames renasceram das cinzas

A série inicial apresentou um problema técnico grave e foi preciso um grande recall das unidades vendidas. Yamauchi não teve dúvidas em fazê-lo, mesmo custando alguns milhões de dólares. O importante era preservar a reputação da empresa.

Relançado em seguida com nova placa-mãe, o Famicom rapidamente ganhou espaço no mercado japonês. No final de 1984 já era o console mais vendido, com cerca de 2,5 milhões de unidades.

Nada boba, a Nintendo crescia os olhos sobre outro mercado. Por não lançar seu pequeno Godzilla vermelho e branco sobre a América?

Nintendo invade a América

Apesar da catástrofe de 1983, Atari ainda era um nome forte e foi o primeiro procurado pela Nintendo. Arriscar-se sozinho parecia arriscado e assim ficou acertado lançar o Famicom em parceria com a Atari nos Estados Unidos.

Guerra por Donkey Kong

Foi aí que uma "traição" mudou a história.

O Adam Computer, sistema da Coleco, velho rival da Atari, estava em demonstração na CES 1983 com a conversão do arcade Donkey Kong. Mas a Nintendo tinha acertado que seus jogos seriam lançados com exclusividade pela Atari.

Yamauchi, Howard Lincoln e Minoru Arakawa foram ao evento esperando fechar os últimos detalhes da parceria. Em vez disso, receberam a ira de Ray Kassar*, CEO da Atari.

* The Ultimate History of Video Games, de Steven L. Kent. Crown/Archetype, 2010

Como admitiu Howard Phillips, consultor de jogos da Nintendo da América (mais conhecido como Game Master):

Temos que entender que Donkey Kong era a principal razão de alguém querer trabalhar com a Nintendo. Mario Bros. e nossos outros jogos eram títulos secundários, Super Mario Brothers ainda não havia sido lançado e o único jogo acima de Donkey Kong era Pac-Man. Se a Coleco tivesse Donkey Kong, a Atari não tinha motivo para querer trabalhar conosco.

Lincoln lembrou que a Coleco "tinha os direitos apenas para consoles" sobre Donkey Kong. E que "depois disso, tínhamos [Kassar] berrando e gritando com a gente e oh... Eles diziam que não podiam ir adiante com a parceria enquanto não fosse resolvida a bagunça com Donkey Kong".

hiroshi yamauchi
Hiroshi Yamauchi

A Atari entendeu que a Nintendo estava negociando com empresas por fora e mostrando falta de confiança na parceria.

Para acalmar os ânimos, a Nintendo marcou uma reunião de emergência naquela mesma noite com o presidente da Coleco, Arnold Greenberg. Estavam lá Arakawa e a esposa (e filha de Yamauchi) Yoko, Ron Judy (um dos fundadores da Nintendo da América), Lincoln e Greenberg com vários representantes da Coleco, além de um tradutor.

Yamauchi exigiu que eles interrompessem a exibição e venda de Donkey Kong para o Adam Computer. A reunião foi um espetáculo de Yamauchi, descrito por Lincoln como "assustador":

Yamauchi entrou abruptamente e sem se dirigir a ninguém, parou no fim da mesa [...] Começou com um discurso ofegante, num agudo monótono de Marlon Brando e aos poucos foi ficando alto e abusivo. Com um grito lancinante, moveu o braço num arco em frente ao corpo, o dedo indicador em riste na direção de Greenberg. A diatribe de Yamauchi, toda em japonês, deixou todos na sala atordoados, talvez com exceção dos Arakawa.

A Coleco não entendia até então que estavam prejudicando um negócio milionário da Nintendo com a Atari, mas ficou claro que haviam despertado a fúria de Yamauchi. Greenberg tentou questionar alegando que, para eles, o Adam tinha um videogame em si, logo a licença faria sentido. E até culpar Lincoln, que ficou furioso e teve que ser contido por Arakawa.

Mas Yamauchi, implacável, avisou que não tinham mais nada a conversar. A Coleco deveria recuar imediatamente e anunciar o erro, ou seriam processados. Mais tarde, enquanto jantavam no restaurante do hotel, bem mais relaxado, o presidente disse a um ainda perplexo Lincoln "Às vezes é assim que temos que lidar com as pessoas, Sr. Lincoln. O que achou daquela atuação?"

Atari sai de cena

Para piorar, o projeto começou a atrasar porque a Atari tinha o caixa quase vazio depois de tantas empreitadas ruins no início da década. Um mês depois da CES, Kassar foi demitido. A Warner, holder da Atari, fez uma reunião com Nintendo e Coleco para tentar resolver todo o imbróglio.

Houve um acordo provisório em relação a Donkey Kong, de modo que a parceria podia continuar, mas a Nintendo soube através de um ex-advogado da Warner que a Atari nunca teve o dinheiro para concluir a operação. Tudo seria um blefe para tirar um concorrente do mercado e de quebra, aprender algo sobre a tecnologia deles com novos videogames.

O AVS da Nintendo
O AVS da Nintendo - fracassou antes de vir ao mundo, para sorte do NES

Restava à Nintendo se virar e fazer o lançamento por conta própria – e a Atari mal tinha ideia do que estava perdendo.

"Dá para acreditar que quase vendemos a coisa toda?", disse Arakawa anos mais tarde, falando do NES. "Se tivéssemos feito, ninguém fora do Japão saberia quem é Nintendo".

Buscando se afastar do estigma fracassado de videogame, foi projetada uma plataforma a partir do Famicom com o nome AVS, ou Advanced Video System. As cores remetiam ao que seria o futuro visual do NES, em tons de cinza. Mas tinha teclado, gravador de fita cassete, interpretador BASIC, teclado musical... Tudo que lembrasse as funções de um computador. O aparelho foi visto na CES* de 1984.

* Consumer Electronics Show, feira fechada ao público e então semestral de demonstração de novidades eletrônicas. A partir de 1995 passou a ter uma única edição, geralmente em janeiro.

Como lembrou Lance Barr, designer responsável pelo novo design:

O design foi concebido como um sistema sem fio, modular, feito para se parecer mais com algo como um sistema estéreo do que um brinquedo eletrônico. Após a primeira aparição pública na CES, fui orientado a redesenhar o case baseado em novos requerimentos da engenharia. Para reduzir custos, o wireless e alguns componentes modulares como teclado e gravador de voz, foram eliminados.

Mas a maior mudança foi a orientação e tamanho necessário para acomodar um novo slot para cartuchos. O encaixe foi um conector "força zero", permitindo que o jogo fosse inserido com pouca força, e então para baixo até a posição de contato. O case teve que ser desenhado sobre o movimento do jogo, e precisava que a forma e tamanho do NES fosse maior que os conceitos anteriores. Muitas características permaneceram como o esquema em dois tons, cortes nas laterais esquerda e direita e o visual "caixa", mas as proporções mudaram substancialmente para acomodar o novo conector.

O projeto inicial fracassou, sem muito interesse de distribuidores. Só em junho de 1985, na mesma CES, o console remodelado foi apresentado sem os acessórios para parecer um computador e batizado como NES – de Nintendo Entertainment System – diante de um mercado ainda descrente.

Publicações da época, como a Electronic Games, duvidavam da empreitada, afirmando que "o mercado de videogame na América virtualmente desapareceu. Este pode ser um erro de cálculo por parte da Nintendo".

A pesada ação de divulgação incluiu telemarketing e demonstrações em shoppings. A oferta inicial foi limitada a Nova Iorque e depois expandida ao país todo, a partir de fevereiro de 1986.

O NES chegou às lojas com uma primeira leva de 18 títulos, entre eles Duck Hunt, Donkey Kong Jr., Excitebike e Super Mario Bros. Eram dois pacotes: um a US$ 249, com o R.O.B. (um tipo de controle em forma de robô), dois gamepads, uma pistola e os jogos Duck Hunt, Gyromite e Super Mario Bros. O outro, a US$ 199, tinha dois controles e Super Mario Bros.

A mão de ferro da Nintendo

No Japão, o Famicom continuava vendendo (assim como os jogos) mais que pão quente. Agora na América, esperavam ser questão de tempo. Gradualmente outros videogames foram encolhendo diante do Nintendo; Master System e Atari 7800 vendiam até dez vezes menos. E pioraria pra eles.

As diferenças entre aparelhos oriental e ocidental eram poucas. O Famicom usava cartuchos de 60 pinos, contra 72 do NES. Por isso eram menores, mas bastava usar um adaptador. Sem contar o visual: o americano, mais sóbrio, foi pensado como um equipamento da sala de estar, que ficaria ali perto do vídeo cassete. Acabou maior, bem diferente do estilo "brinquedo" oriental.

Muito do sucesso é creditado ao estilo de negociar da Nintendo, com fornecedores, distribuidores e desenvolvedoras. Era algo como "façam o que mando e todos vamos lucrar". Quem não aceitava, dançava.

Contratos de exclusividade

Ao contrário da Atari, que brigou ferozmente contra quem produziam games para seu 2600 (chegou a tomar ações legais contra a Activision), a Nintendo encorajou todos a criarem para o Famicom. Mas entre outras exigências estava sua autorização e controle de qualidade prévios. Todos os cartuchos seriam fabricados apenas por eles, e uma polêmica: exclusividade. Nada de parcerias simultâneas com concorrentes.

Como a essa altura o NES já era líder, gostando ou não, restava às softhouses aceitar. Não poderiam dar-se ao luxo de não ter seus produtos no megassucesso, então engoliam aqueles termos, ficando com uma parte menor do bolo (que ainda assim era bastante coisa). Com essa manobra, outras plataformas superiores tecnicamente, como o Master System, ficaram às moscas.

Para garantir que fossem distribuídos só produtos que passassem por seu "ok", a Nintendo criou o 10NES, sistema de detecção baseado em chips. Se não houvesse o chip no cartucho, nada de jogo funcionar. Se um console clonado não tivesse o 10NES, idem.

Como o NES era direcionado principalmente às crianças, manteve-se um rígido controle de conteúdo. Games aprovados levavam no rótulo um "Selo de Qualidade". Não que jogos ruins não o recebessem: era uma prova de que não tinha conteúdo adulto ou violento.

Assim, a Nintendo controlaria totalmente a produção de jogos. E também se protegia de aberrações porn0gráficas como as da Mystique (Custer's Revenge, Bachelor Party, etc), que ajudaram a destruir a Atari no passado recente.

chip 10NES
O chip 10NES reduzia o risco de consoles piratas e a fabricação de cartuchos por terceiros

Algumas desenvolvedoras venceram a trava do 10NES, como a Tengen, divisão da Atari que produziu Gauntlet, After Burner, Shinobi e Pac-Man, entre outros. Com um processo por violação de direito autoral – afinal, o chip havia sido duplicado para que os jogos funcionassem – foram obrigados a parar. A Color Dreams também derrubou a trava, mas seus títulos eram bem inferiores aos da Tengen.

A distribuição desses jogos era mínima: a Nintendo prometia represálias a quem os vendesse. A Color Dreams acabou por seguir o filão religioso, mudando o nome para Wisdom Tree e lançando games fraquíssimos como Spiritual Warfare e Bible Adventures.

Monopólio contestado

Pelo resto da década não houve páreo para o NES. Um domínio total, com vendas nas alturas, jogos de sucesso e uma dose feroz de controle. A Nintendo cuidava de cada detalhe, como divulgação, produção e custos, com dez olhos. Se baixassem muito o preço, revendedores eram ameaçados de corte no fornecimento.

Trip Hawkins 3DO
Trip Hawkins, co-fundador da Electronic Arts e fundador da 3DO Company: um dos principais críticos das práticas da Nintendo durante o auge do NES.

De tão criticadas, as táticas viraram alvo de investigações pela Comissão Federal de Comércio dos EUA. Algumas desenvolvedoras as achavam inaceitáveis, como a Electronic Arts. O fundador Trip Hawkins pensou por anos como quebrar o monopólio enquanto produzia para computadores.

Ética ou não, foi uma jogada genial que ao mesmo tempo destruiu a concorrência e atraiu as principais mentes criativas. Só anos depois, por pressão do governo, a cláusula foi extinta – mas rivais já estavam fora da disputa.

Mas nem só de pressão e monopólio viveu o NES. Estima-se que em seu melhor momento, estava em 30% dos lares americanos e 40% dos japoneses. Graças a parceiros e às mentes criativas da casa, jogos fantásticos nasceram. A biblioteca tem mais de 700 títulos oficiais e a variedade foi um de seus atrativos. Uma geração de jogadores e profissionais começou no 8-bit da Nintendo.

O único mercado importante que o NES não conquistou foi o europeu. Longe das amarras comerciais da América, desenvolvedoras trabalharam à vontade com o Master System, que foi mais popular.

ícone nes

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Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

4 COMENTÁRIOS

  1. Muito bom!!!! Tive um TopGame VG 9000 da CCE usado e na era 16 bits vivia em locadoras e fliperamas, nunca tive um super nes ou mega drive!!!! A era 8 bits era bem divertida, onde eu pude jogar clássicos do atari no VG 3000 da CCE que também tive e os bons tempos do clone CCE NES!!!!! valeu

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