Análise: Sifu é teste de paciência e perseverança para jogadores obstinados

Sifu, lançado ontem pela francesa Sloclap, conta uma história típica de filmes de kung fu, com um protagonista em busca de vingança, mas em cenário moderno em vez de vilas medievais. Quase todos os elementos são realistas, com mais pancadaria e menos piruetas estrambólicas – se espera carinhas voando como numa produção de Jet Li, talvez se decepcione porque não é bem a pegada.

O elemento "mágico" fica por conta da mecânica mais peculiar: o envelhecimento do personagem a cada ressurreição. Através de um artefato especial, o herói se levanta após cada derrota, ao custo de alguns anos a mais nas costas.

Mortes são acumuladas na conta, então se o jogador morreu três vezes, ressuscitará com três anos a mais, sendo impossível reviver após os 70 anos.

sifu subchefe club
Além dos cinco chefões, há vários subchefes em Sifu.

De dificuldade progressiva e severa, não é difícil calcular que ele ou ela (o jogador define o gênero durante a introdução) provavelmente terminará a jornada idoso. A experiência traz não só cabelos brancos mas também conhecimento, então há um equilíbrio entre o contratempo da idade e o que se tira de lição.

Embora se aproxime, Sifu não é exatamente um roguelike na definição clássica, por não ter geração procedural. A cada nova tentativa, você sabe como é a fase e o que terá pela frente. É um pequeno alívio diante das várias mortes e tentativas – essa sim mecânica oriunda de roguelikes e que Sifu revisita a seu modo.

E lembre: tem game over – apesar de não levar todo seu progresso para o ralo, o que seria extremamente frustrante (mais do que a dificuldade que já é aterradora). O protagonista pode recomeçar cada segmento da busca com a idade que tinha ao iniciá-la.

Então...

Lute com sabedoria

sifu inimigos corredor primeira fease 08_02_2022
Chegar ao fim de cada seção com a mesma idade do início é um desafio em Sifu.

Um ponto crucial de Sifu é entender que não estamos diante de um beat 'em up comum, em que basta descer a porrada na geral sem dó, deliciando-se com combos e tombos. Se tentar, sua vida será bem curtinha. Há movimentos de esquiva e bloqueio/contra-ataque, e não estão ali por acaso: são fundamentais no progresso, como perceberá já na sequência de abertura.

Essa "sabedoria" forçada nos combates impede o jogo de ser esmaga botões. Sifu nos obriga a um progresso técnico, já que uma das principais mecânicas, a chamada "estrutura", depende de saber como defletir golpes. Esse parry abre a estrutura do oponente, permitindo a entrada de outros golpes. O mesmo vale para você, que portanto, não pode ficar numa postura só defensiva.

Apesar de intuitivo e bem apresentado, o controle não é simples e Sifu pode afastar jogadores em busca de diversão descompromissada. Por outro lado, vai agradar demais quem curte ciclos extenuantes de tentativa e erro.

Combate tático

sifu inimigo distraido
Aproximar-se com cuidado de inimigos distraídos e batê-los depressa funciona.

Não há um sistema de combos super complexo, mas logo o jogador começa a conectar golpes simples com especiais, emendando rasteiras com golpes de solo, por exemplo. Os sistemas são inseridos aos poucos, sendo natural absorvê-los, com alguns mais ou menos úteis que outros.

É importante priorizar o combate contra determinados inimigos. São comuns lutas contra grandes grupos em que alguns são mais fracos. Assim que perceber quais são, isole e invista contra os mais fortes. Caso contrário, eles o atacarão enquanto estiver ocupado e farão um belo estrago.

Não só de lutas na mão livre se faz Sifu. Há extenso uso de armas brancas, variando de garrafas a canos, vassouras, tijolos, espadas e outras. Quase tudo que o protagonista consegue empunhar, vira uma arma. Algumas são obtidas no cenário, outras tomadas de inimigos – o que nos dá outra boa razão para investir contra os mais fortes e equipados. Também não tenha vergonha de atacar rivais distraídos, correndo sobre eles e os nocauteando depressa.

Quase todo em terceira pessoa, a visão ocasionalmente se torna lateral (como em corredores cheios de inimigos). A transição é bem executada e não há dificuldade em manter as mesmas técnicas.

Sifu Sean
Inimigos com armas são os piores, como o segundo chefe, Sean, que aparece com o bastão normal e depois pegando fogo e causando ainda mais dano. Um inferno.

Como disse, controles são complexos, mas irregulares na qualidade. Há golpes médios e fortes, sequências, agarrões, alguns especiais e um sistema de esquiva em três direções. Com lutas pegando fogo, é inviável captar de primeira para onde desviar. Demanda várias jogadas, até decorar o movimento do inimigo – e mesmo assim, às vezes parece sorte sair ileso ao enfrentar bandos, que fazem marcação cerrada.

A árvore de habilidades incrementa os controles, trazendo movimentos ainda mais complexos, alguns envolvendo segurar LB ou RB + analógico. É técnico e nem sempre tão acessível. Há movimentos difíceis de entrar em sequências, como a rasteira baixa (↓ ↑ + Y) e o soco de palma (↓ ↑ + X).

Além disso, a corrida fica no mesmo botão de esquiva quando seguro, o RT. Então, o protagonista sempre dá uma esquivadinha antes, um problema quando há 6 ou 7 caras tentando espancá-lo no corpo a corpo e você quer sair dali rápido.

Sem perdão

sifu tela game over
Sifu tem os 70 anos como limite: se morrer depois disso, toma game over, podendo só voltar ao início de fases anteriores. Prepare-se para ver essa tela muitas vezes.

Sifu vai penalizá-lo de forma impiedosa se não respeitar essas técnicas e não fizer o chamado "controle de multidão". Ao enfrentar bandos, é importante saber a hora de recuar. Aliás, não só recuar: pode ser preciso meter o pé e sair correndo mesmo, sem vergonha alguma.

Se não puder, até inimigos fracos serão um sério problema, conseguindo matar o protagonista em segundos. Se forem vários com pedaços de pau e barras de ferro, prepare-se para entrar num ambiente com 30 anos e sair de lá com 50 – o que parece tolerável, mas compromete de forma irreversível o futuro da partida.

Já nos primeiros confrontos com subchefes, você sentirá na pele as consequências de ser afoito ou tentar sair na trocação franca. É fria. Não tente se não tiver extrema habilidade nas esquivas e contra-ataques. E tal coisa não deve acontecer antes de dezenas de horas.

Envelhecer tem vantagens, como aprender técnicas, mas também engana o jogador inocente. Você imagina que sendo um jogo curto, não fará tanta diferença ganhar uns anos logo de cara. É aí que vai dançar.

sifu pre chefe fajar 08_02_2022
A mecânica de envelhecer um ano para cada vida perdida em Sifu é implacável e obriga o jogador a repetir as fases muitas e muitas vezes.

Em minha primeira partida, por exemplo, comecei a segunda fase com 58 anos e resultado? Morri de velho já no segundo subchefe (o carinha do muay thai). Ao levar game over, você pode reiniciar no começo de qualquer fase anterior, com a idade que tinha ao iniciá-la.

Legal, né? Em termos de progresso, não. Dependendo da idade, melhor começar um jogo novo (ou voltar a um ponto mais antigo), tentar morrer menos e chegar mais jovem ao mesmo lugar. Refazendo a primeira parte, alcancei o mesmo setor com 38 anos na segunda tentativa e 26 na terceira.

Quanto mais jogar e melhor usar as esquivas, mais jovem terá progresso. Terminar um estágio idoso é certeza de problema futuro, pois terá que enfrentar inimigos cada vez mais fortes morrendo menos que antes.

É um forte incentivo ao replay até dominar – ou melhorar bastante – cada setor. O jogo pode parecer curto à primeira vista, afinal são cinco grandes inimigos, mas a repetição até alcançá-los, aprender padrões e enfim batê-los é o que faz a jornada.

Diversão e desespero

sifu o botanico pista
A coleta de pistas lembra Kill Bill, mas há referências diversas de visual e história.

Essa estrutura é a identidade de Sifu mas ao mesmo tempo, desesperadora. Você sabe que será obrigado a fazer a mesma fase várias vezes. E nem rage quit deve dar, porque mesmo velhinho, é útil avançar um pouco mais só para conhecer o caminho. Não há como ficar mais jovem, mesmo que comece a jogar excepcionalmente bem depois. O melhor que acontece é diminuir o número de mortes acumuladas (assim, reduzindo o bônus de idade em mortes seguintes).

Também quase não há forma de recuperar energia, exceto acertando determinados movimentos e antes dos chefões. E até bloqueando você não está seguro, já que inimigos abrem sua defesa e usam objetos que coletam no cenário, como garrafas e tacos – cheguei a morrer perdendo energia ao rolar uns degraus após um golpe.

A Sloclap poderia ter adicionado uma opção de dificuldade, facilitar um pouco a vida dos casuais? Não, pois afetaria a essência de Sifu: jogar, perder, jogar de novo, perder mais dezenas de vezes e só aí, talvez, com muita paciência, ganhar.

Cabe a você experimentar e descobrir se funciona em nível pessoal. Pode ser frustração pura ou desafio de diversão rara. Talvez um pouco de ambos.

sifu sean cutscene
Se inimigos gerais tentam vencê-lo em bandos, chefes são o grande desafio de Sifu, com padrões complicados de decorar.

Como não ser afoito com inimigos? Sifu não tem uma mecânica de stealth com "execuções" muito explicada, mas permite que o jogador se aproxime de inimigos sorrateiramente e elimine-os depressa com uma sequência de golpes. Se pegá-los de surpresa (uma garrafada na cabeça também serve), a maioria fica tonto.

Há cenas intermediárias que se fundem com a ação, numa transição de câmera entre elas. Ficaram bem encaixadas, mas os diálogos de múltipla escolha não parecem mudar grande coisa, fora uma luta a menos aqui e acolá. Por mais que tenha testado abordagens mais amistosas, o final quase sempre foi o couro comendo. Afinal, é pra isso que estamos ali.

Soturno

O visual de Sifu é bonito e sombrio, soturno como o protagonista vingativo e o vilão trevoso. Há música pontual, com prioridade para efeitos que elevam a tensão. A arte é simples e bonita, com cel shading sem contornos e texturas suaves, paletas frias e atmosferas ajustadas para o gênero, desde jardins vivos à arquitetura bem trabalhada, dentro dos parâmetros do estilo adotado.

A falta de HUDs ou outras informações na tela é perfeita para a imersão, mas história e personagens são um tanto apáticos. Não espere uma narrativa muito elaborada ou tipos inesquecíveis em Sifu. A estrela é o combo repetição + dificuldade.

sifu cidade pela janela
Sifu tem atmosferas bonitas e pesadas como a jornada vingativa do protagonista.

Claro, há muita referência oriental na arte, mantendo o jogador inserido na história e clima. Não é tão sangrento, mas pensei em Kill Bill enquanto jogava, inclusive selecionando a personagem feminina – tem pontos em comum, como a investigação, a busca por um inimigo final e sua gangue de subchefes terríveis. A segunda parte, na discoteca, lembra demais John Wick.

Áreas internas são espaçosas e não há tanto o que mexer nelas, às vezes dando impressão de vazio enquanto buscamos o próximo ponto de interesse. Também senti isso em áreas abertas mais amplas e sem inimigos: sem muito o que fazer loot, há um senso de exploração que não acrescenta quase nada além de observar o cenário.

No pain, no gain

Sifu é um resultado impressionante da Sloclap, com desafio brutal, bela arte estilizada e design convincente para a pouca, mas suficiente trama. O desafio aguçado, no entanto, não agradará jogadores casuais ou que tenham restrição de tempo.

"Não agradará" é eufemismo: preparem-se para chorar. É quase certo que perderão a paciência nos loopings cansativos mas imprescindíveis de envelhecimento, reinício e aprendizado do lutador vingativo.

sifu subchefe primeira fase
Sifu vai jogá-lo de volta várias e várias vezes...

Com paciência, o esforço dá retorno quando enfim completamos um estágio não sendo um vovozinho (ou vovozinha), pronto para mais pancadaria. A partir da metade da aventura, a tarefa será espinhosa e não há pra onde fugir: sem checkpoints dentro das fases, bônus de energia pra todo lado ou ajustes de dificuldade, Sifu é um teste de perseverança.

Se curte kung fu, cenários orientais e recompensa através de repetição – muita, muita repetição –, experimente Sifu. Caso contrário, não me responsabilizo por cabelos arrancados e pressão arterial elevada.

Sifu foi testado na versão PC, mas também está disponível para PlayStation 4 e PlayStation 5. Uma cópia do jogo foi gentilmente cedida pela publicadora para a análise.
Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

Deixe seu comentário

Digite seu comentário!
Digite seu nome aqui

Reviews

Recentes