Segundo Yoan Fanise, Road 96 mistura “o pior do comunismo e do capitalismo”

Road 96, do estúdio indie francês DigixArt, saiu semana passada. Projeto de Yoan Fanise (mesmo do aclamado pela crítica Beyond Good and Evil), é uma narrativa não linear sobre jovens tentando fugir de um país em profunda crise política e social.

Se ainda não viu, confira a análise de Road 96 aqui.

Ao entrar na Ubisoft em 2001, Fanise era engenheiro de som e pegou um período mais complicado que hoje. "Tinha que trabalhar todos os sons separadamente e a mixagem no jogo acontecia em tempo real, dependendo das interações do jogador. Na época, a tecnologia do PlayStation 2 permitia só 2 MB de memória, logo éramos absurdamente limitados em comparação aos padrões atuais", lembrou.

Vendo a produção de games como seu próximo passo natural, deixou a Ubisoft após 14 anos para fundar a produtora própria. Como em seu último projeto por lá, Valiant Hearts, e depois em 11-11 Memories Retold, Road 96 apela à narrativa emocional, calcado em situações do mundo real.

Time de DigixArt - Fanise é o último, de camisa vermelha.

Fanise contou detalhes sobre a produção. Ele cita os anos de desenvolvimento só na estrutura, ideias deixadas de lado e influências tanto do mundo real quanto fictícias. E se alguém acha que o jogo tem um lado político, o produtor diz que Petria, país fictício cenário da trama, "mistura o pior do comunismo e do capitalismo".

Para quem gosta de bastidores de desenvolvimento, vale a pena ler.

Como foi a concepção, estrutura e atmosfera de Road 96?

Começamos do esboço com a intenção de construir um sistema que não fosse típico em narrativa de games. Algo realmente novo, que nos desse muito mais possibilidades e permitisse que cada jogador tenha uma experiência totalmente diferente a cada partida. Passamos os primeiros dois anos desenvolvendo esse sistema.

Só quando o sistema começou a funcionar é que fomos nos aprofundar na estrutura de uma história e narrativa que funcionasse sob tais limitações, como um número reduzido de game overs e evitando eventos que implicam muitas consequências ao longo do tempo, como uma tempestade onde tudo é destruído.

road 96 anunciado

Já sabíamos que o jogo seria sobre uma road trip porque ele foi feito em torno desse sistema. Podemos nos mover de um ponto a outro, com as elipses mudamos de lugar e tempo facilmente, então pudemos criar algo totalmente novo para o jogador no meio da estrada. Não há realismo geográfico no mundo, é o oposto do mundo aberto.

O sistema também nos indicava que o jogador não poderia ser a mesma pessoa por todo o caminho. O número de diálogos multiplicaria exponencialmente se os NPCs tivessem que lembrar de você e suas ações passadas. Em vez disso, é a IA narrativa quem se lembra deles e decide o que vem a seguir.

Queríamos que jogador se sentisse muito envolvido com os problemas do país ao jogar com diferentes adolescentes em cada partida. Após jogar com vários, você se familiariza com os personagens que habitam o mundo do jogo, suas histórias, as situações de seu país, como você vê tudo aquilo por diferentes lados. É interessante porque de certa forma, você sente como se fosse aqueles adolescentes.

É também muito emocional quando pessoas que você encontra falam sobre algo que você fez no passado, com outro adolescente. É uma chance do jogador ser diferente. Vimos alguns mudando de mentalidade; eles começaram sem ligar muito para o contexto do país e quando mais jogavam, mais entendiam a situação social e tomavam ações e posições mais claras. No fim há uma caverna onde você pinta uma parede e pode ver sua evolução ao longo do jogo.

cena de road 96

"Enganamos" o sistema para não ser linear, porque no começo do jogo, assimilamos o conhecimento do que o jogador está fazendo dependendo de suas decisões e ações. Temos um tipo de equilíbrio interno que determina sua posição na história de acordo com suas decisões. As escolhas feitas terão mais peso conforme você progride na história e tem mais conhecimento daquele mundo.

Queríamos ser indulgentes com as pessoas em respeito a suas decisões iniciais, mas as coisas depois começam a afetar o mundo a seu redor de acordo com o que você faz, diz ou sua aparência (por exemplo, você pode não conseguir uma carona porque não fez certas coisas ou está sujo, fazendo você passar um karma ruim para os motoristas).

Ao longo da viagem, jogadores podem sentir diferentes emoções como alegria, tristeza, arrependimento, medo, etc. Como lidaram com um equilíbrio entre esses tipos de episódios narrativos?

O sistema narrativo é muito complexo, com toneladas de parâmetros, muitos dos quais definidos pelas ações dos jogadores nas primeiras horas de partida, começando nas questões respondidas logo no começo da aventura.

Explicando de forma simplificada, ligamos uma cor a cada bolha narrativa e o sistema cuida de não ter três sequências tristes ou várias cenas de ação em seguida, por exemplo. Dessa forma, encontramos um bom equilíbrio na variação da narrativa e ritmo emocional.

Não gosto quando, em certos jogos, você tem só um tipo específico de emoção (cor). Isso faz as coisas mais previsíveis do começo ao fim.

Gosto bastante de jogos que me surpreendem, que provocam emoções que vão do riso às lágrimas, como uma montanha-russa de sentimentos que costumamos ter na infância. Quando estava gravando música para jogos [Raving] Rabbids da Ubisoft, fui gravar música cigana numa vila pobre no norte da Romênia. Eles podiam rir e chorar num intervalo de dois minutos.

Aquilo foi muito impactante pra mim, eu adorava e parecia muito natural e infelizmente é algo que escondemos quando crescemos, o que na minha opinião é uma pena porque é algo bom. Por isso, gosto que videogames provoquem uma variedade de emoções, eles ampliam a variedade de emoções.

Tínhamos uma lista inicial de sessenta sequências, com quatro variações cada e diferentes diálogos. Cada bolha/sequência pode aparecer no começo do jogo e também a qualquer momento do dia, é algo que levamos muito em conta ao escrever os diálogos. Temos algumas condicionais em cenas que modificam coisas de acordo com alguns fatores, como se for perto do dia da eleição, por exemplo.

O desenvolvimento da parte lógica do jogo levou quase dois anos. Como acontece em títulos como The Legend of Zelda: Breath of the Wild, que teve protótipos em 2D antes de se tornar o jogo 3D finalizado, fizemos algo similar, num formato muito mais básico, já que nossa meta era testar o sistema.

Metade do tempo da produção foi dedicado a encontrar o sistema em si, através de diferentes versões de protótipo e testes.

prototext road 96 prototipo
Protótipo em texto de Road 96.

Tivemos protótipos baseados em texto (que chamamos de "prototext") e convidamos pessoas ao nosso escritório. Era como Dungeon Master em um RPG de mesa. Meu papel nos testes era ser o "motor narrativo", lendo como o ambientes se pareciam e dando ao jogador diferentes opções.

A experiência de testar o jogo em texto foi muito empolgante para nós e os testadores, então uma de nossas principais metas foi manter aquele feeling na transição para o jogo final.

Como foi ser financiado e a parceria com HP OMEN?

A decisão foi a melhor em termos de desenvolvimento tecnológico e produção, mas não do ponto de vista de negócio. Isso porque só entramos na produção de arte e animação quando o sistema de narrativa baseado em texto estava pronto.

Na época, já tínhamos dois anos no desenvolvimento e nenhum visual para mostrar aos publicadores ou investidores que pudessem nos dar dinheiro para ajudar a finalizar o jogo! Todos diziam "O conceito é legal, mas não posso vê-lo" e então a HP Omen veio e juntou-se ao projeto.

Eles gostaram mesmo do jogo e do estúdio. Disseram que gostavam dos valores e filosofia que temos na DigixArt; eles tentaram aplicar os mesmos valores à sua marca.

E tudo foi feito pelo Twitter – eles viram projetos anteriores do nosso estúdio e que estávamos fazendo jogos diferentes, que tentavam adicionar um significado ou algo mais profundo. E queriam saber sobre nosso próximo projeto, talvez apoiá-lo. Então apareceram na hora certa e nos permitiram criar o jogo graças ao investimento.

Foi duro encontrar uma publicadora ou investidores. Muitas publicadores clássicas viam nosso jogo como algo diferente demais do que vinha sendo feito, então não tinham muita referência quanto ao potencial público e vendas.

Esse fato manteve várias delas afastadas. Mas no fim conseguimos criar nosso jogo com suporte financeiro, total liberdade criativa e um time de apenas 15 pessoas!

Como foi o processo criativo do mundo e história de Road 96?

O processo criativo por trás de Road 96 na DigixArt foi muito aberto à participação de diferentes membros do time. Por mais de um ano, todo mundo podia participar; eu queria que eles trouxessem ideias, personagens e situações para o jogo.

Depois desse período, fechamos a fase criativa / "novas ideias". Adorei como tentamos organicamente achar as conexões entre os personagens e suas histórias no mesmo mundo.

Tivemos muitas ideias sobre como a história deveria ser. Um dia, fui convidado à visitar meus grandes amigos no 11 Bit Studios na Polônia (aqueles por trás de This War of Mine e Frostpunk).

makingof road 96

Conversamos sobre potenciais parcerias e fizemos um brainstorm sobre o jogo. Havia muita gente indo à sala e querendo participar do processo. Depois de um tempo, pensamos que o conceito e a estrutura estavam bons o bastante, mas faltava algo que queríamos dizer.

Tinha várias ideias em mente e entre elas, a história de adolescentes querendo deixar o país para escapar de um regime autoritário foi a mais interessante para eles, já que viveram sob o regime comunista no período da União Soviética, sob a Cortina de Ferro. Eles começaram a contar histórias daquele tempo, quando algumas pessoas tinham que deixar o país e se fossem presas, suas famílias e filhos estariam em perigo, etc.

Aquele drama ficou na minha cabeça, a emigração de um país que poderia ser o pior no mundo, já que mistura a pior parte do comunismo e do capitalismo. Algumas das ideias do time do 11 Bit Studios foram baseadas nas histórias que nos contaram sobre tentar deixar o país.

Também usamos questões reais de pessoas da Coreia do Norte quando tentam deixar o país para trabalhar no exterior. Eles podem, mas têm que voltar cinco anos depois e devem enviar todo o dinheiro que ganharem de volta para o país. Caso contrário, o país ameaça ferir sua família!

cena de porco rosso
Cena de Porco Rosso, animação de 1992 baseada em mangá de Hayao Miyazaki - fonte da inspiração dos ladrões Stan e Mitch.

Quanto às inspirações para os personagens, eles saíram de filmes e cultura dos anos 80 e 90. Alex, por exemplo, tem muita influência de Data, o menino inventor de Os Goonies. Adoro aquele personagem. Os dois ladrões, Stan e Mitch, são inspirados nos piratas aéreos em Porco Rosso. Em geral, filmes como Into the Wild também tiveram uma influência significativa no jogo.

O que você pode falar sobre a estrutura do jogo?

Quanto ao formato de uma partida, jogar [um episódio] todo leva de 30 a 50 minutos, o que é aproximadamente o tempo de um capítulo numa série. Era nossa meta ter uma série de episódios, assim você pode jogar a temporada toda e viver uma história diferente em cada, na pele de cada um dos adolescentes que o jogo seleciona aleatoriamente.

Dessa forma, o jogo não requer toneladas do seu tempo sem que você tenha ao menos uma conclusão parcial de um dos episódios da temporada (o jogo completo).

No início, temíamos que o jogador não se interessasse em continuar com os outros adolescentes após o primeiro. Por isso colocamos o percentual de completitude no menu, abaixo dos personagem; eles dão uma ideia de quanto da história você revelou de cada.

Qual seu personagem favorito em Road 96?

road 96 alex

Meu favorito é Alex porque ele é o mais jovem, ele finge ser forte mas ainda é uma criança que sente falta da família, então vocês meio que tem momento quando o adolescente compartilha sua visão do mundo, aquilo o torna diferente. Ele tem muita inocência e ao mesmo tempo é muito esperto.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

Deixe seu comentário

Digite seu comentário!
Digite seu nome aqui

Mais recentes

Análises