Análise: fantasia política Road 96 não é a grande aventura beat desejada

A jornada de jovens idealistas pegando carona para fugir de um governo fascista parece perfeita para um enredo carregado de emoção, certo? É o que Road 96 aparenta ser.

Mas só aparenta: não é a história de um protagonista sendo desenvolvida. É mais sobre a saga de oito personagens interligados. E numa escolha incomum de design, nenhum deles é você, o jogador. Esses "falsos coadjuvantes" são os verdadeiros protagonistas.

O jogador controla jovens sem esperança fugindo da fictícia república de Petria, sob o governo neofascista de Tyrak. O tom político impera, às vésperas de uma eleição presidencial que envolve marketing, ativismo, manipulação da mídia, fake news e todo o pacote de campanhas polarizadas que conhecemos dos últimos anos – tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.

Dispensando construir a personalidade do nosso personagem, o game pula etapas e vai logo te jogando na aventura. Não tem introdução ou rodeio: você começa já na estrada e cada partida pode lançá-lo na pele de alguém diferente e num ponto qualquer do mapa.

road 96 mapa
O mapa de Petria, que no final terá as rotas de seus vários mochileiros fugindo do país.

No meu caso, comecei como um carinha pegando carona com Alex, nerd brilhante de 14 anos com gírias que o fazem parecer um membro mirim da Grove Street Families, de GTA.

Dali vão se sucedendo encontros e suas reações modificam o relacionamento com estes personagens... mas não muito. Não faz tanta diferença, porque seu próprio personagem muda o tempo todo e torna esses encontros um tanto impessoais.

Você nunca aprofunda as relações entre SEU personagem e aqueles auxiliares. Não dá tempo. Após se conhecerem, rola uma interação não muito longa, cada um toma seu rumo e adeus. O jogo não nos permite ver ou mesmo ouvir a voz de quem controlamos, já que ele ou ela muda após alcançar a fronteira e ter seu destino definido. Somado ao escasso tempo com cada colega de estrada, não colabora em criar identificação ou apego.

Essa escolha de estrutura de Road 96 é curiosa porque os reais protagonistas são as pessoas que você encontra. A história é sobre eles e o país, não você.

Só após acompanhar (e guiar) vários jovens cruzando a fronteira – ou sendo presos ou até morrendo no processo – é que conseguimos juntar os pontos e entender como eles estão interligados.

road 96 zoe na estrada
Encontros com os personagens levam a curtas aventuras juntos, o que não colabora na criação de um elo. Você é mais uma testemunha dos eventos, não o protagonista.

Talvez você precise de mais de uma partida para ver todos os encontros com os personagens centrais. No meu caso, Jarod, Fanny e a dupla Stan e Mitch não tinham batido 100% ainda, mas estavam quase, com oito jovens controlados (dois foram presos e um morreu).

Essa efemeridade das relações faz com que os encontros pequem por falta absurda de naturalidade. Você está fugindo da polícia agora, no comício de um dos candidatos à presidência daqui a pouco. Ou no meio de um assalto, talvez ajudando os assaltantes. Ou acaba de conhecer um cara que do nada diz "Ei jovem, você parece confiável, vou te contar algo" e entrega segredos, relata planos contra o governo, etc.

Como tudo é assim ligeiro, fica impressão (errônea) de desconexão entre as partes e falta de naturalidade. É uma pena, mas inevitável, acho.

Os personagens não são verossímeis – não que tentem. São (propositalmente) caricatos, estereotipados e exagerados, como nas gírias de Alex, no pseudojornalismo da rede GNN e sua âncora, a aloprada Sonya Sanchez, nas trapalhadas pouco engraçadas dos bandidos Mitch e Stan, na imediata simpatia de Zoe por todos os aventureiros e no cliché noir do motorista de táxi Jarod.

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Os personagens e situações de Road 96 usam caricatura como elemento crítico, como no jornalismo hipertendencioso da rede "GNN", que não economiza nos elogios ao "grande líder" Tyrak enquanto força a vinculação (mentirosa) da opositora Florres ao grupo "terrorista" Brigade.

Outro ponto desagradável foi notar que determinadas ações irremediavelmente levaram a um desfecho ruim para meu jovem viajante. Nas três ocasiões em que decidi salvar a vida de alguém, meu personagem acabou se ferrando (morreu ou foi em cana).

Nostalgia noventista

A música é importante na criação da atmosfera de Road 96, que se passa entre junho e setembro de 1996. Com muito uso de sintetizadores, há um clima geral meio "nostalgia retrô new wave" que é bacana de verdade, mas erra um tanto na década.

Uma das formas de enfatizar essa busca por nostalgia musical é através das fitas cassete colecionáveis. Algumas são dadas pelos personagens como lembrança do momento, como Zoe, outras roubadas ou compradas.

Outra é que várias sequências dentro dos episódios têm nome de músicas dos anos 80 e 90. Lembro de "Smells Like Teen Spirit", "Roll With It" e "Video Killed the Radio Star", entre muitas. Mas como não é uma produção AAA, esqueça, nenhuma delas toca no jogo (e não faz falta).

road 96 fitas cassete
Fitas cassete com a trilha são localizadas ao longo da aventura.

Road 96 é jogado em primeira pessoa, indo além de diálogos. Você pode explorar ambientes a pé para procurar itens, incluindo comida e pontos de descanso entre as viagens. O inventário é simples o suficiente, apenas para uso imediato e por isso, não espere muito dessas explorações.

Pode-se também desenvolver habilidades que facilitam na aventura – ao saber como hackear um cofre ou arrombar um carro, por exemplo. E por estranho que seja (já que seu personagem muda com frequência), todas as habilidades são mantidas.

Por outro lado, há uma grande variedade de puzzles simples e minigames. Eles vão desde tocar instrumentos musicais e preparar drinks até clones dos clássicos Pong e Tank, mesas de air hockey, etc. Os telefones espalhados pelo país também permitem fazer ligações para números encontrados, uma boa adição na construção do mundo do jogo, ainda que não mude nada.

Um ponto negativo da visão em primeira pessoa é que às vezes dificulta apreciar o cenário. Para responder aos diálogos é preciso estar com a câmera voltada para seu interlocutor, que pode ser o motorista, por exemplo. Num conto de viagem tão cheio de cenários e atmosferas, é uma pena.

road 96 habilidades menu
As habilidades ajudam na fuga e são mantidas entre a troca de personagem controlável.

Como a DigixArt colocou caixas de diálogo atreladas ao personagem, isso cria um pequeno problema. Caso ele esteja em movimento, pode ser difícil escolher a opção desejada com precisão. Seria melhor, ao menos nesses casos, um menu estático na parte inferior da tela, típico em aventuras gráficas. O ponto de vista também é baixo e em alguns ambientes, o protagonista parece ser uma criança (sabemos que é são adolescentes).

Os gráficos são agradáveis, desde proporções de personagens até os cenários estilizados, que lembram um desenho animado. Embora eu preferisse um traço um pouco mais realista, são homogêneos. Destaque para a viagem psicodélica de Sonya na limusine, você vai saber do que estou falando.

Tal como o script, o trabalho de voz pende para o caricato. Não colabora muito na intenção de emocionar ou impactar, beirando o tom infantil que nem sempre parece apropriado. Mas cai bem em cenas cômicas, como as aparições de Sonya e dos bandidos trapalhões.

Fica para a próxima

Esperava outra coisa de Road 96. Desde o anúncio, imaginava uma jornada introspectiva e emocional, com fortes relações, um quê beatnik de Into the Wild e aventuras na estrada. Mas o tom não é esse – o que não prejudica a narrativa escolhida, mas também não empolga.

road 96 zoe
A aventura "pé na estrada" tem escolhas que no fim não fazem tanta diferença quanto poderiam, o que quebra a sensação de liberdade.

Suas relações com os personagens são superficiais – e quando tentam se aprofundar, transparecem artificialidade meio piegas que só o tom cartunesco justifica. Isso prejudica ao alienar o jogador das histórias.

Mesmo participando da vida daquelas pessoas em algum nível, era mais um expectador. O final que alcancei (e sem spoiler, só digo que foi trágico) não causou impacto ou emoção em especial. Foi meio "Meh... Ok então".

Ainda espero uma grande aventura "pé na estrada". Road 96 é um bom passatempo, com momentos divertidos, mas não chega lá.

Road 96 foi avaliado na versão Windows. Também está disponível para Switch.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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