The Last of Us, que está virando série na HBO, teve chance de ser um filme. Em 2014 foi anunciada uma produção com direção de Sam Raimi – mesmo do clássico The Evil Dead e dos Spider-Man com Tobey Maguire. Para tristeza de muitos, não passou de conversas e ideias inexploradas, até ser descartado ano passado, quando a série entrou na pauta.
Mas se você ainda gostaria muito, muito mesmo de ver a história de Joel e Ellie no cinema... Existe algo por aí que não é bem The Last of Us, mas a semelhança faz dele um bom candidato a "prêmio de consolação".
Lançado em 2016, The Girl with All the Gifts (A Menina Que Tinha Dons) é uma produção britânica dirigida por Colm McCarthy, baseada num livro homônimo de Mike Carey – roteirista de inúmeros quadrinhos, de X-Men e Quarteto Fantástico a Batman e Hellblazer (Constantine).
Apesar das semelhanças berrantes com TLoU, não se engane: é mais sombrio e com um final bem diferente. Atenção: daqui em diante, muitos spoilers.
Clone não, mutação
Fico meio incomodado ao ver descrições de The Last of Us como survival horror. O jogo da Naughty Dog não é só isso. Ele ultrapassa a fórmula clássica da sobrevivência com terror e sustos, graças à história de pai e filha no meio do caos. E o final, bem ou mal, não tem nada de aterrorizante.
O filme não economiza nas semelhanças. A primeira e mais importante: a sociedade acabou após uma infecção global do fungo Cordyceps. Estão lá os mesmos cenários, com cidades abandonadas sendo retomadas pela natureza. Você lembra imediatamente de The Last of Us. Veja a arte acima: impossível não associar à capa do jogo.
Tal como os infectados espalhados pelos Estados Unidos no enredo de Druckmann, a Londres pós-apocalíptica tem hungries (famintos), nome dado por sua fome de devorar carne, principalmente humana. O livro tem o equivalente aos hunters do jogo: junkers, humanos que saqueiam para sobreviver. Mas ficaram fora do filme.
Não há as fases do ciclo biológico com runners, clickers, bloaters e etc. Enquanto estes lançam esporos após a morte em lugares escuros, um hungry é manipulado pelo fungo, para que se junte a outros. Ali sucumbem à infecção e os fungos crescem da massa de corpos. A planta resultante desenvolve um tipo de vagem muito dura, contendo esporos.
É onde a trama começa a ter sua própria cara: nem todo infectado é um desmiolado devorador de humanos. Alguns, apesar do apetite voraz, mantém faculdades mentais e só mostram o lado selvagem ao se aproximar de caça (ou melhor, humanos saudáveis). São hungries que nasceram assim – infectados no útero das mães.
Os hungries de segunda geração são capazes de raciocinar e ter o fungo no organismo ao mesmo tempo. Algo como ser um runner de The Last of Us, mas com raciocínio e personalidade preservados.
Relação maternal
Se o jogo explora a relação paternal entre Joel e Ellie, temos a infectada Melanie (interpretada por Sennia Nanua), cuja figura protetora é a educadora Helen Justineau (Gemma Arterton). Melanie vive num tipo de prisão militar, onde ao contrário de Ellie, não é a única "imune".
A menina faz parte de uma classe de 20 jovens como ela, sob extremo controle de um grupo militar. A supervisora é a cientista Dra. Caroline Caldwell (Glenn Close), que como o Dr. Jerry Anderson em The Last of Us, é considerada capaz de desenvolver a vacina. Apesar de protegidas do mundo externior, a vida das crianças é péssima e seus tutores precisam de cuidados extremos para evitar incidentes.
Melanie, apesar da fome, tem inteligência acima da média, é fascinada por mitologia grega e sonha com a vida lá fora. Ela nunca teve contato com hungries descontrolados. Entre as aulas – uma das poucas atividades que gosta – afeiçoa-se à Helen, talvez a única não-infectada que a trata como algo mais que uma cobaia, um objeto de estudo.
A Dra. Caldwell, por exemplo, acredita estar perto de achar a cura e decide que Melanie é o espécime perfeito. Quem a interrompe prestes a fazer a cirurgia fatal? Joel Helen. Na sequência, a base improvisada num velho hotel é atacada por hordas de famintos, desencadeando a jornada pela terra arrasada. Lançados no mundo inóspito, o grupo parte rumo a um distante laboratório. Sim, você já viu esse filme... ou esse jogo.
Melanie ataca uma pessoa pela primeira vez para salvar a professora, come animais para saciar a fome, distrai hungries (que farejam humanos mas não se importam com outros infectados) e protege o grupo. Cria-se um laço de confiança enquanto cruzam cenários cheios de zumbis.
Aos poucos, todos – incluindo os militares Parks (Paddy Considine) e Gallagher (Fisayo Akinade) – passam a ver Melanie como aliada e não só alguém que deve ser protegida pelo valor. Caldwell, contudo, continua ciente de que deverá sacrificá-la em prol da cura.
Última chance de não tomar um spoiler total, saia e vá assistir o filme. Ou continue, você é que sabe...
Mensagens diferentes
Por muito tempo, Melanie escuta a Dra. Caldwell, que tenta convencê-la a aceitar seu papel de mártir da humanidade. A menina entende que sua vida é a chave para a cura. Mas ao contrário de Ellie, que se torna mais e mais convicta da necessidade de seu sacrifício, Melanie muda de ideia e decide não salvar os humanos. Pelo contrário.
Infectados de segunda geração vinham provando que eram – tirando o fato de comer gente – iguais ao resto da humanidade. Tinham a mesma capacidade cognitiva e sentimentos. Melanie observou o mundo real e descobriu suas próprias habilidades. Ela viu pessoas que gostava em guerra contra os hungries, algumas morrendo.
Prestes a ser dissecada, numa tentativa desesperada de Caldwell (à beira da morte por sepse) de obter a vacina, Melanie faz uma pergunta: se a cientista a vê como uma pessoa. Caldwell concorda que, apesar de ser parcialmente controlada pelo fungo, ela ainda tem características humanas. "Então por que nós temos que nos sacrificar por vocês?", responde antes de fugir do laboratório, instruindo Caldwell a ficar lá.
Sua conclusão é que enquanto humanos e infectados coexistirem, o mundo não será reconstruído. A solução é que um dos lados não exista. Quase toda a humanidade se transformou em hungry ou morreu, com poucos vivendo em áreas protegidas. A escolha por quem deve herdar a Terra parece fácil. Pra ela, pelo menos...
Melanie incendeia a BT Tower tomada por um gigantesco reservatório de esporos. O fogo libera uma nuvem colossal na atmosfera, dali se espalhando por todo o planeta. Como a Pandora da mitologia, ela "abre a caixa", condenando os últimos humanos ainda saudáveis. A "humanidade 2.0" poderá se desenvolver.
E suas pessoas queridas? Só a Dra. Caldwell, Parks e Helen estavam vivos. Gallagher morreu ao sair para procurar alimentos, atacado pelos zumbis. Parks é contaminado pelos esporos e pede a Melanie que atire nele antes que se transforme. Caldwell não ouve o conselho da menina sobre ficar no laboratório e tenta segui-la, sendo morta pelos hungries.
A única poupada é Helen, em segurança dentro do laboratório lacrado. A amada tutora é condenada a uma existência aprisionada, tal como Melanie no início – já que os hungries precisarão mais de suas lições do que sua carne.
❏
Você pode se decepcionar com The Girl With All the Gifts se espera o mesmo tipo de jornada emocional. Mas como o jogo, o filme tem muito para fazer pensar. Teve boa recepção, com nota verde no Metacritic e chamado por alguns de "melhor filme de zumbis em muitos anos".
Não sou muito fã de enredos com zumbis – motivo pelo qual ignorei The Last of Us por muito tempo, tremendo erro. Mas enquanto não vemos Ellie e Joel nas telonas (o que deve demorar muito, se acontecer), talvez valha como curiosidade.