Se a presença feminina no game design foi marcante desde o início, com nomes como Carol Shaw ou Rieko Kodama, com o controle na mão a história mudava um pouquinho... Até bem pouco tempo, videogame era visto como "brinquedo de meninos"; o console reluzente ficava na prateleira azul, a Barbie na prateleira rosa da loja, e pais nem sonhavam em questionar tal padrão.
Se a menina queria o videogame... ia ganhar uma boneca, e fim. Mesmo quando os aparelhos foram passando devagarzinho da seção de brinquedos para a de eletrônicos, algo não mudou: a proporção eles x elas entre loucos por games pendia para o lado masculino da balança.
Mas como apontavam previsões, a tendência se concretizou e a partida virou. Dados de 2015 indicam mulheres acima dos 18 anos como a maioria demográfica para a indústria de games. Com 36% da "população", são seguidas de perto pelos homens na mesma faixa etária, 35%. O típico adolescente nerd, que passava o fim-de-semana socado na locadora e depois em casa destrinchando games (tipo você, eu...), está definitivamente superado, pelo menos nos Estados Unidos: segundo o estudo, são fiéis ao clichê 17% dos gamers current-gen, ou seja: uma fração menor do negócio.
O número total, com todos os segmentos etários, ainda tem maioria masculina, mas quase insignificante no macroambiente: 52 x 48.
Sem questionar métodos da pesquisa, como fatores que podem fazer a diferença (cultura, classe econômica, etc), isso me trouxe outra questão ao examinar relatórios de alcance do Memória BIT em redes sociais. Como produtor de conteúdo e administrador de página sobre games antigos, não vejo predomínio feminino.
Aliás, predomínio passa longe, não estamos sequer perto de equilíbrio: há um abismo entre os sexos, como sugerem números daqui e outros sites.
Clube do Bolinha
A mesma faixa feminina que hoje está no topo da pirâmide americana (se servir de parâmetro para nós do Brasil) não gosta de games antigos? Ou só não demonstra interesse?
Em nossa página no Facebook, a proporção homem x mulher é totalmente desequilibrada: 88% do público é masculino. E detalhe: a maioria delas na faixa dos 18 aos 24 anos; a seguinte, teoricamente a mais interessada no tema (25 aos 34), compõe só 2% do total de curtidas.
Alguém pode dizer "Pô Daniel, isso é caso específico do Facebook do Memória BIT, talvez você não use uma linguagem adequada, ou não tenha segmentado o alcance dos seus posts", etc.
Também cheguei a suspeitar de algo assim (embora incrédulo), então resolvi perguntar a outros administradores de páginas e sites sobre retrogaming.
Resultado? A desproporção é similar ou até mais aguda.
Aliás, obrigado às páginas Retro Games BR, Mega Drive / Genesis e Cartucho Velho, que cederam gentilmente dados de seu público.
Nem precisava da confirmação: o fato é refletido no perceptível baixo envolvimento feminino com comentários, curtidas e compartilhamentos.
Mas digamos que fosse um problema só do Facebook, afinal rede social funciona diferente de site, certo? Tem aquelas paradas de algoritmo, Tio Zuckerberg decidindo quem vê o quê, etc...
Errado, pelo menos segundo relatórios do Google Analytics: além de só 18% de leitoras, o Memória BIT tem também muito menos tempo médio de visualização (o tempo que o visitante passa no site lendo um artigo ou vendo qualquer conteúdo) da parte delas: menos de 50 segundos, contra média masculina de quase três minutos.
De novo, nem precisava de relatório: a ausência de mulheres é sentida nos poucos comentários deixados no site. Só por observação, diria que homens assinam mais de 95% dos comentários no Memória BIT, e é provável que o cenário se repita por aí.
Mas por que mulheres não curtem games antigos? Exatamente a faixa etária dominante nos atuais, não manifesta interesse em sucessos cuja posição numa linha do tempo bateria com sua adolescência, a época dos 8 e 16-bit.
São muitas teorias, sendo mais plausível pra mim a falta do elemento nostálgico.
Mudanças na indústria
Antes focados no público masculino, games hoje nascem querendo o mercado mais amplo possível. Se parecia irresistível apelar ao herói numa batalha qualquer, esportes ou beat'em ups, enredos e temas de pouco apelo entre as moças, agora há simuladores de instrumento musical, dança, vida social, os MMORPGs para todos os gostos — sem esquecer jogos de guerra, combate a alienígenas, futebol, basquete... O cardápio é variado.
Até 2014, pesquisa aplicada em quatro países (Estados Unidos, França, Alemanha e Reino Unido) mostrou exatamente essa diferença de gostos, saciada por uma miríade de hits: domínio feminino em games como Just Dance, Candy Crush, The Sims e clássicos da Nintendo, e masculino em shooters e esportes.
Uma teoria sobre a estagnação da participação feminina por tanto tempo foi apresentada no SXSW em 2007 por Jane Pinckard (do GameGirlAdvance), um ponto válido: se a maioria dos desenvolvedores eram — e ainda são — homens, estariam antenados com o que a mulher quer jogar, quais personagens teriam como referência?
A maioria dos editores e desenvolvedores são homens, e quando tentam criar jogos para mulheres gamers, usam coisas como o foco no grupo e números de pesquisa. Como resultado, normalmente erram o alvo desenvolvendo games que são uma porcaria. Aí os games não vendem bem e a publicadora diz "Bem, mulheres não gostam de games".
A idealização da "mulher gamer" foi construída como algo absoluto, uma imagem sintética de tudo que elas esperavam, ignorando que não formam um bloco compacto de opiniões e preferências; a mulher de 30 anos talvez não quisesse jogar Barbie Super Model ou Crystal's Pony Tale. Isso pode tê-las afastado.
Com variedade disponível, elas passaram a curtir games porque eles mudaram. A forma de divulgar hardware e software também mudou, com mais campanhas específicas e / ou abrangentes, embora seja longo o caminho até a igualdade de tratamento entre gêneros.
Se a participação massiva feminina é fenômeno moderno, como inserir um dos fatores mais relevantes do retrogaming na equação: a nostalgia?
Sem nostalgia, no fun
Há muitos jovens que nem eram nascidos na época da guerra Sega x Nintendo, cresceram no 3D e ainda assim compram retro-lançamentos na Steam, ou baixam pacotes de ROMs nos torrents da vida. Mas a maioria que aprecia velharias está acima dos 30, gente que se apega aos "bons tempos", recordações de locadoras, cartuchos e partidas de Pac-Man em família. Parte importante da graça de jogar um game 2D pixelado clássico é a nostalgia, reviver sensações com o hardware original, o feeling da infância.
Se meninas eram minoria naquele tempo, a falta do saudosismo explicaria muito da atual desconexão. Levantamentos vêm sendo feitos nos Estados Unidos há décadas, comprovando a gradual aproximação delas:
- 2015: 52% homens x 48% mulheres.
- 2008, Pew Internet & American Life Project: entre jogadores adolescentes, 65 x 35. Quanto mais jovem a idade pesquisada, maior a fatia masculina.
- 1989, revista Variety: 97 x 3.
- 1988, Nintendo: entre jogadores de NES, 73 x 27.
- 1998, revista Plaything: 79 x 21.
Coincidência ou não, números dos anos 80 são parecidos com os vistos em fanpages e sites de retrogames hoje.
Para gostar, é preciso começar. Numa época em que videogames ficavam no quarto do irmão, meninas tinham pouca conhecer a graça em controlar pixels. Apesar de lembrados como vilões pelo conteúdo 100% estereotipado, jogos de maquiagem, moda e personagens "fofinhos" como Barbie, ursinhos e pôneis coloridos podem ter ajudado a atrai-las. Quando arcades perderam status (ambiente típico masculino até meados dos anos 90, onde muito do gosto deles por games nasceu), não fazia sentido ignorar consumidoras expostas aos consoles. A abordagem passou longe da perfeição, mas foi um começo.
Mais tarde, com games brotando como mato em celulares e redes sociais, ficou praticamente impossível para elas escapar de febres como Candy Crush ou Colheita Feliz — e o que mais veio como consequência das descobertas. Segundo pesquisa de 2014, a audiência entre mulheres acima de 50 anos, por exemplo, cresceu impressionantes 32% graças aos casuais.
Isso vai mudar?
Não sei até onde o interesse feminino por games antigos pode ir, mesmo com emulação oficial e relançamentos 3D. O público principal desses jogos é quem os conhece; se o "alvo" teve o primeiro contato no passado, a desproporção não deve mudar tão cedo.
Talvez quando o PlayStation 3 e o Xbox 360 forem "retrô" — daqui uns 10 anos? — elas comecem a buscar referências felizes da juventude. Até lá, espero que você mulher que curtiu seu Mega Drive, SNES, Master System ou NES, continue por aqui com a gente.
Aliás, já curtiu o Memória BIT no Facebook? 😉