Em 27/11/1998, a Sega lançava no Japão o Dreamcast. Sucessor do fracassado Saturn, era tudo que fãs fiéis pediam. Saída a 480p, a novidade dos jogos em rede, qualidade de arcade: a máquina dos sonhos.
Mas viraria pesadelo. Havia desconfiança sobre a marca, pelas mancadas com Sega CD, 32X e Saturn. Uma sombra incomodava: a Sony, depois do gigante PlayStation, ameaçava soltar uma nova fera e fazer estrago. Dito e feito, o PlayStation 2 chegou em 04/03/2000 com um dos hypes mais absurdos já criados.
E muita qualidade, claro. Ken Kutaragi falava em emoções inéditas com a "Emotion Engine", e — aproveitando outro hype irresistível para o público-alvo do videogame — "plugar o usuário na Matrix". Moderno e poderoso, o PS2 seria capaz até de guiar armas nucleares. Foi tanto barulho, que o público acreditou, e o mercado entrou num "modo de espera". Dreamcast e Nintendo 64 eram coadjuvantes de uma estrela não-nascida.
As primeiras remessas de PS2 foram escassas, e a Sega manteve resultados dignos. Mesmo com o rival em circulação, chegaram a ter 21% de participação no fim de 2000. Eram vendidos dois Dreamcast para cada PS2. Mas a hemorragia era grande e as contas não fechavam. A Sega caía na bolsa japonesa, e até a compra da empresa pela Nintendo foi especulada.
A decisão pela sobrevivência foi tomada. O Dreamcast saiu de linha em março de 2001, Sonic foi parar no GameCube, e o resto é história. Como lembraria Peter Moore, figurão da casa e responsável pelo anúncio do fim:
Vendíamos 50 mil unidades por dia, depois 60, então 100 mil, mas não seria o bastante para aguentar o lançamento do PS2. Era um grande jogo de apostas. A Sega tinha a opção de continuar despejando dinheiro e quebrar, e decidiram que queriam seguir vivos para lutar outro dia.
O desfecho melancólico e precoce nos privou do que poderia ter sido uma batalha sensacional, dessas que moldam caráter. Talvez a Microsoft jamais tivesse um Xbox e a Sega estivesse por aí como parceira dos americanos.
Seria bom? Talvez, mas que seria ótimo curtir o Dreamcast um pouco mais, isso é quase unanimidade. Quem comprou não se arrependeu, e a crítica se derretia pelo aparelho. Até gente da Nintendo, eternamente avessos a falar da Sega, elogiavam, como a vice-presidente de marketing, Perrin Kaplan: "O Dreamcast é um produto fabuloso. Ele só não pegou. Todos com quem falo, o adoram. Ele só não pegou com o público em massa, e é uma pena".
De arquitetura mais amigável que o Saturn, programar não era aquele tormento. Games iniciais do PlayStation 2, dois anos de tecnologia depois, mal conseguiam igualar seu nível. Foi um início empolgante de 6ª geração, mas também o canto do cisne da Sega. Alguns fãs não hesitam ao decretar que o Dreamcast era melhor que o PlayStation 2. Já os da Sony, inconformados com tal ousadia, juram que o 128-bit da Sega era só um pouquinho mais poderoso que o PlayStation original, e não suportaria um GTA San Andreas ou Metal Gear Solid 2.
Blast from the past
O artigo a seguir foi publicado em outubro de 2000 no extinto site SegaWeb. Era o dia do lançamento do PS2 americano. Com o título "PlayStation 2: Tecnologia Desapontante", é assinado por John Benn, crítico citado no livro "Service Games: The Rise and Fall of SEGA: Enhanced Edition", exatamente no capítulo sobre o Dreamcast.
Benn escreve sob a ótica de um mercado prestes a colocar as mãos na máquina. Ele detona a expectativa criada pela Sony, o design do PS2 e fala das principais diferenças em relação à tecnologia — em sua visão, superior — da plataforma da Sega.
Válido ou não, o texto de Benn circula até hoje, colado em discussões como "prova incontestável" da superioridade do DC. Afinal, alguém escreveu isso muito antigamente, então deve ser verdade... Mas é interessante como documento de uma geração alheia ao tamanho do que nascia naquela quinta-feira.
Acompanhe a tradução. Cuidado com números e dados a partir daqui. Se quiser pular o artigo traduzido, clique aqui (talvez algo não faça muito sentido mais adiante).
PlayStation 2: Tecnologia Desapontante
Por John Benn, 26/10/2000
Lembro de quando o PlayStation 2 foi anunciado, e das especificações alegadas na época: 75 milhões de polígonos por segundo, potencial de streaming de textura ilimitado, largura de memória de 48GB/s, e por aí vai. Não demorou muito para que analistas de tecnologia começassem a questionar os números da Sony.
Desempenho poligonal
O número de 75 foi reduzido para 66 milhões. A partir daí, admitiram que estes números eram um pico de desempenho para objetos flat-shaded. Infelizmente, a imagem do PS2 como um tipo de monstro poligonal já havia sido fortemente entranhada nas mentes da mídia mainstream.
A Sega adotou tática mais conservadora, na qual queria basear sua nova filosofia de negócios: reconquistar confiança e imagem entre os gamers. Desde esta mudança dois anos atrás, a Sega nunca tapeou jogadores a respeito do poder do Dreamcast. Algo acima de 3 milhões de polígonos é tudo que a Sega confirma, mesmo que jogos mais novos como Test Drive: LeMans empurrem o limite para perto de 5 milhões em cenas 3D carregadas de efeitos.
A verdade é que o PS2 nunca exibiu mais que 2 a 3 milhões de polys num jogo. A principal questão é memória. Com apenas 4 MB de cache VRAM em seu processador gráfico GS, o PS2 é muito limitado no que pode alcançar na tela. Embora seja verdade que os 32 MB de memória principal e o bem poderoso processador Emotion Engine sejam capazes de produzir algo como 10 a 12 milhões de polígonos texturizados e iluminados por segundo, o design pobre do GS e seu pequeno pipeline para a memória principal restringem o número final em cerca de 50% daquilo.
"O quê? Você quer dizer que, apesar do poder do processador EE e a grande quantidade de memória disponível, o PS2 continua sendo capaz de mostrar só 5 a 6 milhões de polígonos na tela?" A resposta infelizmente é sim. Em contraste, o Dreamcast tem só 16 MB de memória principal e um processador capaz de metade dos polígonos / segundo — ou seja, 5 a 6 milhões —, mas o ponto em questão é levar isto até a televisão. Uma técnica inteligente de economia de memória conhecida como deferred rendering, junto com as habilidades de compressão de textura do hardware gráfico PowerVR2DC, permitem que o Dreamcast exiba todos estes polígonos gerados.
Para melhor entender as limitações do PS2 e as forças do Dreamcast, procure na memória de vídeo disponível sua resposta. Enquanto o DC tem 8 MB de VRAM, o PS2 tem só 4 MB. O problema surge porque 1 polígono usa cerca de 40 bytes de RAM. Quando você tem 5 milhões deles por segundo, isto resulta em 5 milhões / 60 fps = 83,333 polígonos em um único frame de animação. Se cada polígono usa 40 bytes de VRAM, você estará usando 3.3 MB mostrando estes 5 milhões de pol / s. Não deixa muita margem para o framebuffer do PS2, que usa cerca de 1.2 MB só para exibir o final dos dados. Sem mencionar que você ainda precisa de espaço para texturas que serão aplicadas àqueles polígonos.
Há truques que permitem ao PS2 exibir 5 a 6 milhões de polígonos / seg, mesmo com só 4 MB de cache VRAM. Um deles é atualizar o cache com mais frequência do que uma vez por segundo. Mas há outras limitações de largura que impedem isto de acontecer mais que duas ou três vezes por segundo, e o resultado é que o PS2 continua limitado aos 5 a 6 milhões.
Esta tabela resume o desempenho por polígono das máquinas da próxima geração:
Sistema | Etapa do processador | Etapa gráfica | Melhor exemplo** |
---|---|---|---|
PS2 | EE + 32 MB 12 milhões PPS* |
GS + 4 MB 6 milhões PPS* |
Madden NFL 2001 2 milhões PPS* |
DC | SH4 + 16 MB 6 milhões PPS* |
PVR2DC + 8 MB 5 milhões PPS* |
Ferrari F355 Challenge 3 milhões PPS* |
* Polígonos texturizados e iluminados, representando o ápice de desempenho. ** Apenas games já disponíveis foram considerados. |
Infelizmente, não é a única limitação do PS2. Minha ênfase no desempenho poligonal é por este ter se tornado um valor padrão para julgar o poder do console, quando de fato diz menos da metade da história. A principal desvantagem de sua arquitetura cara é a pobreza de habilidade com texturas.
Desempenho com texturas
O jeito que as texturas trabalham é simples. Dados de polígonos e texturas chegam à memória de vídeo; texturas são aplicadas aos polígonos e resultam no que é visto na tela. A maioria dos usuários de PC estão acostumados com games com 16 MB ou mais de dados de textura. Um veterano de Quake III pode ter um conjunto capaz de entregar 32 MB de texturas durante o game.
32 MB? Mas PS2 e DC têm só 4 e 8 MB de VRAM, respectivamente. Como esperam competir? A resposta é que consoles não seguram todas as texturas de uma cena na memória de vídeo de uma vez. Normalmente, dados são passados continuamente pelo barramento da memória principal, num fluxo.
O Dreamcast é uma besta maravilhosa de texturização, devido em grande parte à eficiência da metodologia gráfica do PVR2DC. Duas coisas o ajudam: descompressão de textura no hardware e deferred rendering em planos infinitos. Ao contrário do processador gráfico do PS2, o PVR2DC é capaz de descomprimir texturas em tempo real. Com isso, programadores do DC normalmente pegam de 20 e 25 MB de dados de textura e comprimem a uma proporção de 5:1 (às vezes 8:1), reduzindo para apenas 4 ou 5 MB. Então, os dados de textura são enviados para o PVR2DC, que simplesmente as descomprime no momento de renderizar com seu tamanho enorme original.
Em contraste, o processador do PS2 não tem habilidade de descomprimir texturas em tempo real. Todos os dados de texturas devem fluir por um pipeline relativamente estreito entre a memória principal e o cache GS de 4 MB VRAM, em seu tamanho original. Atualmente, este fato tem limitado games de PS2 a cerca de 10 MB de dados / frames com textura. É essa a razão pela qual prédios parecem tão similares em Ridge Racer 5. Falta de variedade de texturas tem feito a maioria dos games de PS2 parecerem extremamente planos quando comparados aos de Dreamcast como Sonic Adventure, Shenmue, e mesmo Draconus: Cult of the Wyrm.
E mais: o PVR2DC pertence à única família de processadores no mercado que usa deferred rendering para texturizar só polígonos que o gamer vê a cada frame. Outros chips gráficos texturizam tanto a parte de trás dos polígonos quanto suas faces. O efeito líquido é reduzir a quantidade de texturas que o DC precisar lidar em dada cena a um fator de dois ou três, dependendo da complexidade da cena. Quanto mais complexa, mais você nota o benefício do deferred rendering. É por isso que você nunca vê um jogo realmente grande, de movimento livre, no PS2. Crazy Taxi, Ecco the Dolphin e Shenmue simplesmente não são possíveis no PS2 porque ele não tem deferred rendering.
Outra tabela; essa resume o desempenho de texturização em ambas as máquinas:
Capacidade de streaming de texturas | |||
---|---|---|---|
Sistema | Capacidade | Habilidade de descompressão de texturas | Melhor exemplo * |
PS2 | 10 MB/frame (memória principal -> memória GS) | 10 MB/frame | Dead or Alive 2: Hardcore * |
DC | 5 MB/frame (memória principal -> VRAM | 25 MB/frame | Shenmue, Ecco the Dolphin * |
* Só games disponíveis foram avaliados. |
Estas duas medidas de desempenho dão uma boa ideia de porque o PS2 é, tecnicamente falando, um hardware de design pobre. O maior problema de sua arquitetura, porém, é a dificuldade que desenvolvedores têm para extrair desempenho razoável da máquina. Todo o poder do mundo embaixo do capô não faz muita coisa se games não parecerem bons.
Ambiente de desenvolvimento
O PS2 foi enviado aos desenvolvedores ano passado, com kits incompletos. Em contraste, a Sega tem dado excelente suporte aos desenvolvedores, tanto grandes quanto pequenos. A maior parte dos desenvolvedores de DC estão usando kits da 5ª geração, conhecidos como Set 5 Dev Kits. A Sony presumiu erroneamente que thirds do PS2 usariam kits simples, para programar diretamente em hardware, como fizeram nos dias finais do PSX. Infelizmente, características importantes e difíceis de implementar, como anti-aliasing para remover bordas serrilhadas dos polígonos, ainda não foram apresentadas.
Desenvolvedores têm respondido a estes desafios de programação do PS2 de várias formas. Alguns como a THQ (Summoner) usaram um tipo de CRT blending para simular efeitos que o verdadeiro anti-aliasing poderia oferecer. Isto é algo que o DC já tem há dois anos, mas o método do PS2 resulta em texturas lavadas, borradas. Tekken Tag Tournament é o exemplo perfeito entre lançamentos americanos. Embora tenham eliminado bordas serrilhadas que infestam a versão japonesa, o resultado é que todas as texturas no game parecem borradas ou lavadas. Dificilmente o que eu chamaria de revolucionário num console da próxima geração
Outro problema de desenvolvimento, e razão dos serrilhados, por sinal, é a séria falta de funções no kit que permitam ultrapassar algumas das limitações do restrito GS VRAM cache. Enquanto todos os games de Dreamcast rodam a 640 x 480, muitos de PS2 usam só um campo de 640 x 240 — um display que simula a tela à 640 x 480. Serrilhados severos são o resultado, e aí precisam ser escondidos com alguma forma de anti-aliasing (AA, ainda não disponível), ou pelo uso da técnica CRT descrita antes, com consequências negativas.
Além disso, o Emotion Engine é na verdade composto por três CPUs num núcleo. A maioria dos desenvolvedores, por falta de ferramentas adequadas, está usando só um terço do EE, porque ambas as unidades vetoriais (VP1 e VP2) são muito difíceis de programar. Com certeza games do futuro vão tirar vantagem das três unidades, liberando a CPU principal para implementar algumas belas rotinas de IA, mas o custo de desenvolvimento destas técnicas se tornou enorme.
O fato triste é que só algumas desenvolvedoras, como a EA, estão aptas a extrair desempenho digno da próxima geração da arquitetura do PS2. Mesmo Namco e Konami, reis do desenvolvimento no PSX durante a era dos 32-bit, estão com dificuldades para tirar mais do que 2 a 3 milhões de polígonos por segundo daquilo que deveria ser o ápice das máquinas de videogame. Fato a considerar é que Soul Calibur, do Dreamcast, lançado há 18 meses, parece melhor do que o recém-lançado Tekken Tag Tournament no PS2.
Nada muito impressionante comparado às promessas feitas pela Sony e seu séquito de sicofantas na indústria.
Resumo
O Dreamcast é a melhor máquina no mercado. Amanhã nada terá mudado. Tecnicamente falando, nada no PS2 chega perto da beleza de Shenmue ou Ecco, à velocidade e o poder de F355 Challenge ou Test Drive: LeMans 24, e a incrível elegância e graça de games como Metropolis Street Racer e Jet Grind Radio. Se um vídeo demonstração de Metal Gear Solid 2 o convenceu que o PS2 é a melhor máquina, então você não abriu os olhos para a realidade à sua frente.
A melhor máquina da próxima geração, de um ponto de vista técnico, é o Sega Dreamcast. Deixe que outras pessoas menos informadas comprem uma máquina capaz de menos, na promessa de um game daqui 13 meses. Enquanto isso, você e eu vamos apreciar os tecnicamente melhores games pelos meses que virão.
Validade?
O texto tem alguns fatos, como a qualidade duvidosa dos primeiros games do PlayStation 2. Mas se baseia em pontos questionáveis, métricas dúbias e uma boa dose de fanboyismo.
O resultado são afirmações cômicas, como a categórica "nada vai mudar no futuro" sobre o Dreamcast ser o melhor. Oras, estamos falando de dois anos de tecnologia de intervalo. Não precisava uma maratona mental para entender que, a longo prazo, o PS2 estaria melhor das pernas.
E vendo as configurações de ambos, nota-se que a Sony não havia mentido tanto assim.
VRAM: os 8 MB do Dreamcast, segundo ele, permitia mais polígonos em uso num game e não apenas como possibilidade teórica ou demonstrativa. A Sony se gabava do PlayStation 2 gerar até 75 milhões de pol/s, alcançável se nada mais estivesse sendo feito exceto gerá-los (irreal dentro de um jogo).
Mas eles foram projetados de forma distinta. O Dreamcast teve mais memória de vídeo e menos largura. Inverso do PlayStation 2, com largura absurda no buffer gráfico, permitindo passar texturas direto para o vídeo.
David Falkner, da BioWare, explicou ainda em 2000 o desenvolvimento de MDK2: Armageddom:
Reverend-IGN No último chat, você falou que a pouca VRAM estava limitando coisas como texturas e anti-aliasing. Não há alguma forma de pegar parte da memória principal e designar como VRAM? E se não, por quê?
DavidBioWare Sim, a questão da memória de vídeo melhorou bastante desde a última vez. O problema era que havia muito pouca memória de vídeo para colocar todas as nossas texturas, e a máquina não pode usar uma textura a não ser que ela esteja especificamente na memória de vídeo. Descobrimos desde então que o PS2 tem largura de banda suficiente para transferir cada textura da memória principal para a memória de vídeo conforme são necessárias. Isto é na ordem de centenas de Mb por segundo. Não tínhamos consciência desse tipo de poder cavalar no barramento do PS2. Nenhuma outra máquina que usei faz isso, incluindo meu PC ou o Dreamcast. Tivemos que rever o que pensávamos depois disso. Então, agora temos praticamente mais memória para textura do que sabemos o que fazer com ela.
O resultado é que o Dreamcast conseguia exibir de 3 a 7 milhões de polígonos com textura e iluminação. Estima-se que o PlayStation 2, nos games finais, tenha alcançado entre 13 e 20 milhões. Apesar de complicado, o PS2 era muito flexível, e desenvolvedores tinham truques na manga pra quase tudo.
Serrilhamento
Outro ponto negativo era o serrilhamento. É sabido que anti-aliasing, técnica comum de suavização a partir do Nintendo 64, não era tão simples no PS2. Até existia, mas a custo de certo impacto no desempenho, o que fez programadores abrirem mão dele no começo. E não qualquer programador: gente ao nível da Namco, que fez de Ridge Racer V um show de serrilhados. É um dos pontos a favor do Dreamcast.
"Os primeiros games lançados para o sistema apresentam design de textura menos que espetacular", escreveu a equipe da IGN em 2000 sobre o PS2. "De perto, modelos e backgrounds são claramente menos nítidos que a maioria do software visto até então para o Dreamcast. Isto por causa da pouca memória e da arquitetura de vídeo".
Mas as dificuldades eram superáveis. Começo de geração é assim, e programadores vão conhecer melhor o hardware conforme avançam. Ainda mais falando do PS2, que era tão poderoso quanto complexo.
Ainda em 2000, Jason Rubin, um dos fundadores da Naughty Dog, falou sobre essa e outras diferenças dos vídeos de PS2 e Dreamcast:
O PS2 entrega um frame buffer em estado natural. Ele não mescla frames anteriores com o atual para criar o efeito desfocado do Dreamcast. Para uma TV ruim, o método do Dreamcast é ótimo. Mas num bom monitor, com um cabo RGB, ele é limitante porque tende a tirar de você a habilidade de pegar pequenos detalhes.
As capacidades de textura do PS2 são muito complicadas. Passamos mais tempo só vendo opções que tínhamos quanto ao uso de textura, e encontramos uma boa solução para as questões de mip-mapping e filtering do sistema. Os primeiros games de PS2 não tiveram tempo pra isso. É por isso que eles tem um flicker horrível. Com tempo e esforço, você pode superar a questão de flickering tranquilamente.
Com o tempo, grandes jogos confirmaram isso, como Gran Turismo 4 (2004), Final Fantasy XII (2006) e God of War 2 (2007).
Mas qual o melhor?
O Dreamcast tinha seus charmes. Segundo um desenvolvedor com experiência em ambos os consoles, resolução e cores do DC eram incomparáveis, superiores até ao Xbox. "Se há uma área em que o Dreamcast se destacava sobre o PS2, era a resolução e o RAMDAC ótimo que tinha. As cores do PS2 e Xbox sempre pareceram bem lavadas pra mim. Mas o Dreamcast tinha aquele espaço de cor vibrante".
Tecnicamente o PlayStation 2 ganha com tranquilidade no geral. Texturas para mip-mapping*, por exemplo, eram geradas em tempo real, enquanto o DC precisava descompactá-las. Várias outras técnicas menos difíceis no PS2 eram quase proibitivas no DC, como bump e environment mapping, focal blur (exigiria valores de profundidade de pixels, indisponíveis no DC), etc.
Segundo Kazunori Yamauchi, criador e diretor da série Gran Turismo, o PS2 era capaz de coisas impossíveis (como eram feitas, pelo menos) em máquinas mais avançadas, como o PlayStation 3:
Quando [o PlayStation 2] saiu, uma das características únicas do sistema era o screen fill rate muito rápido. Mesmo olhando para trás hoje, é muito rápido. Em alguns casos, é mais rápido que o PS3. Lá, podíamos usar um monte de texturas. Ele era capaz de fazer aquela leitura-modificação-escrita, onde se lê a tela, pega um screenshot, modifica e manda de volta. Tudo isso era feito muito rápido.
Não sei se alguém lembra, mas no lançamento do PS2, a primeira coisa que fiz foi uma demo para o anúncio. Mostrava uma demo de GT3, a pista de Seattle num pôr-do-sol com o calor subindo do solo e aquela ondulação. Você não pode reescrever aquele efeito de névoa no PS3 porque a leitura-modificação-escrita simplesmente não é tão rápida quanto ao usar o PS2.
E números dizem o quê?
Algumas especificações lado a lado:
Dreamcast | PlayStation 2 | |
---|---|---|
Ano de lançamento | 1998 | 2000 |
RAM total | 23 MB | 32 MB |
RAM principal | 16 MB | 32 MB |
RAM áudio | 2 MB | 2 MB |
CPU | Hitachi SH-4 32-bit RISC 200 MHz | Emotion Engine 294.912 MHz |
CPU áudio | 45 MHz AICA 32-bit RISC 40MIPS | 18 MHz ¹ SPU |
Canais | 64 ADPCM ou PCM | 48 ADPCM, mais definíveis por software |
Frequência | 44.1 kHz | 44.1 kHz ou 48 kHz |
Saída | Dolby Surround ² | Dolby (Surround, Pro Logic II, Digital e Digital 5.1), DTS ³ |
Formato de mídia | GD | DVD |
Leitor | Yamaha 12x GD-ROM | Proprietário 4x DVD-ROM, 24x CD-ROM |
Capacidade | 1.2 GB | Até 8.5 GB (DVD9 Dual-Layer) 4 |
Compatibilidade | Dreamcast GD-ROM Audio CD |
PS2 CD PS2 DVD CD PSX DVD Video Audio CD CD-DA DVD5 DVD9 DVD+RW e DVD-RW 5 |
Gráficos | NEC PowerVR CLX2 100 MHz | Graphics Synthesizer 147.456 MHz |
Matrix transform | ||
MAC / s | 800 milhões | 2 bilhões |
Vértices / s | 50 milhões | 140 milhões / s |
FLOPS | 1.4 GFLOPS | 5.5 GFLOPS |
Transformação em perspectiva | 16 milhões / s | 80 milhões / s |
Iluminação | ||
4 fontes | 6.8 milhões / s | 9.8 milhões / s |
1 fonte | 16 milhões / s | 39 milhões /s |
Pixel fill rate | ||
Opacos / translúcido | 500 MPixels/s | 2.3 GPixels/s |
Opacos | 3.2 GPixels/s | 2.3 GPixels/s |
Texel fill rate | ||
Opacos | 1.6 GTexels/s | 580 MTexels/s |
Opacos / translúcido | 250 MTexels/s | 580 MTexels/s |
Polígonos com textura | ||
32-pixel | 7.1 milhões / s | 10 milhões / s |
100-pixel (opaco) | 7.1 milhões / s | 10 milhões / s |
100-pixel (translúcido) | 5 milhões / s | 10 milhões / s |
Polígonos multitextura | ||
32-pixel | 7.1 milhões / s | 5 milhões / s |
100-pixel (opaco) | 7.1 milhões / s | 5 milhões / s |
100-pixel (translúcido) | 2.5 milhões / s | 5 milhões / s |
Fator de compressão de textura | 7.98:1 | ? |
Bus CPU-GPU | ||
Largura de banda | 800 MB/s | 1.2 GB/s |
Compressão de textura | 6.3 GB/s | 7.7 GB/s |
Cache interno GPU | ||
Largura de banda | 33 KB | 4 MB |
Cache | 15 GB/s | 48 GB/s |
Buffer (largura) | ||
Framebuffer | 800 MB/s (em tiles: 6.4 GB/s) | 38 GB/s |
Z-buffer | 12 GB/s | 38 GB/s |
Buffer de textura | 800 MB/s (comprimido: 6 GB/s) | 9.6 GB/s |
VRAM | 8MB | 4MB |
¹ O SPU2 é o mesmo SPU (sound processor unity) do PlayStation 1 para retrocompatibilidade. A CPU do PS2 é a SPU1. ² O SPU2 é o mesmo SPU (sound processor unity) do PlayStation 1 para retrocompatibilidade. A CPU do PS2 é a SPU1. ³ nas primeiras versões fat, só em full motion video. 4 modelos a partir do SCPH-500xx. 5 cerca de 20 games em formato DVD-9, e cerca de 150 em formato CD. A imensa maioria usa DVD 4.7 GB. |
Não dizem quase nada. O Wii deu uma surra de gato morto em consoles mais avançados. O Mega Drive peitou o SNES por muito tempo na América, fora o baile em mercados menores. O próprio PlayStation 1 bateu sem dificuldade o Nintendo 64, superior em quase tudo. No fim das contas, o que vale são jogos e ao menos enquanto o DC estava vivo, não se via tanta diferença.
O DC aguentaria jogos da fase final do PS2? Sem cortes, truques e alterações, de jeito nenhum. E não sou eu quem diz: o mesmo produtor citado antes trabalhou na série Burnout, da Criterion, e responde se seria possível uma versão no Dreamcast:
Burnout no Dreamcast. Acho que poderíamos ter feito um jogo no estilo Burnout com menos detalhes geométricos, mas texturas muito melhores. A física seria um pouco preocupante, contudo. Eu me preocuparia com as batidas causando muito slowdown por causa do load do CPU, mas a I.A. e a direção básica estariam bem. Talvez com um pouco menos de tráfego, também. Afinal, houve uma versão para Gamecube [na verdade foram duas: Burnout e Burnout 2: Point of Impact] e ele não era exatamente uma usina de processamento.
A pequena guerra DC x PS2 teve outros fatores de muito mais peso:
- DVD: quando filmes em DVD eram febre e DVD players ainda eram caros, a decisão da Sony de incluir o suporte foi espetacular.
- Retrocompatibilidade: ao incluir a CPU do PlayStation 1 no 2, dando compatibilidade aos games do monstro cinza, herdou milhares, talvez milhões de consumidores.
- Marketing: o hype do PS2 foi tão bem feito que hipnotizou o mercado. Enquanto a Sega precisava desesperadamente do dinheiro perdido entre Sega CD, 32X e Saturn, os jogadores economizavam esperando a Sony.
- Saída da EA: apesar da parceria começar quase num sequestro de tecnologia, a EA foi importante no sucesso da Sega na América. Quando exigiram exclusividade em esportes no Dreamcast, o presidente Bernie Stolar disse não: haviam adquirido a Visual Concepts e tinham planos. Resultado? Enquanto marcas da EA bombavam outras plataformas, a Sega ficou na mão. Por fim vendeu os direitos sobre a 2K, que hoje pertencem a Take-Two.
- Retrospecto: nem preciso falar das lambanças da Sega após o Mega Drive. Público e indústria estavam reticentes quanto ao futuro da companhia no hardware. Entre dar outra chance ou confiar na Sony, que havia feito bonito com o PlayStation clássico, era fácil escolher.
- Timing: lançado quase um ano e meio antes do PS2, talvez o público não estivesse pronto pra ele, que acabou associado mais à 5ª geração, concorrente do PlayStation e Nintendo 64. Sua maior inovação eram jogos online, mas entre 1998 e 2000 a internet em massa engatinhava. A Sony levaria 6 anos para estabelecer a PlayStation Network, com um serviço rudimentar até ali via PlayStation Online.
E a pirataria? Em plena vida útil do DC, um grupo de hackers descobriu como fazê-lo rodar jogos em CD-R, explorando a compatibilidade do hardware com o MIL-CD (um formato multimídia nunca usado). A Sega brigou e conseguiu fechar muitos sites que distribuíam discos de boot, mas só com a revisão do console o problema foi contido — passou a ser preciso um modchip.
Mas não dá pra dizer que isso prejudicou tanto o Dreamcast. O PlayStation foi um dos videogames mais pirateados da história e vendeu mais de 100 milhões de unidades. Não muito diferente do PS2.
Tudo somado e pesado, não havia um abismo tecnológico entre Dreamcast e PlayStation 2. Com mais tempo e dinheiro, certamente muita coisa linda viria. Mas o fantasma dos verões passados voltou para cobrar a Sega, nos privando de uma das melhores máquinas já projetadas.
Outras fontes: