Como era no passado: a produção de Frostbite (Atari 2600)

Como diria o poeta, "cuidado com o que você deseja".

Lembra do tempo em que sonhávamos com jogos "quase reais"? Carros de corrida em múltiplos ângulos de câmera, gráficos de qualidade fotográfica, cenas que seriam confundidas com vida real (ê, Record...)?

"Já pensou que louco o dia em que um videogame vai se confundir com cinema e/ou fotografia? Será tipo controlar um filme, mal posso esperar!"

O dia chegou. Tudo está por aí, de forma mais ou menos polida, e continua evoluindo. Legal pra quem está na faixa dos 30 ou 40, por ter vivido épocas tão distintas, e visto isso virar isso. Tem aquela sensação de "testemunha ocular da história", ou como cantaria o Raul, "nasci dez mil anos atrás". Mas também fica a sensação de que algo se perdeu.

Na idade da pedra dos games, era tudo simples. Nada de equipes gigantescas numa produção: às vezes um cara só fazia tudo, e o resultado era o que nos entreteria por gerações. O lado bom: a exploração máxima da criatividade.

Quem diria que a hoje AAA Activision já foi uma iniciativa de camaradas rebeldes. Caras que, insatisfeitos com a AAA de então, Atari, procuraram um rumo diferente, e soltaram pérolas como Enduro, Keystone Kapers, River Raid, Pitfall!? Ironia ou não, sucessos no Atari 2600, console da empresa de onde saíram por não terem os devidos créditos — David Crane, Larry Kaplan, Alan Miller e Bob Whitehead.

Foi Steve Cartwright, um dos primeiros funcionários da Activision, quem produziu um daqueles games que parecem fazer falta hoje. O tipo com enredo improvável, imaginação de sobra, e que não é mais visto exceto nas linhas indie.

Quero dizer, quem hoje publicaria um game em que seu herói precisa coletar gelo para construir um iglu, sem ser acossado por ursos polares, caranguejos ou gansos, nem cair na água gelada?

Into the wild

"As coisas ficaram loucas na Activision por causa da rápida expansão", lembrou Cartwright. "Os quatro designers (Crane, Whitehead, Miller e eu) tiveram que dividir um escritório apertado, a milhas de distância do escritório principal. Era conhecido como "Cupertino Design Center", perto da rua dos atuais escritórios da Apple. Aquilo foi, na verdade, a gênese do conceito de Centro de Design... Colocar um pequeno grupo de pessoas que trabalhavam bem juntas em seu próprio espaço num outro lugar".

O ano de 1983 foi produtivo para Cartwright, que trabalhou em pelo menos três games, sendo dois míticos: Seaquest, Plaque Attack e Frostbite. "Foi um projeto de três a quatro meses", explicou sobre o último. "Naquele tempo, todos os games eram totalmente desenhados e criados por uma única pessoa".

Foi um terreno totalmente novo, inexplorado, pelo menos pra ele: seus games anteriores eram shooters ou variações. Cartwright foi contratado por Crane, ex-colega no curso de Design de Hardware da DeVry Institute of Technology, juntando-se à Activision em 1982 como designer e programador. Mesmo com o acúmulo de funções, comum na época, ele logo de cara despejaria dois games: Barnstorming e Megamania.

Barnstorming era muito original. Tinha nave, mas nada de sentar no conforto dos shooters, que atolaram o mercado depois de Space Invaders: um avião biplano, tipo aqueles de manobras, voando entre torres e por dentro de celeiros, um clima meio anos 30. Megamania foi no mais trivial: shooter espacial com certa tendência maníaca. Segundo Cartwrigth, era um "clone de um arcade chamado Astro Blaster".

A meta é guiar o protagonista, conhecido como "Frostbite Bailey", entre blocos de gelo flutuantes, até ter material para construir um iglu. Com o iglu completo, Bailey entra no abrigo e avança ao próximo nível. Embora muita gente pense que a inspiração foi Q*bert, que tem mecânica similar (os blocos pisados mudam de cor), a origem de Frostbite é outra:

Q*bert

"Acho que a ideia de Frostbite veio ao jogar Frogger", admitiu Cartwright. "Frostbite acabou saindo ao mesmo tempo que Q*bert, então as pessoas naturalmente pensaram que a ideia veio de sua natureza de pular e alterar a cor do lugar pisado. Mas eu nunca tinha visto Q*bert antes de terminar Frostbite".

Em Frostbite, não havia estradas movimentadas para cruzar, mas o caminho não era mais fácil. Bailey tem que construir iglus, mas a fauna local não curtiu a ideia. No começo, a única preocupação é com manter-se nos blocos, mas conforme avança, Caranguejos do Alasca, gansos e até um urso polar aparecem para perturbar. Peixes pelo menos são comida — ou melhor, pontos.

Curiosamente, as limitações do Atari ajudaram Cartwright a decidir-se pela ambientação gelada. "Como éramos limitados a gráficos 8-bit, foi mais como "o que posso fazer em apenas oito bits"". A primeira ideia era bem mais quente: "Hmm… Acho que a ideia original era pular entre pedras através de lava fluindo, mas as cores branca e azul funcionavam muito melhor no Atari 2600".

A tarefa de codificar foi complicada. Ele tinha várias grandes ideias, mas que simplesmente exigiam muito esforço para serem colocadas em prática no hardware, com suas enormes limitações.

"As dificuldades em trabalhar no Atari 2600 são bem documentadas", diz Cartwright. "Havia questões de memória e sincronização. Megamania foi o projeto tecnicamente mais difícil, por causa da natureza do display, mas Frostbite também foi muito difícil pela lógica e regras gerais do jogo — algo que é extremamente fácil com linguagens de alto nível, mas apresentavam problemas reais quando escritas em código no 6502".

Até hoje eu não entendi bem os caranguejos polares, confesso.

Seja como for, nenhuma dessas dificuldades afetou o game. O resultado foi magnífico: bom desafio, diversão e originalidade. Com um quê de Frogger, a água é absolutamente inóspita e causa morte instantânea se Bailey cair. Blocos são escorregadios e pequenos, fazendo o jogador pular entre eles com perícia; alguns níveis têm blocos ainda menores, que mudam de largura; com movimentos laterais, não permitem que Bailey passe de um lado ao outro da tela, o forçando a voltar à terra firme — o que custa um bloco já conquistado. Nem a terra firme é das mais seguras: pode haver um amigo urso, que vai empurrá-lo fora do jogo com uma corridinha cartunesca em gráfico e efeito sonoro.

Criatividade

O jogo é alucinante, com uma mecânica rica e bem bolada. E Cartwright não tem ideia de onde veio a inspiração. "Nossa, eu nem me lembro. Já faz quase 30 anos...". Mas lembra como veio o esquema de cores do iglu e dos blocos: se Bailey pisa duas vezes num bloco, alterna a cor, e é preciso pisar na cor certa para obter mais um bloco.

Alternando as cores do bloco, o jogo obriga a não só pular como louco, mas ter uma estratégia.

"Essa foi uma das lógicas difíceis de que falei antes. Ela impediu que o jogador continue indo e voltando entre os blocos de gelo". Ela também adicionou uma dose de estratégia, que somada ao tempo limitado (representando a temperatura cada vez mais baixa), obriga o jogador a se "virar nos 30" para desviar dos perigos, manter a cor certa e assim fechar a fase. O jogador é empurrado o tempo todo ao risco, à decisão entre manter um ritmo seguro ou correr pela vida.

"Um dos truques que usei em Frostbite e que o fez funcionar tão bem foi o fato de, conforme o game aumenta de velocidade, os controles ficam mais sensíveis", lembra o programador. "Isto foi uma inovação no campo que agora conhecemos como UX [User eXperience, o design voltado à experiência do usuário]. Fez o jogador sentir como se estivesse ficando cada vez melhor e mais habilidoso enquanto o desafio aumentava”.

Embora não tivesse a mesma qualidade de arcades, um dos fatores de sucesso de Frostbite foi como ele se parecia um na experiência: desafio progressivo, controles espertos e jogabilidade afiada.

Para Cartwright, a chave foram os rigorosos testes:

"Frostbite foi um dos jogos mais testados que fizemos. A velocidade do game aumentou ao ponto de objetos se moverem e saírem da tela tão depressa que pareciam se mover de trás pra frente — tipo naqueles velhos filmes de faroeste, em que a roda da charrete está tão depressa que os raios parecem girar ao contrário. O incrível é que se você desfocar os olhos — deixá-los relaxados numa área e jogar por instinto — top players podem continuar jogando além do ponto em que a visibilidade consegue processar o que está acontecendo".

Lançado em agosto de 1983, Frostbite ganhou rápida popularidade. Mas Cartwright sentiu que o jogo não teve exatamente o reconhecimento que ele esperava, talvez pelo fim próximo do Atari. "Frostbite foi lançado bem na época que o mercado de games da Atari estava caindo, então qualquer plano de sequência rapidamente morreu".

Era a aposentadoria oficial de Frostbite Bailey, provavelmente para sempre.

Nosso amigo Bailey teve uma aventura breve, mas inesquecível na natureza selvagem.

Frostbite seria o último jogo de Cartwright no Atari 2600 pela Activision, mas ele continuou na companhia por muitos anos, trabalhando em títulos como Hacker I e II, antes de partir para a Accolade, em 1988, e depois Electronic Arts, em 1993, onde trabalhou nas séries PGA Tour e Tiger Woods.

Figura na indústria por décadas e mais que testemunha, mas agente da evolução, ele lembra com carinho dos jogos simples que fez para o 2600:

"As pessoas talvez considerem Megamania, Seaquest e Frostbite os três melhores games de ação feitos para o Atari 2600", diz com certo orgulho. "Eu com certeza não iria argumentar contra".

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

2 COMENTÁRIOS

  1. Nooooossaaaa!Quanta nostalgia lendo essa matéria...
    Caras,parabéns pelas matérias aqui produzidas!

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