Under Two Skies, meu projeto de visual novel em andamento

Um resumo do projeto e como você pode acompanhar e participar.

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Após décadas enrolando, decidi colocar em prática um velho desejo: estou desenvolvendo um jogo. Parece um sonho distante pra muita gente, tão impossível quanto ter uma Ferrari ou morar em Marte. Mas com o acesso fácil a tantos motores de design, não é mais assim e há bons jogos feitos até por uma única pessoa.

Aliás, falei sobre isso aqui no site. Monstros nasceram assim, como Minecraft e Stardew Valley.

Nos últimos anos, experimentei alguns engines como os quase universais Unity e Unreal, menores  e dedicados à gêneros como RPG Maker e Twine (aventuras em texto), mas resolvi usar o Ren'Py — leia "renpai" —, baseado em Python , linguagem mais acessível do que C# (base do Unity) e C++ (base do Unreal, embora mais centrado no uso de blueprints).

Além da acessibilidade, o Ren'Py é focado na criação de visual novels, histórias interativas com toques de gameplay. Pra quem não conhece, o estilo é insanamente popular no Japão, mas tem fãs pelo mundo. Para desenvolvedores amadores, com poucos recursos e conhecimento limitado, é perfeito — e cai como uma luva para o que quero fazer.

O jogo está 3% completo, se muito, mas já tem título: Under Two Skies.

Sobre o jogo

Enredo

Under Two Skies será um misto de visual novel com point-and-click, que bebe na fonte de muita coisa que joguei e até do que não joguei. Tem DNA de Full Throttle, Silent Hill, Life is Strange, e muito das minhas ideias em relação à história, estilo gráfico e de som.

A história se baseia num livro homônimo e embora tenha a mesma base, não será canônico e nem tradução fiel. O livro é meu e se tiver curiosidade, pode obtê-lo no Amazon e até ler os seis primeiros capítulos de graça.

O enredo gira em torno de John, jovem com dificuldades na vida adulta e um trauma: o desaparecimento da garota por quem era apaixonado na faculdade, a bela Lisa Ernst. Perturbado pelo namorado da moça — Peter Dyson, filho do popular xerife aposentado, Alan — de envolvimento no misterioso sumiço, ele deixa a mãe na pacata Oaskville e vai tentar a sorte em Portland, Maine.

A trama começa quatro anos depois, quando John recebe uma chamada do melhor amigo, o irreverente Derrick, que o faz voltar. O que se desenhava como um drama juvenil ganha tons de suspense metafísico quando John passa a ter sonhos lúcidos e a partir deles, descobre um poder inexplicável, que pode esclarecer o destino de Lisa e até salvá-la.

Histórico

A premissa de Under Two Skies é antiga, embora eu só tenha publicado o livro em 2025. O mote inicial: um homem que molda a realidade através de sonhos. Passei muito tempo brincando com a ideia sem ter o que fazer com ela.

A primeira vez em que pensei nisso foi lá pelo fim dos anos 1990, a partir do vídeo de Everlong, do Foo Fighters: o segmento em que Dave Grohl sonha com a esposa — comicamente interpretada por Taylor Hawkins — acossada por bandidos. Ele volta para a cama e dorme, para reentrar no sonho e protegê-la.

Dave Grohl em cena de "Everlong"
Dave Grohl em cena de "Everlong"

Sempre quis produzir um jogo e pelo caminho, fiz alguns experimentos, quase sempre por diversão e sem relação com aquela proposta. No começo dos anos 2000 (lembro de esboços datados de 2003, mas pode ter começado antes), projetei, em minha total falta de experiência ou recursos, um jogo de plataforma meio metroidvania que se chamaria Guitar Hero — uns dois anos antes do jogo musical da Harmonix.

Desenhei toscamente os personagens, escrevi uma história bolei até as mecânicas. Em resumo, os personagens usariam instrumentos musicais como armas, disparando algo como magias sônicas. O protagonista era um cara cabeludo que empunhava uma guitarra branca em forma de estrela.

Claro que não deu em nada. Software e hardware para criar games na época eram caros. O nível técnico requerido para tocar um projeto desses, ainda mais sozinho, avançado. Eu não tinha ambos.

Anos depois, comecei a fazer um RPG chamado Hypernova, usando o RPG Maker. Esse andou mais e cheguei a ter uma versão alfa com uns 30% do que pretendia. A história é influenciada por Star Wars, com fortes pontos políticos e sociais — um dos centrais é o antagonismo entre humanos "comuns" e descendentes de uma etnia com poderes especiais. A tensão social é raiz de uma revolução que leva à queda de um rei e ascensão um jovem governante que, vindo do meio estudantil, cheio de aspirações e promessas, torna-se um tirano.

Entre 2015 e 2018, aprendi muito sobre bases de game design trabalhando naquele projeto, mas por problemas pessoais, resolvi engavetá-lo. Eu já escrevia com frequência e administrava o Memória BIT, o que me tomava boa parte do tempo livre.

A vontade ainda estava lá, mas algo estava muito claro: criar um jogo, mesmo com as facilidades modernas, não seria fácil. Pior: eu não sabia mais que estilo de jogo queria criar, qual motor usar, e nem se encontraria um que pudesse aprender nas horas vagas.

Quase três anos depois, joguei Life is Strange e escrevi a análise. Mesmo com defeitos, tinha ali muito do que eu via como ideal: narrativa forte, personagens humanos (cheios de falhas e virtudes), menos preocupação com realismo gráfico e gameplay, e mais com criação de uma atmosfera guiada por visual e música.

Pensei: "É o tipo de coisa que quero fazer".

max final life is strange
Life is Strange virou uma chave na minha cabeça quanto ao tipo de jogo que queria fazer: não algo grandioso e que custaria milhões de dólares, mas emocional, narrativo e até certo ponto, minimalista. Imagem: Don't Nod/Square Enix.

Mas Life is Strange é um jogo de um estúdio grande, com orçamento milionário. Como produção, é absolutamente inacessível para amadores. Mas eu não queria e nem posso fazer um Life is Strange. Não é o orçamento ou a história em si: queria algo com aquelas qualidades.

Comecei a pensar de novo naquela história do homem que sonha e manipula a realidade, mesmo sem saber o que faria com ela.

Do livro ao game, do game ao livro

O que faria com a história? Tanto faz: só precisava colocá-la de vez no papel — ou na tela. Tirá-lo do mundo da possibilidade e transformá-lo em algo real. Entre o começo de 2024 e por quase um ano, escrevi vorazmente, noites e madrugadas adentro, até Sob Dois Céus tomar forma. Quando percebi, já tinha 300 páginas, e depois outras mais.

No começo, projetava uma história aberta, com vários finais. O formato de romance não era ideal e optei pela trama fechada, com um desfecho que me parecia o melhor — aquele é meu final preferido e certamente estará no jogo, ainda que não seja canônico no jogo. Ou talvez seja, não decidi ainda.

Sou muito crítico com tudo que faço, do tipo que beira o autodestrutivo. Mas gostei do resultado. É satisfatório ver seu esforço de tanto tempo chegar pelo correio à sua casa como algo físico, que você se aplicou e fez.

Não vendeu muito — sou péssimo com divulgação e redes sociais, e o que domina as vendas são romances sobre mulheres retraídas que conhecem garanhões sentimentais e improváveis, não sobre jovens depressivos com poderes — mas é aquilo: EU FIZ, não é mais um devaneio. Na estante de um sebo, esquecido numa caixa de coisas que ninguém lê, ou em qualquer outro canto, mas ele estará por aí.

capa do livro Sob Dois Céus
Ter nas mãos a realização de algo que um dia era só um sonho distante é a satisfação máxima para qualquer criador. Mas quero levar a história adiante.

Mas não estava satisfeito. Ainda queria vê-lo como jogo; ver os personagens, cenários. De novo, o objetivo esbarrava em "pequenos" detalhes. Posso me virar com programação, escrever código macarrônico/espaguete e obter algo minimamente funcional, mas não importa o quanto escreva, não sou artista visual. Não posso desenhar sprites de forma aceitável, nem cenários.

Mas entre fazer e não fazer, escolhi a primeira opção. É onde entra a IA.

Uso de IA

O avanço das inteligências artificiais generativas, tanto de texto quanto imagem, é preocupante para muitos setores, verdade. Muitos ilustradores, produtores de vídeo, tradutores e redatores JÁ PERDERAM emprego, mas há um outro lado nessa história: o de pessoas que estão tirando projetos da gaveta.

Imagine um Zé, que sonha em criar um jogo. Imagine que Zé tem algum conhecimento de uma área específica, mas trabalha como uma mula e não pode investir em seu sonho, porque não domina todas as áreas. Um único sprite pode custar de cinquenta até milhares de reais. Um programador? Muito mais por hora. Um revisor de script?

Você entendeu. O Zé, então, estuda as ferramentas de IA e preenche as lacunas, gastando uma fração do orçamento para concluir seu jogo. Não é perfeito, não é o ideal, mas é o mundo real. E não se engane: como diria o poeta, o gênio não voltará para a lâmpada. As IAs vieram pra ficar. Ou você se adapta e começa a usá-las, ou vai ficar chorando na multidão.

TL;DR: o próximo longo trecho é uma explicação sobre o uso da tecnologia, por que IA não cria nada e não é necessariamente roubo. Se você discorda e fim, talvez não deva seguir. Ou melhor: você é quem mais deve ler, mas não vai gostar.

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Por mais que eu entenda a revolta, a maior parte dos argumentos contra o uso de IA é mentirosa ou equivocada. O argumento válido, mais importante e menos notado, é o consumo de recursos, especialmente água.

A refrigeração dos sistemas que treinam e mantém IAs funcionam usam água e não é pouca, embora big techs abafem o dano, por motivos óbvios. Estima-se, por exemplo, que só o treino do modelo 3 do ChatGPT consumiu 700 mil litros de água.

Parece pouco, já que uma cidade como São Paulo consome BILHÕES de litros todos os dias. Mas inclua o gasto para manter servidores operando bilhões de prompts, para gerar a energia e fabricar equipamentos. Segundo o Google, o Gemini consome "umas cinco gotas" de água por solicitação. Se a média é verdadeira, imagine cinco gotas um bilhão de vezes, todo dia — e aumentando.

Ironicamente, segundo o Gemini, são 250 mil litros de água. Ou seja: sete milhões e meio de litros de água a cada mês.

Quanto nos impacta?

É suficiente para abastecer uma cidade de 50 mil habitantes por um dia. O problema é que tudo gasta água e se a gente for calcular, não produz mais nada. Um quilo de carne gasta inacreditáveis 15 mil litros de água para existir; só nesse bife de filé em seu prato, foram mil e quinhentos litros de água. Um ovo gasta quase duzentos litros para vir ao mundo — claro que estamos falando de todo o processo produtivo.

Companhias estão ativas na busca por um modo de resfriamento que não dependa tanto de água, talvez não porque se preocupam, mas porque é inviável a longo prazo. Mas não será rápido e elas não deixarão de gastar, porque alguém nessa cadeia está ficando muito rico — e não é você que colocou um banner "Stop AI" em sua rede social (que também gasta muita água), nem o desenvolvedor indie que usa IA para fazer sprites.

Esse é o ponto em que temos que nos perguntar: vou mudar o mundo pra melhor não usando IA? Grandes estúdios farão o mesmo? E mega corporações? E produtoras de nível internacional? Ou ingenuamente abrirei mão de pegar uma fatia disso, enquanto os mais ricos ficarão mais ricos?

A base do capitalismo é consumo de recursos e gostemos ou não, estamos nele até o pescoço — desde seu celular com silício da Noruega e fabricado em turnos de trabalho nada salutares na China, até os seriados super engajados da TV que produzem milhares de toneladas de CO2.

Qualidade do resultado e criatividade

Não sou juiz de ninguém, mas decidi, sem ressalvas morais exceto o discutido acima, usar IA para me ajudar a criar o jogo. E sim: quem vai criar sou eu, não a IA. Inteligência artificial não cria nada, ela só obedece aos comandos humanos.

Muita gente pensa, quando se fala em gerar imagens com IA, no que elas próprias fazem: abre o site, digita algo como: "Crie um retrato de um cachorro usando capacete florido e vestindo bota dourada, andando num monociclo em Marte". Repete isso n vezes, filtra o resultado e diz "olha que arte incrível EU criei".

Concordo que não há qualquer processo criativo nisso: é puro entretenimento. É a exata mesma diferença entre um fotógrafo que sabe como funciona seu equipamento, a luz, sombras, filmes, lentes; sabe como obter um resultado controlado, e o cara que comprou uma automática, segurou o disparador e escolheu a imagem mais interessante de um lote. Um deles é um criador; o outro, no máximo, um diretor de arte.

Exemplo prático: vários trechos do livro que descrevem o personagem Derrick, tanto em aspectos físicos quanto de personalidade:

"[...]um jovem de óculos buddy-hollyanos, sorridente." "Derrick, impulsivo, tinha as ideias malucas de aventura." "Seus pais — uma violoncelista e um violonista de delta blues, ambos amadores[...]" "De camisa verde de manga curta sobre camiseta preta de manga longa, Derrick era o mesmo moleque de sempre. Abriu um grande sorriso[...]" "Derrick contornou o balcão e o abraçou com a espontaneidade de uma criança[...]" "Não fosse pela barba rala, e não beberia em bares sem mostrar a identidade." "Deve tê-lo visto na TV ou algum fanzine — o outro mentiu de novo, com o sorriso arreganhado[...]" "O plano de Derrick para aquela sexta-feira era simples: jogar videogame até a noite e emendar com o fim de semana." "Seu pai dizia: "Se você é preto, precisa ser duas vezes mais honesto que os brancos para ser respeitado"."

Basta. Agora o design dele, feito com várias etapas de IA:

busto do personagem Derrick de Under Two Skies

Alguma dúvida de que é o personagem que EU criei? Ele estava na MINHA imaginação e foi para o papel quando escrevi o livro. Ele saiu do livro e tomou forma quando usei ferramentas que tinha à minha disposição.

Sim, tem falhas, como o botão duplo que não corrigi no Photoshop — essa é a geração "crua", como obtida após várias etapas que incluem coisas que usuários médios, que brincam com prompts aleatórios, nem sonham que existe: controles de pose, controle de estilo, img2img (uma regeneração baseada em outra imagem; no caso, um modelo que retoquei no Photoshop por cima de outras gerações), etc.

Não há argumento aceitável para afirmar que ele não é minha criação. O trabalho da IA substituiu não o meu, como criador, mas o do ilustrador que não posso pagar. Dizer que a IA criou esse personagem é como dizer que um ilustrador ou roteirista do estúdio de Maurício de Sousa cria a Mônica a cada história publicada, seguindo padrões do estúdio.

Os resultados atuais, 2025, com IAs generativas, podem ser bastante aceitáveis até para resultado final. Sabendo o que e como fazer, é possível criar um produto sem traços de uso de IA para a maioria, exceto que o criador, como é o certo, conte que usou IA. 

Como participar

O jogo está em fase inicial de desenvolvimento. Estou fazendo a parte estrutural, como efeitos visuais, mecânicas, menus, etc. Quero tudo mais ou menos definido antes de me aprofundar nos diálogos, para não ter algum imprevisto e precisar voltar fazendo correções.

quarto de john
O estilo gráfico do jogo é entre quadrinhos e pintura/aquarela. Aqui, uma das cenas iniciais, no quarto do protagonista que inclui sequência de point-and-click. A cena é criada primeiro, e depois cada detalhe é refeito em maior resolução — a maioria é interativa.

Até que o jogo tenha um build lançado, não espero ajuda — nem acredito que aconteça, afinal, não tenho nada pra entregar. Se quiser acompanhar, fique de olho por aqui e no projeto no Patreon; publico posts semanais com o andamento para quem dá suporte financeiro, que começa em cerca de 20 reais mensais. Quem participar terá acesso antecipado aos builds, participação em enquetes sobre design e nome nos créditos de acordo com a faixa de contribuição.

Outras faixas, metas e recompensas serão avaliadas. Por enquanto, quero focar no lançamento de um build inicial, ainda sem data.

Tem opinião, crítica ou só quer comentar? Mande aqui ou lá no Patreon. Lá também tenho alguns posts abertos sobre o projeto, caso queira saber mais.

Nota: como estou ocupado com o jogo, o MB está em segundo plano, ao menos quanto às minhas publicações de análises. O site não morreu e segue aberto à quem quiser participar, escrever, etc.

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