Análise Shenmue III: com os pés no passado e a cabeça no presente

Imagine que você ganhou uma máquina do tempo. Com ela, poderá trazer um item do passado e melhor ainda: de uma linha do tempo paralela, porque na original, ele nunca existiu.

Confuso? É a sensação ao jogar Shenmue III. Um produto de outro tempo, que magicamente nos foi trazido "mais ou menos" adaptado aos tempos modernos.

Mais ou menos? Como um produto do passado, ele segue fielmente padrões que ajudou a criar mas não existem mais porque foram se mesclando, adaptando e melhorando. E até melhora alguns: foi modernizado onde não poderia deixar de ser e evoluiu em determinados aspectos, mas tomando como referência a si mesmo.

É como se o time de produção tivesse recebido hardware e software atuais para trabalhar em 2001, sem conhecer nada do que existiu em game design desde então. O resultado é Shenmue III.

Como disse Suzuki, a velha magia de Shenmue está de volta em cada paisagem, personagem, diálogo. E até no que hoje pode ser considerado falha de design. Bem-vindo de volta, Ryo (e calma, ele ainda tem a jaqueta marrom).

Para fãs da série e da chamada "identidade Shenmue", como diria o criador, nada poderia ser melhor. Se é a experiência que você ansiava desde 2001, levante as mãos e diga "Ave, Suzuki!", suas preces foram ouvidas. Mas se medido com réguas atuais, o terceiro capítulo da saga de Ryo tem aspectos negativos, mesmo para um jogo "quase indie".

Como um sonho do passado

Veteranos sabem o que Yu Suzuki [biografia] quis dizer com "a peculiar experiência" que o jogo proporciona. Mesmo diante de outros títulos em mundo aberto, Shenmue tem características pessoais; o pacote que faz dele o que sempre foi. A incrível ambientação oriental. A busca por detalhes ao seu redor – numa progressão tão cadenciada e quase contemplativa, que parece chata para alguém olhando de fora mas mantém o jogador envolvido. A trilha sonora, os diálogos quebrados e pouco fluidos. Os Quick Time Events. Os arcades e itens colecionáveis. A empilhadeira.

Shenmue III resgata tudo isso. A sensação logo ao iniciá-lo é: estamos exatamente onde paramos em meados de 2001. Tanto tempo depois, Shenmue coloca você de volta num lugar conhecido. A diferença, felizmente, é a evolução técnica entre o Dreamcast e plataformas atuais como PC e PlayStation 4 (joguei no PC).

Para ninguém ficar perdido, há vídeos contando um pouco dos capítulos iniciais da franquia. Se for novato nesse universo, recomendo que os veja. Mesmo assim, talvez você fique perdido no começo entre pessoas que não parecem ir com sua cara, várias portas à bater e Shenhua, a fleumática (pelo menos até a cena do interrogatório...) companheira de jornada de Ryo.

Shenmue III bêbado

Como num RPG, há muitos NPCs e praticamente todos têm algo a dizer. Os diálogos não são dos mais naturais, ainda que transmitam informações. É estranho ver um personagem o cumprimentando como se estivessem se falando pela primeira vez no dia, mesmo que tenham conversado minutos antes. A conversa raramente flui – problema antigo da série.

Com meia hora circulando pelo vilarejo inicial, a exuberante e pacata Bailu, conversando e batendo em portas, você terá ouvido as interrogações e interjeições de Ryo e interlocutores dezenas de vezes. "Arimasenka?", "So desu ka", etc... Não que tenha sido acidente de design. Por mais ultrapassadas que sejam essas escolhas, são características moldam o Shenmue típico. Seria mais questionável num produto novo, mas duvido que Suzuki mude o estilo em eventuais novos capítulos.

Joguei com áudio em japonês e legendas em português (sempre detestei a dublagem em inglês de Ryo), mas sei que muita gente vem criticando os diálogos abismais em inglês. Como diria Glória Pires, "não sou capaz de opinar", mas as legendas em português tem adaptações exageradas. Várias vezes vi personagens dizendo um simples arigatō traduzido em sentenças absurdas como "Você é demais, valeu!". Ou Ryo mandar um simples sou ka ou sodesu ka virando uma frase nababesca tipo "Oh, sério? Obrigado por me informar".

Isso me incomoda porque Ryo é um carinha sisudo e de poucas palavras, daí inventam respostas desnecessariamente elaboradas. Infelizmente não sou fluente em japonês (nem fluente e nem intermediário, que fique claro), mas me faz pensar quanto do script original foi mutilado por quem fez a regionalização.

Shenmue III Chengxu Feng
Chengxu Feng em Shenmue III

Conforme o jogo progride, você se sente mais e mais mergulhado em Shenmue. Entre fuçar gavetas e conversar, a história vai se deslindando, passando pelas atividades básicas de Ryo. O sistema de relógio permite avançar até a hora de eventos marcados, felizmente – no primeiro da série, longos períodos até poder realizar algo importante foi um dos pontos criticados.

Ao contrário de certos jogos modernos, em que eventos canônicos acontecem a qualquer hora do dia, alguns em Shenmue III ainda podem ter intervalos longos. Exemplo: você vai procurar um fulano e descobre que a pessoa só estará em casa à noite. Se não quiser esperar treinando, explorando, jogando, trabalhando (ou interrogando pessoas sobre algo que já sabe), o salto é essencial para não tornar o jogo insuportável. Essas pausas, contudo, funcionam no intuito de uma narrativa mais realista.

shenmue III soco de uma polegada
Soco de uma polegada: os treinos são importantes para o avanço de Ryo, mas se tornam cansativos depois de um tempo. Se proposital ou não, só Suzuki para dizer.

Mas provavelmente você não vai querer – e nem deve – sair saltando sempre. Deixe um tempo para exercícios simples que melhoram os status de luta do protagonista. Eles variam de divertidos como as lutas, à mais completa burocracia de apertar um botão no tempo certo, como a "posição de cavalo" ou "soco de uma polegada". Não fosse pela importância na evolução do combate de Ryo e seriam dispensáveis.

Talvez Suzuki quisesse essa sensação de desgaste, de se empenhar em algo que apesar de repetitivo e até chato, tem uma inevitável recompensa. Lembro dele citar essa abordagem quando questionado sobre as tarefas cotidianas dos primeiros capítulos. Pode ser o caso de novo.

A simplicidade das tarefas está também nos minigames por dinheiro ou itens. Como a pescaria, em que você basicamente aperta um botão para lançar a isca e depois gira o analógico para ativar a carretilha. Ou nos jogos mecânicos como o Smart Ball, ou ainda o "Flor, Pássaro, Vento e Lua".

Assim, mesmo havendo uma variedade considerável de atividades, muitas dependem de sorte com interações muito simples, de um botão, e acabam ficando maçantes. De novo, não que seja novidade: Shenmue sempre teve dessas e jogos posteriores importaram a proposta – como os empregos de Fable e as atividades paralelas de GTA.

A narrativa é o elemento fundamental de Shenmue, com várias cutscenes, umas curtas, outras nem tanto, que fazem você colocar o controle de lado e ficar assistindo. Várias não podem ser puladas na primeira vez, mas caso as repita (como ao perder um combate difícil ou usar uma gacha duas vezes no mesmo dia), poderá saltar apertando X. Outras, de repetição diária como Shenhua indo dormir ou acordando Ryo pela manhã, podem ser saltadas segurando B, como jogos recentes.

Tudo é regido pelo tempo: ao voltar para casa à noite, você pode jogar conversa fora com Shenhua só até a hora de dormir. Depois o jogo o obriga a ir para a cama, não importa o que esteja fazendo. Uma pena, adoraria passar uma noite no quintal apreciando o belíssimo céu noturno. Como é tradicional da série – e foi uma das pioneiras nisso – o ciclo circadiano/social dos NPCs funciona: estarão trabalhando na ordenha de animais de manhã e começo da tarde, no bar pouco antes de anoitecer, e se recolhendo ao anoitecer.

shenmue III fenhua trabalhando
O jogo manteve uma das características que ajudou a criar em games: o sistema de tempo, com personagens que seguem ciclos do dia para suas atividades.

Falta algo. Quase todas as portas podem ser batidas e pessoas abordadas, mais até do que em jogos recentes. Com tanta variedade, nem sempre isso é recompensador de forma material. Você vai passar tempo mexendo na mobília dos lugares apenas vendo objetos que não tem função, para de vez em quando achar algo curioso ou importante.

Por exemplo? Pode não ter função prática, mas o fã vai gostar de encontrar um belíssimo templo dedicado à memória dos doadores do projeto, incluindo uma estátua caricata de Yu Suzuki no meio salão. Ou um Sega Saturn numa gaveta, para um surpreso Ryo exclamar "Ei, isso é...", talvez lembrando de seu console em Yokosuka.

Se fidelidade às raízes é bom, manter tudo como era significa ter coisas ótimas em 2001, mas hoje ultrapassadas. O controle não é tank como os primeiros jogos, mas o típico movimento "locomotiva" de Ryo é talvez o pior que restou. Quer dizer, em relação aos originais melhorou e muito, mas andar por certos ambientes com obstáculos mais estreitos chega a ser ridículo. Não houve grande alteração nisso, o que significa se irritar um pouco até pegar prática e sentir mais naturalidade nos movimentos do rapaz. Subir ou descer escadas é estranho e travado, com uma desnecessária mudança na câmera.

Ainda assim, a sensação é que pelo tempo e orçamento restritos – não é uma produção super milionária – o universo de Shenmue III deixa um grande potencial não-explorado. Posso imaginar tantas quests e eventos começando naquelas longas horas revirando gavetas...

De alto a baixo

O design geral de Shenmue III é igualmente peculiar, me parece o termo exato. Não entenda mal: para um jogo com orçamento limitado, é maravilhoso. Mas enquanto Ryo, Shenhua e outros personagens centrais exibem um visual mais "humano", ainda que estilizado, vários NPCs são caricatos até dizer chega.

shenmue III estilo npcs
Há uma grande variação de estilo entre os NPCs de Shenmue III, indo de algo mais realista ao caricato, lembrando um pouco o design de Street Fighter IV e V, por exemplo.

É como um choque de mundos, de estilos diferentes. Mãos enormes, obesos bonachões e idosos que não escutam ou enxergam bem cumprem papeis em clichés inevitáveis, que estão em Shenmue desde sempre. Há certa irregularidade também nas animações faciais. Enquanto protagonistas são bem articulados, às vezes encontramos um NPC cuja boca se move como a de um boneco mal dublado.

Também nota-se repetição de modelos, especialmente ao deixar Bailu e começar a vasculhar os inúmeros pontos nos arredores do Hotel Niaowu. Uma moça (mesma da casa de troca de prêmios em Bailu) reaparece à exaustão com variados estilos de cabelo e roupas. Num jogo AAA seria imperdoável.

O melhor no visual de Shemue III são os cenários. A natureza do interior da China desfila com grandes campos floridos, montanhas, rios cheios de peixes e trilhas. Há riqueza de detalhes na vegetação, com insetos e plantas interativas; coletar vegetais é parte das atividades de Ryo.

Se alguém espera cenários hiperrealistas, contudo, vai se decepcionar. Há uma estilização que faz tudo um tanto onírico. Você vê aqueles animais, o céu, as casas, e tudo é realista, mas realista como um sonho, se faz sentido pra você. Ao sair de Bailu você encontra belíssimas construções, como templos elaborados e ruas cheias de comerciantes, além do porto.

shenmue III templo
Os cenários naturais e construções de Shenmue III rendem belas fotografias, especialmente se você é fã de cenários orientais.

Mesmo bonitos, parecem faltar efeitos de ambiente: raramente você vê neblina e a iluminação não afeta tanto a atmosfera, exceto pela queda de luminosidade. A própria chuva é difícil de ser percebida de cara. Você nota que começou a chover pelo barulho e em seguida, aí sim bem perceptível, tudo fica molhado, com reflexos e poças d'água. Efeitos de fogo e iluminação noturna são muito bonitos.

O céu, especialmente o noturno e estrelado, é um espetáculo, com falhas mínimas como aves iluminadas demais. Não se espante caso resolva passar algumas horas observando o cair da noite e os efeitos de passagem do tempo.

Os HUDs e menus funcionam, apesar de simples. O HUD do mapa sem dúvida ajuda mas não é tão intuitivo quanto em jogos atuais. Se está acostumado com games recentes e adora explorações se guiando por marcações no mapa, prepare-se para ficar desorientado até decorar caminhos (ou começar a consultar as placas da área).

Shenmue o obriga a explorar e conhecer os lugares, não é o jogo que enfia roteiros no seu nariz. Quando alguém diz "Acho que vi esse sujeito num bosque próximo daqui", a câmera muda e às vezes Ryo vira automaticamente naquela direção. E só, você que se vire. Pergunte às pessoas onde é o bosque e elas lhe dirão; não haverá um ponto piscando no seu HUD escrito "bosque". Típico de outros tempos.

Muito a fazer, pouco tempo

A velha agenda de Ryo está de volta e é um alívio diante de tantas pistas que ele vai coletando. Você vai se pegar consultando anotações sempre que estiver concentrado numa tarefa e se meter em outra quase por acidente. Há tantos diálogos quanto se pode imaginar e apesar da trama pesada, vários são cômicos.

A maioria do humor está em traços de personalidade: a mulher assustada com estranhos, o gorducho bonachão, a fofoqueira de meia-idade, o bêbado pedindo uma garrafa de licor e o vovozinho grosseiro. Esses estereótipos não tinham questionamentos em 2000, mas hoje uma produtora de elite pensaria dez vezes antes de usar.

Continua divertido ver a reação das pessoas mudando em relação a Ryo. No começo as respostas serão desconfiadas e formais, algumas estúpidas. Afinal, ele é um japonês estranho num pequeno vilarejo no interior da China que acabou de ser alvo de bandidos. Quando se torna figura rotineira, vão se abrindo e surgindo novas conversas, pistas, caminhos e eventos.

Há diálogos descobertos só após falar várias vezes com a mesma pessoa. Em Bailu, fofoqueiras tentam arrancar de Ryo qualquer informação sobre um possível romance entre ele e Shenhua. Uma delas manda um direto "Por que não vem morar comigo?" Ryo, como de costume, continua reagindo de forma alheia e estranha às investidas femininas – lembre-se que ele é só um pós-adolescente preocupado com sua vingança.

É preciso falar bastante com os transeuntes, às vezes mais de uma vez para obter uma informação ou iniciar um combate. Os eventos paralelos aprofundam sua relação com o povo local. Como quase todos os NPCs têm algo a dizer, salvo exceções, você vai ouvir muita coisa se realmente quiser e gostar de papo. Muitos são irrelevantes, só dando uma direção a Ryo rumo ao destino que realmente importa e alguns (especialmente crianças) não saberão o que dizer.

shenmue III npc dialogo

O negativo é que apesar da liberdade, Ryo estará focado em uma tarefa por vez. Você não pode escolher o que perguntar; o que é compreensível pela variedade de personagens, imagine bifurcar todos esses diálogos? Mas uma vez procurando Sujeito X, e Ryo vai incansavelmente perguntar sobre Sujeito X a todos que cruzarem seu caminho. No passado ele já fazia isso, perguntando sobre marinheiros, lembra?

Raras exceções são os personagens que ativam quests paralelas, quando um ícone amarelo pisca no HUD dos botões. Mas como não é possível perguntar nada além da busca relativa à trama principal, você pode ficar perdido. Eu mesmo acabei não devolvendo o brinquedo ao menino de Bailu, não encontrando a "casa assombrada" e não achei o cogumelo pedido por Ren, porque simplesmente não os encontrei e não sabia onde conseguir informações. E não quis ficar mais tempo procurando.

As atividades em geral remetem aos jogos anteriores, mesmo quando são novas. E como o tempo passa rápido – pelo menos foi a sensação que tive – você precisa dosar bem o que fazer, ou vai passar tempo apreciando detalhes e falando bobagens com pessoas em vez de melhorar seu kung fu, vender itens que coletou ou trabalhar.

O progresso da aventura é freada em vários pontos, ao que parece de propósito para forçar Ryo a melhorar. Pode ser através de um oponente muito forte ou de um item que custa bem caro e você vai precisar juntar a grana ou outro método para comprá-lo. Aí vem a rotina: trabalhar, treinar, etc.

Shenmue III Zhen Wei
O treinamento com Zhen Wei é uma das formas de aprimoramento de Ryo. E como há longos intervalos entre os eventos-chave, você terá tempo de sobra para treinar.

Ao progredir, são tantas possibilidades abertas que você vai se sentir como na vida real: com pouco tempo e muito a fazer, sabotando certas atividades em favor de outras ou de progredir na linha principal. O calendário exibido a cada manhã, com uma tarefa da agenda, potencializa essa sensação de tempo passando.

Lutas ok

O sistema de combate deve agradar fãs antigos e novos, desde que não esperem um Virtua Fighter – erro de interpretação de muitos fazem desde o primeiro Shenmue... A evolução do personagem, combinada com o aprendizado de novas técnicas, faz com que as lutas sejam progressivamente mais divertidas.

A possibilidade de criar atalhos para técnicas num botão configurável durante o combate ajuda demais, sem torná-los fáceis. Não deixe de visitar o Rose Garden, um beco com cara de kumitê de Bloody Sport onde lutadores de vários duan prontos para ajudá-lo a melhorar (ou socar sua cara). E melhor, as lutas ainda rendem uma boa grana, evitando que o jogador fique preso em tarefas chatas e pouco rentáveis como cortar lenha.

Felizmente há vários pontos que permitem lutar à vontade, seja com a obcecada e bonitinha Zhen Wei ou os vários níveis de desafio dos templos. Não dá para tratar as lutas como momentos de "esfregar botões" e se não tiver itens para se recuperar ao enfrentar alguém mais forte, é certeza de apanhar.

Recém-chegados devem apanhar até do "Lobo Vermelho", o mais fraco dos estudantes do dojo em Bailu, mas não tem a menor importância: o que vale é se acostumar às sequências de botões, como se esquivar ao redor do oponente e bloquear os ataques. Alguns combates são inesperados, e na dúvida, um save antes de chegar a um local novo evita começar uma sem ter a energia no máximo (sempre se alimente antes das lutas ou a derrota é quase certa).

shenmue III tigre dourado
Lute contra oponentes cada vez mais técnicos para o progresso de Ryo.

os lances em QTE são realmente rápidos e exigem grande reflexo para serem respondidos de primeira. Ainda bem que, mesmo ao errar um botão (e vai errar, acredite), você volta ao começo da sequência quantas vezes precisar. Essa velha mecânica trazida de volta deixa uma sensação menos "injusta", porque alguns eventos aparecem de repente e são muito rápidos mesmo.

Imersão

A trilha sonora de Ryuji Iuchi é pura imersão. Graças às melodias que parecem saídas dos primeiros capítulos, você se sente assistindo um filme temático. Apesar de curtas, elas se encaixam com perfeição nos ambientes, algumas tanto que você se sente meio nostálgico curtindo a paisagem e escutando aquilo.

Mas pra mim inexplicável é a escolha de, em vez de criar faixas sem emendas, todas terem determinada duração, com introdução e final óbvios, assim rolando continuamente com um chatíssimo silêncio entre cada execução. Tenho certeza que não seria difícil criar partes com arranjo sequencial, por assim dizer.

Como disse, a história contada é a estrela em Shenmue III e não qualquer outro aspecto da jogabilidade. É um mundo aberto? Pode ser, mas lembre-se que se não terminar o jogo num determinado prazo – felizmente longo o bastante para não ter que se preocupar com isso – toma bad end. Quem gosta de se envolver com o enredo não vai conseguir largar antes de conclui-lo. O final, como era de se esperar, não é o final, longe disso...

Esse foco na história é ainda mais gritante do que nos capítulos anteriores. Enquanto o Shenmue inicial tinha a maioria desses elementos como um conjunto técnico inovador e impressionante, que deixou marcas para sempre na indústria, Shenmue III... Bem, não traz nada novo. Enquanto QTEs e minigames tinham grande apelo no início dos anos 2000, hoje são algo básico e mais importante: foram feitos como evoluções de Shenmue 2, não de games que evoluíram inclusive dele desde então.

shenmue III bilhete arcade
Sem inventar: atividades como os jogos de arcade estão de volta, mas Shenmue III não tenta criar muito, só trazer a série ao ponto em que parou.

Suzuki e time não fizeram a menor questão de ir a algum lugar novo em tecnologia ou design, mas trazer a franquia de volta e continuar a história. Sem o impacto técnico, todo o peso fica para a nostalgia e a  história.

No fim, Shenmue III é quase como o capítulo de um seriado que você termina de assistir e adora, mas fica com mais dúvida que antes, ávido pela próxima temporada que só Deus sabe se virá. Tipo assistir Lost, em que cada temporada resolvia uma dúvida e criava outras tantas. Ou como se Suzuki quisesse trazê-lo de volta aos poucos, sem amontoar informação.

Um interlúdio que muita gente vai odiar porque, mesmo sob (e toc, toc, toc, batamos três vezes na madeira) o risco de nunca existir um Shenmue IV, o criador segue firme em seu programa. Ele não faz concessões, não se apressa em entregar tudo. A história segue como ele planejou – e jamais será concluída de forma satisfatória antes de um quinto jogo, segundo o próprio.

Para quem passou 18 anos inconformado com Ryo preso numa caverna para provavelmente nunca mais sair, é ótimo. Já quem não tem vínculo com as primeiras partes ou queria mais conteúdo da trama, talvez ache lento demais pro seu gosto.

Métricas do tempo

Se você exige que Shenmue III seja um jogo moderno, revitalizado, diferente, capaz de ir onde produções de dezenas de milhões de dólares vão e de alguma siga fiel aos dois primeiros, nem perca tempo. Continue com as memórias ou prepare-se para lidar com a mesma jogabilidade, o mesmo ambiente, estilo musical. Para o bem ou mal, é a mesma experiência dos capítulos iniciais com toques de modernidade, sempre usando como referência a própria série.

shenmue III chegada ao porto

Para quem nunca botou os pés nesse território e foi criado sob critérios da sexta geração em diante, Shenmue III talvez pareça bonito e (se interessados pela história) cativante, mas saído de um museu.

Jogar Shenmue III é como jogar em HD um game vindo de uma máquina do tempo, com todos os acertos e erros de design sua era. Você vai vagar em busca de respostas, lidar com movimentos menos ágeis que o padrão atual, com diálogos formais e até pouco naturais, com minigames repetitivos e ações mundanas como se alimentar, abrir gavetas, examinar objetos, seguir orientações e dormir na hora certa.

Porque o Shenmue que adoramos é isso. Se for o que quer, será a experiência mais nostálgica e gratificante dos últimos anos.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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