Análise – Life is Strange compensa falhas com excelentes enredo e personagens

A primeira impressão não é das mais promissoras. Imagine uma obra de ficção cujo cenário é um colégio estereotípico dos Estados Unidos. Tem hipster, atletas que praticam bullying contra o rapaz obeso e retraído, a patricinha mimada insuportável, festas VIP com DJ e o inspetor corta-barato. Tem diretor rígido, colega religiosa, skatista chapadão, professora sábia, zelador esquisito.

Deve ser um saco, né? Tem como escapar da insofismável conclusão?

Apesar desse pano de fundo que apita até os mais permissivos alarmes, Life is Strange passa longe de ser um dramalhão adolescente ordinário. Usando o gancho de viagem no tempo, ele desenvolve uma das histórias mais cativantes que já acompanhei em videogames.

É quase impossível escapar do envolvimento emocional, com a curva se acentuando nos episódios finais e jogando você num triturador no derradeiro.

borboleta life is strange
Efeito Borboleta: o enredo de Life is Strange faz uma mistura homogênea de várias fontes.

A variedade de personagens com traços humanos complexos, mesmo nos "vilões", deixa o jogador sobre o fio da navalha. Entre atividades como tirar fotos, investigar objetos, conversar e ler o diário da protagonista, você nunca sabe ao certo a consequência de um ato. Mesmo que a habilidade de mudar à vontade o desfecho de um encontro deixe a impressão de controle excessivo, o fato é que a desenvolvedora Dontnod não mentiu: cuidado com o que faz (ou não faz), pois terá reflexos no futuro. Alguns sem conserto.

Se pensou em Efeito Borboleta, ponto. A referência é inegável, não que a Dontnod tenha tentado esconder. Uma mudança simples na vida de alguém, como avisá-la que será atingida por uma bola ou uma palavra de apoio, inicia um efeito em cascata que a termina em morte ou salvação. Quanto maior a mudança, maior o efeito colateral e nem todos são positivos, mesmo que a intenção da protagonista Max Caulfield seja nobre.

Há referências à Donnie Darko, Twin Peaks, Twilight Zone, etc. Life is Strange flerta com coisas assim e aborda temas como suicídio, isolamento social, religião e perda familiar, mas não tenta ser sombrio. Ao contrário: exceto por uma seção bizarra do episódio final, a jornada de crescimento é bucólica, nostálgica e contemplativa de um jeito prosaico, bonito.

Há falhas, mas se tomá-las como "licença poética", a viagem será sem volta.

Bucólico

Life is Strange é simples, mas muito agradável em termos visuais. Acertaram no design estilizado, caprichando na história sem preocupação com artifícios espalhafatosos. A pequena Arcadia Bay, cidade fictícia do Oregon, parece uma pintura, quase onírica. Não poderia ter funcionado melhor, servindo como luva ao clima de nostalgia e meditação de Max.

life is strange max onibus
Max e seu fone de ouvido: música tem papel importante na atmosfera de Life is Strange.

A jovem de 18 anos volta à cidade natal para estudar na Blackwell Academy. Na bagagem, a insegurança, sonhos e saudade de velhos conhecidos. Especialmente da melhor amiga de infância, a rebelde Chloe Price. Antes inseparáveis, distanciaram-se quando Max foi com os pais para Seattle, pouco após uma tragédia na família de Chloe. Mas nunca se esqueceram e um incidente as une de novo.

O sol da tarde, céus e iluminação abusam de enriquecer as cenas. As dramáticas são potencializadas pela tonalidade, como a deprimida Kate Marsh sob chuva e a piscina noturna, em tons de azul. A praia da conversa entre Max e uma Chloe debilitada em alguma linha do tempo alternativa, tonalizada em laranja, uma beleza. O tornado é sempre uma aparição assustadora (com ajuda de ótimos efeitos sonoros).

A estilização fez com que elementos menores tivessem menos cuidado. Fotografias e cartazes periféricos são um rascunho. E na festa do Vortex Club, estudantes na piscina não são modelos 3D e sim algo como um GIF animado. Compreensível, mas o conjunto seria ainda melhor com tais pequenos detalhes elaborados.

A atmosfera é complementada de forma impecável pela trilha sonora. Faixas de indie rock e folk, que incluem Jose Gonzáles e Syd Matters, entre outros, tornam a narrativa ainda mais pungente. É um dos poucos (primeiro?) jogos em que gostei de sentar em algum canto só para apreciar o momento, fosse no campus da Blackwell, no quarto de Chloe ou no barco abandonado.

Ou na primeira oportunidade, tocando violão no quarto.

Não tem objetivo algum nessas pausas além de história. Sem evolução de personagem ou recuperação de HP, nada. Só parar e entrar na pele de Max, saber o que ela está pensando e sentindo. Inviável em jogos focados em ação, mas que em LiS é perfeito.

O bater de asas

Ingênua e íntegra, Max é uma personagem fácil de gostar. Tímida, parece fria e distante para colegas. Mas absorta em pensamentos que só o jogador vê, seu mundo interno revela uma pessoa sagaz, humorada e caridosa.

Descobrindo a vida adulta, ela recebe um presente – ou maldição? – do universo. Além de ter visões vívidas com um tornado colossal perto da cidade, é capaz de voltar o tempo, como quem rebobina uma fita. Mais tarde, também pode reviver e modificar momentos registrados em fotos.

Como a moça cujo sonho é ser uma grande (e discreta, se possível) fotógrafa, aproveitará tal poder? Salvando o mundo. Pelo caminho, ela percebe que muito de seu mundo é Chloe e vice-versa. As "Super Gêmeas", como ironiza o traficante Frank, completam-se.

chloe e max final life is strange
Aos poucos, Max percebe que muito de seu mundo é Chloe. E que seus destinos devem estar ligados por alguma razão.

Contra elas, o grande vilão de Life is Strange: o tornado. Tudo gira em torno dele – sem trocadilho, diria Max. Os saltos no tempo, os sacrifícios em várias existências e a busca desesperada por manter Chloe a seu lado, no fim das contas, começam e terminam no cataclismo iminente de Arcadia Bay.

Antes do clímax, porém, você lida com a consequência de ações que causam ou evitam tragédias. O desfecho vem numa escolha aparentemente simples e fadada a acontecer desde o casual (será?) evento no banheiro. Lembra da expressão "O bater de asas de uma borboleta no Brasil pode causar um furacão no Texas"?

Aparentemente, porque apesar da aceitação por Chloe do que parece ser seu destino, foi tão difícil que pausei o jogo e fiquei uns 20 minutos consternado, sem saber o que fazer. É nisso que o enredo mais acerta. Pode-se contestar o mérito de um e outro final, mas Life is Strange o envolve, permite que você escolha e argumente na defesa da sua decisão.

Nenhuma parecia plenamente certa ou errada. Vilões e heróis são mais ou menos ambíguos. Quase todos, pelo menos. Você se sente num livro de Agatha Christie, em que qualquer um pode ser o "criminoso". Antagonistas têm uma faceta sensível, que se não justifica, explica porque são cuz0es. Heróis revelam fraquezas como medo, ciúme e raiva.

victoria life is strange
A mimada / insegura Victoria Chase: quase não há vilões e sim pessoas com defeitos e qualidades.

Nathan Prescott é um psicopata ou um rapaz com problemas familiares? E Madsen, um neurótico descontrolado ou alguém preocupado com a segurança de todos? A própria Chloe mostra-se egoísta e ciumenta em algumas ocasiões, como ao tentar convencer Max a surrupiar o dinheiro do fundo de caridade e não telefonar para Kate. Max, por razões diversas, mal respondia aos contatos de Chloe.

Todos são humanos e falhos. Não acredite em papéis herméticos. A incerteza entre aliado ou inimigo se estende por quase toda a história. Intenções e natureza só desabrocham lá pelo início do episódio final, apesar de pistas que pareciam estar lá o tempo todo.

Como no cinema

Você é rapidamente pescado pela história de Max e Chloe. Talvez por conhecer a fase de transição da adolescência para a vida adulta, independente da idade. Ou por já ter imaginado como seria sua vida com escolhas diferentes no passado. Ou quem sabe por se identificar com os dramas retratados.

O jogo abusa de fotografia, com cores, luzes, desfoques e ângulos de câmera para narrar como num filme. O trabalho de voz é preciso e o enredo (que se passa em outubro de 2013) explora a cultura de seu tempo, com gírias, referências da internet e memes. O script, de franceses, capta a essência da vida adolescente na América. O "filme" tem lances particularmente inspirados e inesquecíveis.

A relação entre Max e Chloe é o principal. São partes que se completam, para sempre unidas. Namoradas, parceiras? O roteiro não determina, você decide. Indiscutível é o amor entre elas. A relação será o que você pensar, mas seja qual for, o amor genuíno leva a um dos finais mais dolorosos já vistos em videogames.

chloe e max linha de trem life is strange
A dupla indissolúvel. Praticamente acabei de jogar e já estão num lugar especial na minha coleção mental de personagens favoritos.

O que parece certo para o coração, soa errado para a razão, mas a razão também não parece certa ou justa. A escolha é sua. O jogo não tenta forçá-lo numa direção, mas vi um dos finais como o "verdadeiro", mais elaborado.

Em vários pontos, senti dúvida, aflição e recompensa antes e após decisões. A cena de Kate foi tão perturbadora que fui dormir inconformado. Não me importa se são personagens em Unreal Engine, com dublagem e um enredo: era quase como se alguém real tivesse feito aquilo. Dei uma de Max: reiniciei o segmento no dia seguinte e corrigi as coisas. Ainda lembro da tensão em dar respostas inadequadas e ver o mesmo desfecho. Fiquei aliviado quando tudo acabou bem.

Um dos segmentos mais comoventes acontece entre o terceiro e quarto capítulos. Max enfrenta uma consequência terrível de tentar alterar o passado. A Dontnod foi cirúrgica demais na versão vulnerável de Chloe e o drama da família. Lacrimejei real.

Há uma série de elementos enfatizando o misticismo, como espíritos animais, cores e metáforas (borboleta azul, cabelo azul, etc), eventos climáticos e a própria habilidade de Max. Nenhum deles é explicado. O que são as duas luas, o eclipse, os animais morrendo? Por que Max ganhou o dom? Por que o espectro de corça não é afetada pelo tempo? O jogador é deixado com suas deduções.

Para um adventure tão focado em história, Life is Strange oferece uma quantidade decente de interações com o objetos, animais e pessoas. Não tem nada cabeçudo demais, que te faça queimar os neurônios. Até o segundo episódio, os puzzles são banais, praticamente um treinamento. Alguns posteriores precisam de várias etapas de observação e rewinds para achar o movimento necessário.

max caulfield sala numeros life is strange
Os puzzles de Life is Strange ficam progressivamente mais complexos, mas nada é muito difícil.

Perto do fim, cenas de pesadelo bizarras dão uma virada inesperada. Após quatro capítulos de investigação e diálogo como base da jogabilidade, a sequência de stealth é simples mas perturbadora.

Teoria do caos

O final de Life is Strange pode ser decepcionante para alguns. Ou melhor, os finais. Apesar da carga emocional (prepare-se para chorar muito se for sensível), informação demais fica para a imaginação do jogador completar. Vamos tentar desenvolver sem dar todos os spoilers...

Max e Chloe se veem diante de duas opções quanto ao tornado. E deduzem que só uma o fará desaparecer. Como Max passou por horrores para estar ali, Chloe entrega a escolha em suas mãos, mesmo sendo diretamente afetada por ambas.

Nunca se esclarece o mecanismo do fenômeno. Foi uma energia universal tentando reequilibrar as coisas? Nesse caso, por que Max ganhou o poder, pra começo de conversa? Foi Max usando o poder que bagunçou o clima? Como?

Foi literalmente o bater de asas de uma borboleta? Sendo a borboleta azul a resposta, como imagino, ainda ficam lacunas para você preencher. A borboleta é sobrenatural? Após a última viagem no tempo, Max ainda parecia capaz de evitar o evento do banheiro, sem usar os poderes. Mas sequer cogita a relação entre borboleta e tornado.

Aceitemos que ela estava certa e nada funcionaria além dos desfechos vistos. Um deles continua pouco crível. Convencida de ser responsável e sem pensar na borboleta, seria ingenuidade achar que não surgiria outro tornado – ou consequências piores – se a causa não fosse resolvida. O universo não cobraria sua conta de novo e de novo? E Max bagunçaria o tempo para evitar o inevitável até quando?

Gostaria muito de um terceiro final. Pode ser o único ponto em que Life is Strange ficou devendo.

max final life is strange
Max e o tornado: há dois finais, mas só um parece fazer jus à jornada como foi narrada. E é triste demais.

Então, não espere justificativa pra tudo. Não é tão nonsense quanto Lost, mas as coisas não são entregues prontas. Vínculos entre certos personagens também deixam dúvida. Warren recebe uma mensagem de texto de Chloe, mas eles mal se conhecem, como conseguiu o número dele?

Com tanto pra mexer, às vezes você fuça em coisas que não deveria ainda e vê diálogos que parecem sem nexo. No laboratório da escola, antes de conversar com Warren sobre o experimento, Max se refere ao assunto antes da hora. Não quebra o universo, mas era evitável.

Os rolês temporais deixam um e outro diálogo artificial pelo caminho. O evento com Kate, por exemplo, mesmo terminando bem, não impede falas como se algo mais trágico tivesse acontecido. Certas citações posteriores são exageradamente solenes porque atendem aos dois desfechos possíveis.

Há problemas com a sincronia labial. Além de não ser das mais precisas, vi algumas com expressões faciais incondizentes com o tom do diálogo – notável no último episódio, o mais tenso, incluindo um trecho em que a sincronia sumiu e Max conversava com Warren no restaurante sem mover a boca.

Em um segmento do quarto episódio, uma fala de dica ficou em looping, ainda que eu já tivesse completado o passo. E duas vezes o jogo travou enquanto eu controlava o tempo. A pobre Max ficou lá presa naquele efeito fora de foco e não voltou mais.

Felizmente não há nada de muito grave.

life is strange kate
A Dontnod aborda temas pesados sem perder a mão em Life is Strange.

A simplicidade do estilo gráfico não prejudica a expressividade. Do olhar triste de Kate à carranca desconfiada de David Madsen e a arrogância na face de Victoria, cada personagem é inconfundível. É admirável, considerando o minimalismo dos modelos. Pena que expressões muito transtornadas não correspondem, como o pavor de Max na Dark Room, meio "poker face".

Atemporal

Na média, Life is Strange é maravilhoso. Se der chance, é provável que não queira parar até completá-lo. E ao fazê-lo, dificilmente não ficará apaixonado por Max e Chloe. E pela carinha triste de Kate, também. A história de amizade, amor, culpa, medo, evolução e descoberta é uma beleza e vale cada segundo, com defeitos que não invalidam a qualidade do conjunto. Lembrar que Dontnod passava longe de ser uma desenvolvedora gigante só aumenta o mérito.

Recomendado para fãs de drama, foco em narrativa e personagens cativantes. Se também curte fotografia, indie pop/folk, trilhas ambientais e não tem preconceito com temas adolescentes, encontrou um dos jogos da sua vida.

O primeiro episódio de Life is Strange, Chrysalis, é grátis na Steam. Peguei ele há anos e apesar de curioso, não joguei. Desperdício de tempo devidamente corrigido. Agora resta a depressão de quem termina uma série enquanto espero o remaster que chega em setembro, torcendo por conteúdo adicional.

Direto para a lista de favoritos para sempre.

max e chloe cena quarto life is strange

Lembre-se que Life is Strange aborda temas como suicídio, depressão, solidão, bullying, psicopatia e deficiência física. Caso sinta-se mal com isso, sugiro que vá com cuidado. Bate forte.

life is strange borboleta

O jogo foi avaliado na versão PC. Atualizado em 11/07/21.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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