Life is Strange: Before the Storm foi lançado dois anos depois da "temporada" de estreia da série. O jogador retorna à pequena Arcadia Bay para acompanhar a história de Chloe Price, coprotagonista no título de 2015.
A ideia foi ótima. Em LiS, Chloe foi retratada como uma jovem desaforada, briguenta, alheia à qualquer forma de autoridade e dependendo dos poderes de Max Caulfield para sair de enrascadas.
Mas é típico da série que personagens não sigam arquétipos de vilão ou mocinho. Assim, ganhamos a chance de assimilar os porquês da personalidade de Chloe, assistindo e participando dos acontecimentos felizes e traumáticos de sua vida.
Não é uma jornada suave, mas dá pro gasto.
✔️ Não contém spoilers importantes.
Chloe na essência
Se você já gostava da "velha" Chloe, provavelmente gostará dela aos 16 anos, como uma rebelde em transição. Vemos sua face mais vulnerável, da estudante solitária após a partida de Max para Seattle. A amiga de infância não aparece – exceto num capítulo de bônus chamado "Despedida".
Mas é citada várias vezes nas três partes de Before the Storm, em sentimentos que variam de saudade à decepção pela falta de respostas. Nesse quesito, o enredo é fiel aos relatos de Life is Strange, ou seja, Max diminuiu as mensagens ao longo do tempo, até o ponto de cortá-las completamente.
Chloe se sente abandonada, sem amparo. Sua mãe, Joyce, acabou de começar o relacionamento com o ex-militar David Madsen, o que a sufoca ainda mais.
Parece depressão (ou drama de adolescente), mas acompanhar a história na perspectiva de Chloe torna o jogo mais engraçado. Ri demais de seu comportamento e resmungos contra David, prestes a mudar-se para a casa delas – para indignação da moça, cuja aceitação da ausência do falecido pai é uma barreira na nova configuração da família.
Também são "vítimas" de seu temperamento o Diretor Wells, o segurança Skip e o promotor James Ambers. Quando jogar, preste atenção ao que ela faz com seu cálice na cena do jantar 🤣.
Chloe desabafa escrevendo cartas (que não envia) para Max, contando sua rotina. O jogador conhece seus pensamentos mais íntimos, com pistas de como a separação foi traumática e refletindo sobre outras pessoas, sua própria sexualidade e sentimentos. A função é a mesma do diário de Max, em LiS.
Também vemos seus sonhos com o pai, geralmente obscuros e violentos. Uma das cenas fortes acontece no ferro-velho, quando encontra o carro em que William sofreu o acidente fatal. E presenciamos o "nascimento" da velha Chloe, ao pintar a primeira mecha de cabelo azul e adotar o traje clássico.
Isso tudo contribui ao lore iniciado em LiS. Mas...
Acelerado
Chloe ganha nova disposição ao conhecer Rachel Amber, a garota popular e "descolada" da Blackwell Academy – mas que revela-se tão desorientada quanto Chloe. A amizade, que parece improvável no começo, evolui depressa.
Na verdade, tão depressa que torna a narrativa pouco natural. Chloe é insegura e desconfiada, mas em 24 horas já está cabulando aula, assumindo culpas e trocando confidências com Rachel como velhas amigas. E 48 horas depois, são íntimas o bastante para planejar uma fuga juntas.
Você vê, tenta dar um desconto, mas não cola muito. O jogo precisava ser um pouco mais longo, dar tempo à formação do elo.
De forma geral, o enredo é inferior ao original, com pontos discutíveis. Exemplo? Chloe acaba numa grande trama envolvendo criminosos. É rocambolesco demais para ter sido omitido de Max em LiS. Há diálogos sem ritmo, como o papo chatíssimo com o pai de um personagem no hospital, que não leva a nada. Outra característica esquisita é o sistema de dica: Chloe lê uma anotação na palma da mão sobre o que deve fazer na sequência.
Também causa estranheza a mudança de atores de voz. A dubladora de Chloe, Rhianna DeVries, está ótima e às vezes até quase faz esquecer a original, a super veterana Ashly Burch (que participou como consultora no script da personagem). Mas no começo é difícil de se acostumar.
Velhos conhecidos e novidades
Outros personagens conhecidos retornam. Nathan Prescott exibe seu lado vítima na relação abusiva com o pai. O traficante Frank Bowers ajuda bastante a protagonista – ela ainda não tem a dívida enorme que os colocaria em conflito no futuro. Victoria Chase, o Diretor Wells e o zelador Samuel (mais místico que nunca) também dão as caras.
Entre novos estão a dupla de nerds Steph e Mikey, seu irmão valentão Drew e o stalker Eliot – que insiste em ter uma relação com Chloe (ela diz que "saíram algumas vezes" após a morte de William). Como em LiS, o enredo não empurra goela abaixo o status dessas relações. Se acontece um beijo entre ela e Rachel, ou como reage às investidas de Eliot, tudo é decido por suas ações.
A nova mecânica é bem adequada à Chloe: bate-boca. Ao entrar em alguns diálogos, ela tenta intimidar o adversário respondendo depressa e de forma correta. Vitória ou derrota bifurcam o desfecho. Para quem reclamava de excesso de controle na manipulação de tempo de Max, é interessante. Perdi a maior parte.
Também sem Max para fotografar, há um sistema de grafite: Chloe pode usar seu canetão para vandalizar pontos da cidade. Pode ser um desenho, piada ou frase engraçadinha e outras mais sinistras, tristes ou até de apoio, como no mapa de Rachel. A do ferro-velho é especialmente sombria.
Há alguns formatos de puzzle simples, como Chloe consertando seu primeiro carro (a caminhonete do primeiro jogo) e nas excelentes cenas da partida de RPG e da encenação de A Tempestade no teatro da escola – talvez minha preferida.
Bônus: Despedida
O capítulo adicional foi criado como um adeus à trama de Arcadia Bay, sendo a derradeira chance de explorar a casa de Chloe. Estão lá a garota e Max como pré-adolescentes, mas é um dia duplamente pesado: William vai morrer e elas se divertem pela última vez. Max está triste e nostálgica, preocupada em como dar a notícia de sua mudança iminente para Seattle.
São mostrados novos detalhes sobre Chloe, da relação de Max com a família, há fotos de infância, gravações, recordações dos Price, etc. A jogabilidade se baseia numa caça ao tesouro enquanto elas brincam de piratas. Até uma área nova, o sótão, é explorado.
Os diálogos são cheios de memórias, além das tradicionais pausas para sentar e apreciar o momento ouvindo a trilha sonora.
Um verdadeiro destruidor emocional para quem gostou de LiS. E me ajudou a ter certeza de que escolhi bem o final.
Altos e não tão altos
A comparação é cruel, considerando o nível de Life is Strange. Mas a trilha sonora, apesar de boa, não manteve sua (altíssima) qualidade, com certa irregularidade. Alguns momentos são perfeitamente ambientados, causando o mesmo impacto. São excelentes o trem, o quarto iluminado por estrelas e o diálogo na rua, após o teatro. Pena que acontecem com menos frequência.
Before the Storm foi feito em Unity (o primeiro, em Unreal Engine). Houve ligeira melhoria gráfica em alguns aspectos, como modelos e vegetação, mantendo o estilo minimalista. Já expressão e movimentos dos personagens parecem menos naturais fora de cenas intermediárias. Efeitos de iluminação são definitivamente inferiores aos de LiS – o que não causa espanto, já que o Unreal sabidamente produz gráficos melhores.
No fim, os jogos são parecidos e a Deck Nine conseguiu manter o feeling. Continua bem explorada a linguagem cinematográfica; ângulos de câmera, desfoques e iluminação criam cenas de apelo dramático e relaxamento, naquele clima peculiar da série.
Com três episódios e repetindo a estrutura de um dia por capítulo, as coisas acontecem rápido demais. A amizade de Chloe e Rachel não cresce convincente como deveria. Funcionava melhor em LiS, onde protagonistas já tinham um histórico. No encerramento, alguns eventos não ficam bem amarrados.
Outro defeito é a cobertura superficial de outros personagens. Se esperava saber como Rachel e Frank se envolveram (algo importantíssimo em LiS), esqueça. E Jefferson sequer é citado.
Parece que odiei o jogo? De forma alguma. Before the Storm é um bom complemento. Você vai se emocionar ao ver Chloe em locações conhecidas e divertir-se com ela pegando no pé de David e do Sr. Amber. Fora a cena final, perturbadora e esperada.
Prepare-se para chorar como criancinha é no extra "Despedida". Aquilo é um violador de emoções, feito para extrair seu coração a seco.
Positivo
- Fidelidade ao original
- Cenas criativas
Negativo
- Trilha irregular