Lendas dos Games #3: a música do suicídio em Pokémon

O mundo dos Pokémon é sempre uma coisa graciosa, cheio de personagens fofinhos e aquele apelo infantil, seja nas animações ou produtos paralelos. Então, por que um dos games teria levado ao suicídio centenas de crianças japonesas? Pelo menos é o que alega uma lenda urbana antiga relacionada aos Pokémon Red e Green, do Game Boy, lançamento de 1996 (lá como Pocket Monsters RedGreen).

Por essa "graciosidade", os Pokémon são alvo frequente de mitos macabros, as chamadas Creepypastas; pra quem não sabe (se é que existe), é um tipo de conto de terror imbecil em 99,9% dos casos, com morte, violência, fantasmas e baboseiras genéricas em ambientes improváveis, especialmente infantis. Alguns beiram o pastelão, como o "cartucho mal-assombrado" de Legend of Zelda, que salvaria sempre um game bizarro com o nome do próprio jogador, e que sempre termina em game over com a morte do protagonista, ou ainda os incontáveis conteúdos diabólicos, pervertidos e suicidas no universo Disney (montagens toscas e vídeos pessimamente editados por desocupados semi-amadores do Corel Draw e Movie Maker).

Os detalhes variam — sabe como é aquela coisa telefone sem fio — mas a história-base é a seguinte: pouco tempo após o lançamento de Pokémon Red e Green, houve um aumento súbito no número de suicídios entre crianças no Japão. Mais de 200 teriam sido induzidas a se matar por enforcamento ou pulando de grandes alturas, e centenas de outras sofrido com severos sintomas como dor-de-cabeça, enjoo, sangramentos e mudanças súbitas de comportamento.

pocket monsters red versionA causa seria a música tema da Lavender Town, cidadezinha que abriga a Pokémon Tower, um tipo de mausoléu para os monstrinhos falecidos e cheio de fantasmas, que também foi casa do Cubone, Pokémon que usa o crânio da própria mãe como máscara. Imagine uma criança que até aquele ponto acreditava que os bichos só desmaiavam, saber que não só morriam como havia um "cemitério" deles... Só isso bastaria para assustar algumas crianças — e marmanjos mais cagalhões.

Mas por que só crianças se suicidariam? A trilha teria ondas de frequência inaudíveis pela maioria dos adultos, com efeito similar àquelas drogas sonoras, na linha I-Doser; como a cidade é assombrada, o programador de áudio queria exatamente causar uma sensação de maior desconforto e depressão num lugar tão negativo, mas jamais imaginado a consequência trágica de seu experimento.

Será, só imaginação?

Em primeiro lugar, não achei nada que confirme o suposto boom no número de suicídios. O único evento similar e documentado foi em 1997, com um episódio do anime que teria sido responsável por centenas de casos de epilepsia fotossensível, problema verdadeiro e devidamente estudado. E mesmo esse evento é questionável, já que as crianças foram internadas em dias diferentes, talvez por auto-sugestão após a massiva cobertura da mídia local sobre os primeiros casos. Não há nada provado sobre o problema com a música da Cidade de Lavender.

Ao que parece, a história surgiu em 2010 como creepypasta, autoria de membro desconhecido do fórum 99chan. Depois, o usuário Goet pegou a redação do primeiro e "para dar mais credibilidade", a enriqueceu com dados irreais. Segundo a mesma página, a única verdade é que a música pode causar desconforto.

Aliás, você já ouviu a tal música? Fique tranquilo, você não vai querer se suicidar por causa dela (espero):

Sentiu algo? Pra mim ela só causa a impressão de ser chatinha, obscura, depressiva mesmo. Lembra um dia chuvoso. O que, na aplicação que teve, é algo excelente. Mas daí a dizer que causa suicídio, vai uma grande distância.

Pra piorar, os fãs do conto trataram de criar "fatos" para reforçá-lo. Um depoimento "real" jura que um amigo apareceu morto "ainda com seus fones de ouvido" depois de ficar obcecado pela música; ele seria um audiófilo capaz de ouvir frequências diferentes de ouvidos comuns, e morreu depois de descobrir "frequências ocultas" nela... Segundo um "documento", o Fenômeno de Lavender Town teria sido estudado com a inclusão de documentos vazados por ex-funcionários da Game Freak, desenvolvedora do jogo, como Satou Harue, Seki Uchitada e Ise Mitsutomo. Até a Nintendo entrou na trama, subornando pessoas para acobertar o problema, e depois ordenando a alteração da faixa na versão ocidental, com a remoção das frequências malignzzZZZzzzz...

Um trecho:

"Os sintomas predominantes relacionados ao que seria conhecido como "Tema de Lavender Town" inclui dores de cabeça, sangramentos pelos olhos e ouvido, alterações de humor e irritabilidade, vício em games, violência desmotivada, comportamento irresponsável e em cerca de 67% dos casos, tendências suicidas. Porém, os sintomas só se manifestaram em crianças com idade entre 7 e 12 anos, a maioria usando fones de ouvido enquanto jogavam.

Os desenvolvedores queriam "deixar uma impressão" no jogador ao visitar a cidade, de acordo com Seki Uchitada, membro do time. [...] O que Seki não revelou é que a música da primeira versão lançada foi formulada com um experimento de "batidas binaurais": usando frequências ligeiramente diferentes de som, cada frequência jogada em um ouvido através de fones, resultavam em vários efeitos psicológicos induzidos no ouvinte. Na maioria das versões, o jogador se sentia desconfortável, apreensivo, ou ligeiramente perturbado. Porém, para crianças a partir de dois anos, o áudio provocava uma variedade de distúrbios cerebrais, resultando em problemas psicológicos e fisiológicos que em alguns casos levou à morte — muitos deles por suicídio".

Você pode ler toda a ficção aqui.

Curiosamente, para "comprovar" a lenda, se você colocar a trilha num espectrograma (de forma bem tosca, um desenho das ondas sonora), verá um fantasma! E junto com o fantasma, a bizarra mensagem "SAIA AGORA" escrita com os Unown.

Não acredita? Veja que impressionante aos 3:22:

Se a intenção de quem produziu isso era dar mais credibilidade, claro que o tiro saiu pela culatra. Qualquer um com não mais que dois ou três softwares gratuitos pode fazer algo similar.

Quer ver? Baixe a trilha original da fase. Cuidado para não pegar as já modificadas com palhaçadinhas. Uma que parece limpa é a do vídeo que postei pouco antes.

Agora, escolha a imagem que quer esconder na música. Abra a imagem num software que converte imagem em áudio, como o Audio Paint. Gere o som, e exporte-o num arquivo em formato WAV. Fica um barulho horrível, um monte de ruído.

pokemon lavender 1
Procurando algo no espectrograma, seu mongolão de çatan?

Abra o tema do game num programa como o Camtasia Studio. Numa faixa jogue a trilha, e em outra, no ponto em que quer fazer a mesclagem, o ruído convertido a partir da imagem. Exporte o arquivo e pronto, você já tem sua versão diabodollyca da Lavender Town.

pokemon lavender 2

No que será que deu, vamos conferir? Primeiro, ouça o trecho modificado da música (a inserção ocorre a cerca de 00:45):

Agora, jogando essa faixa num espectrograma como o Sonic Visualizer, temos a "assombração".

espetrograma pokemon dollynho

Reparou que no trecho modificado ficam os ruídos do dollynho? As faixas modificadas com o fantasma e outras abobrinhas também tem isso como um tipo de som "macabro", mas não é nada além da posição em que ocorreu a inserção da imagem convertida.

Nada disso muda o fato de que a música é sim meio assustadora, depressiva e digamos, estranha. Não são poucos os relatos de gente que reduz o volume quando chega à cidade; outros garantem ter dor-de-cabeça, o que pode ser tanto placebo quanto incômodo com os agudos. É bom notar também que o tal efeito suicida só seria possível em quem jogasse com fones de ouvido, pois sem estéreo não há efeito de pulso binaural.

Conclusão

No fim, até pode haver alguma coisa na frequência para perturbar o ouvinte, mas definitivamente o hype em cima de Lavender Town é lenda. O isolamento no game japonês ajudou a fazer verificações mais difíceis (e fortalecer ideias como a conspiração da Nintendo no lançamento ocidental); o tropo das crianças sensitivas como alvo ou agente de algo maléfico que adultos não veem ou percebem tem sido explorado até dizer chega por terror e suspense do cinema e literatura: O Sexto Sentido, O Exorcista, Brinquedo Assassino, Cemitério Maldito e tantos outros são enredos em que a inocência infantil é corrompida por um brinquedo, assombração e coisas do tipo. Não tem suicídio em Pokémon, mas gostemos ou não, esses contos funcionam.

Se você é do tipo que se assusta à toa, vamos terminar com o tema de Lavender Town de trás pra frente, como qualquer faixa satanista que se preze manda.

Bons sonhos!

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

5 COMENTÁRIOS

  1. velho eu sinceramente gosto da música reversa é um remix mó do loko só tipo bota aqueles baguio de trap e fica mo daora

  2. Obrigado Guilherme, mas sobre creepypasta, é questão de opinião mesmo, não de julgar quem gosta. Veja que eu falei "é um tipo de conto de terror imbecil em 99,9% dos casos", porque o pessoal não se preocupa em desenvolver a estória, repete quase sempre os mesmos clichês tolos, entende? A maioria beira o infantil.

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