Kalinske fala sobre 3DO e futuro dos 32-bit em 1993

Todo mundo sabe do mega flop que foi o 3DO. Anunciado na primeira metade dos anos 90 como muito mais do que um videogame, mas uma estação multimídia que revolucionaria o conceito de lazer doméstico, o aparelho nasceu da iniciativa de Trip Hawkins, executivo com nada menos que a fundação da Electronic Arts no currículo, além de uma breve passagem pela Apple.

Com preço elevadíssimo para a época — quase o dobro dos videogames dominantes, os 16-bit de Sega e Nintendo — e poucos bons jogos, não passou de uma aventura cara e infrutífera. O PlayStation foi o chute final no cachorro morto de madame.

É fácil constatar esse insucesso tantos anos depois, mas é legal ver a opinião de gente que conhece do mercado antes das coisas acontecerem. Como diria o poeta, ser comentarista de jogo que terminou é fácil, difícil é fazer previsões e apontar caminhos antes da bola rolar. E assim foi com o mítico Tom Kalinske, que numa entrevista dada ao jornal The New York Times em 1993, duvidava do rival 32-bit e dizia mais: em poucos anos, a Sega lançaria algo melhor e "substancialmente mais barato".

Para quem não lembra, Kalinske foi o grande nome na Sega of America naquele período, e "o" cara por trás do sucesso do Genesis por lá (e por consequência no mundo). Sem Kalinske, a Sega jamais teria batido de frente com a Nintendo, nem teríamos visto uma das maiores console wars da história.

Confira a entrevista conduzida por Peter H. Lewis, publicada em 01/08/1993.

Se Thomas J. Kalinske fosse um personagem de videogame, acumularia mais pontos que Sonic the Hedgehog. Sr. Kalinske, presidente e CEO da Sega of America Inc. de Redwood City, Califórnia, subsidiária da Sega Enterprises Ltd. do Japão, juntou-se à fabricante de brinquedos Mattel como gerente de produto em 1973 e chegou à presidência da companhia em 1985.

Quando recebeu o bastão de comando da Sega of America em 1990, a companhia de hardware e software em videogames estava muito atrás da Nintendo, com vendas anuais de $125 milhões. As vendas deste ano estão "só um pouco abaixo de um bilhão", ele diz, e o Sega Genesis está vendendo mais que o rival da Nintendo na proporção de dois por um.

O jogo apenas começou: ano que vem, a Sega of America planeja lançar um capacete de "realidade virtual", um canal interativo de TV e outras novas tecnologias. Esta semana, é aguardada a introdução de versões em cartucho e CD de "Jurassic Park", game baseado no filme.

E não se esqueça da competição, principalmente de um novato, a 3DO Company, e da Atari, ambos desenvolvendo sistemas avançados de videogame. [NOTA: a Ataria trabalhava no lançamento do Jaguar. Muito avançado mesmo...].

Pergunta: Você disse que "Jurassic Park" é apenas um de pelo menos oito títulos que pretende vender um milhão de cópias cada. Por $54.99 por cópia, este negócio de games não é brincadeira de criança, certo?

Resposta: Ano passado nós fizemos $450 milhões mundialmente com só um jogo, Sonic 2. Isto é mais do que qualquer hit do cinema, mais do que qualquer outra propriedade de entretenimento. É uma forma muito atraente de entretenimento. Acreditamos ter uma cartada muito boa oferecendo mais entretenimento por dólar gasto, por hora gasta, do que filmes e televisão. Em essência, os vemos como nossos competidores. Você vai ver, você vai gastar mais tempo em "Jurassic Park", o videogame, do que assistindo "Jurassic Park", o filme.

P: A Sega bateu a Nintendo ao ser a primeira a passar dos games 8 para 16-bit. Vocês temem que a 3DO façam o mesmo que vocês com as máquinas 32-bit?

R: O lado arcade do nosso negócio tem sido software 32-bit há quatro anos, então temos uma vasta biblioteca de games 32-bit. Também sabemos mais sobre hardware 32-bit do que qualquer um. Posso fazer um hardware 32-bit como esse assim [estala os dedos]. O problema é que seria muito caro agora. O desafio real de engenharia é levar esse preço para baixo até onde seja um produto para o mercado de massa. Eu posso fazer um hoje por $100 a menos que o 3DO, mas não tenho interesse nisso. Não tenho interesse em ser duzentos dólares mais barato. Tem que ser uma unidade com preço substancialmente mais barata.

P: Você acha que as pessoas não comprarão o 3DO pagando $700 ou $800?

R: Essa é a nossa visão. Talvez estejamos errados, mas achamos que é um produto de nicho com esse preço. Fizemos bastante pequisa nesse sentido. Os videocassetes tiveram que romper a barreira dos $300 antes de se tornaram produto de massa. Estamos meio céticos quanto a própria tecnologia. Francamente não penso que seja boa o bastante. Então eu garanto a você que o que quer que façamos, será melhor do que eles estão fazendo agora, e vai custar menos. [NOTA: no lançamento, o 3DO custava cerca de US$700,00. O Saturn foi lançado por US$400,00.]

P: Enquanto isso, vocês já tem o Sega CD. Estão desenvolvendo o Sega VR, um dispositivo de realidade virtual que parece bem legal, e ano que vem haverá o Sega Channel, para TV interativa a cabo. Vocês não temem que em algum ponto, os garotos da América...

R: Este é meu pesadelo! Um dia eles dizerem "Chega, acabou".

P: Isso pode acontecer?

R: Claro que podem fazer isso se não nos reinventarmos a cada ano. A realidade virtual, nós já mostramos. Há software especial para isso. É absolutamente viciante. Você coloca o capacete e...

P: Vício é algo bom?

R: Pra nós, sim. Falando sério, ainda não houve pesquisa o bastante, mas há bastante material correlacionando aos videogames e notas altas na escola. Crianças frequentemente se interessam por computadores através da porta dos videogames. Acho que isso é realmente positivo.

P: Seus filhos jogam bastante os jogos da Sega?

R: Não, eles são um pouco pequenos. Atualmente 70% de nosssos jogadores de Genesis estão acima dos 12 anos. Não somos mais um negócio para crinças; nosso negócio é para adolescentes e adultos. 80% de nossos jogadores de CD-ROM tem mais de 18 anos. Há muitos homens, adultos, jogando CD-ROM. Achamos que vamos vender 800 mil Sega-CDs este ano. Se as vendas sazonais de fim de anos são de 80%, nossas vendas atuais podem suportar isso. [NOTA: apesar de não haver um número totalmente confiável, estima-se que as vendas do Sega-CD nos EUA ficaram entre 1.5 e 2 milhões até o fim de 1994, e 6 milhões no mundo todo ao final do ciclo].

 

Tirando as puxadas de sardinha para a brasa da Sega, claro, sua previsão — e visão — sobre o 3DO foi impecável: caro, de nicho, hardware pouco interessante que de 3D não tinha absolutamente nada... Inclusive acertou ao dizer que teriam em breve uma máquina 32-bit melhor que o 3DO (o Saturn) e que seria substancialmente mais barato (quase metade do preço de lançamento do 3DO).

Ele só não contava com a astúcia da Sony, e a falta de astúcia da Sega do Japão...

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

4 COMENTÁRIOS

  1. Taí um console que eu gosto muito. Apesar da biblioteca dele não chegar nem no calcanhar do Saturn e muito menos do Playstation, me divertiu muito. As versões dele para o Need for Speed, Out of this World, Alone in the Dark e Flashback são na minha opinião as melhores até hoje. Fora uns exclusivos bem interessantes. Costumo dizer que geralmente só gosta do 3DO que o teve em sua época mesmo. Enquanto ele competia com MD e SNES era uma máquina de outro mundo. Por sorte eu não paguei nem perto do preço oficial na época, rsrsrs.

    Por outro lado é até estranho a Sega, com tanta experiência em 3D nos arcades não ter investido nisso no projeto do Saturn. A impressão que temos hoje é que realmente existia uma rixa entres as filiais JP/USA.

  2. ... "Ele só não contava com a astúcia da Sony, e a falta de astúcia da Sega do Japão... "

    Thomas J. Kalinske foi o "Cara" da Sega of America. De uma competência extrema. Realmente Daniel, se não houvesse Kalinske, não haveria Sega peitando a Nintendo (e vencendo, por alguns momentos em número de vendas)

    A Sony abocanhou tudo com o Playstation 1 não foi? o Saturn era excelente no 2D, ports dos arcades da CPS2 da Capcom e a MVS da SNK ficaram excepcionais no Sega Satam, e sofríveis no PSX.

    3DO, joguei muito em uma locadora da minha cidade. Need For Speed nasceu nesse sistema, adorava. O preço era realmente proibitivo. O fato de ter somente uma entrada de joystick, como o PC Engine, era um saco, porém no 3DO o segundo controle encaixava no primeiro, e o terceiro no segundo e o quarto no terceiro. Ficava uma corrente (hahahaha), jogávamos Twisted, bons tempos.

    Sega of Japan ........... será que eles se arrependeram, no final das contas, de suas atitudes arrogantes perante a Sega of America?

    • Claro que a intenção deles não era bem essa, mas talvez o Saturn tenha sido a "máquina definitiva" para jogos 2D, era demais mesmo.
      Posso estar falando bobagem, mas acho que a Sega japonesa ficou com o orgulho ferido pelo Genesis ter feito tanto sucesso, e com ideias de um americano. O Saturn era a chance que queriam pra voltar a controlar tudo desde o Japão, e fizeram uma burrada colossal — além de perder o Kalinske.

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