A história do Philips CD-i

Games online, navegação na web, downloads, e-mails, e-shop: tudo isso é padrão em consoles modernos. Mas muito, muito antes deles, alguém já tinha sua máquina com tais recursos. No auge dos cartuchos, ele usava discos digitais e estampado com o nome de uma das maiores marcas de eletrônicos do mundo, prometia revolucionar o conceito de entretenimento doméstico.

Outros como 3DO fizeram parecido, mas estamos falando do que ficou marcado como um maiores fracassos da história dos videogames – sim, pior ainda que o 3DO que não teve exatamente a melhor das sortes. O CD-i não era só um console, mas um padrão de discos interativos desenvolvido pela holandesa Philips junto com a Sony a partir dos anos 80. Entre os poucos fabricantes de players do formato, o mais conhecido foi o Philips CD-i, lançado em 1991.

Similar ao CD comum, mas permitindo interação sem uso de kits multimídia como computadores, o usuário conectava seu aparelho à TV e através do controle remoto (ou mouse, controle, etc), apreciava música, vídeos, aplicativos e jogos. As possibilidades eram quase intermináveis: corporações poderiam exibir slides e apresentações; crianças, aprender com software educativos e brincar com os games; a família toda, assistir vídeos no formato VCD.

Produzido em modelos diversos, direcionados a cada perfil de consumidor, o leitor foi anunciado como "plataforma multimídia". Mas não funcionou e sem destaque, tentaram explorar o setor dos videogames, onde o CD-i também não encontrou lugar. O ramo era muito disputado e tinha opções mais baratas, populares e melhores.

Controles esquisitos e péssimos softwares ajudaram a afundá-lo como poucas vezes visto. Descontinuado em 1998, não deixou saudade e sim quase 1 bilhão de dólares de prejuízo às empresas que apostaram nele.

Outras partes da série História dos Videogames:

Veja também a Ficha técnica

Desenvolvimento

CD-i logo
O padrão Green Book, dos discos interativos do Philips CD-i, foi fruto de parceria com a Sony

A Philips não era iniciante nos videogames. Em 1978 haviam criado o Videopac G7000 (nome europeu do Odyssey brasileiro, ou Odyssey² americano). Poucos depois, foi uma das primeiras licenciadas a produzir jogos no padrão MSX. Com o fervor do mercado no começo dos anos 90, diante da briga entre as potências da vez – Sega e Nintendo – empresas estavam aqui e ali tentando acordos e planejando lançar projetos conjuntos.

Talvez o caso mais famoso seja a (falha) parceria Nintendo e Sony para o design de um add-on em CD para o Super Nintendo, o SNES-CD.

Mas a Nintendo flertou também com a Philips. Havia um tipo de "triângulo amoroso" entre as duas e a Sony desde o começo dos anos 80. Philips e Sony trabalharam juntas na especificação Green Book de CD-i, parte do Rainbow Books que incluía outras especificações como o Red Book, de discos de áudio. Eram várias companhias envolvidas, como a Kodak e a JVC, e muitas especificações: Yellow Book para CD-ROM, Orange Book para CD-R e RW, White Book para VCD, etc.

Relações complicadas

O plano da Nintendo era ter um CD para o SNES com ajuda de alguém já experiente nos discos, afinal seu domínio era nos cartucho. A primeira tentativa de projeto em parceria foi com a Sony, numa relação iniciada em 1988. Mas depois de pesquisas e projetos encaminhados, o casamento foi por água abaixo por divergência contratual: a Sony teria todos os direitos sobre o formato do "Super Disc", disco do "Play Station" (então nome do futuro dispositivo para o SNES) e jogos que criasse. A Nintendo aceitou num primeiro momento – para espanto em executivos da indústria, pois tinha um histórico de rigidez na questão do controle de software em máquinas com sua assinatura.

Então, sem avisar a Sony, a Nintendo foi negociar em paralelo com a Philips, que lhe prometeu um dispositivo mais avançado e um negócio "mais adequado para a Nintendo", segundo palavras de seu então vice-presidente, Howard Lincoln.

Na CES de 1991, a Sony anunciava orgulhosa que lançaria seu console de CD compatível com cartuchos do SNES, o Play Station (ou Game Player, segundo algumas notícias da época). No dia seguinte, a Nintendo surpreende a todos com o anúncio de seu namoro com a Philips. Chegou-se a questionar a validade, já que tinham um contrato ativo com a Sony. Mas após muita discussão, foram mantidos os contratos com ambas.

A Sony, mesmo sabendo da flagrante quebra de contrato, continuou tentando levar aquilo até 1992, na esperança de manter o Play Station compatível com o SNES. Mesmo "traídos", ainda parecia positivo ter um console meio-SNES e herdar milhões de jogadores.

Mas as diferenças foram se monstrando irreconciliáveis. A Sony saiu da parceria e se lançaria no mercado poucos anos depois. Ironicamente, dando uma pancada sem precedentes na Nintendo, que viu seu Nintendo 64 reduzido a pó frente ao PlayStation, já como um console próprio.

Philips CD-i 450
Philips CD-i 450, primeiro modelo que competiu no setor de consoles. Foto: PC Games Hardware

A Philips prometia um bom equipamento para bombar o Super Nintendo, mas o desenvolvimento estava lerdo e a Nintendo começou a ficar desinteressada. Vendo o tamanho do tombo da Sega com o Sega CD e principalmente o fiasco do 3DO, resolveram largar a ideia de ter um leitor de CD no SNES.

De qualquer forma, os holandeses ainda tinham o formato CD-i, com participação minoritária da Sony, cerca de 10%. Quando os leitores de disco fossem lançados, modelos também poderiam ser produzidos pela Sony, o que aconteceu com o portátil IVO-V11).

A Nintendo ficou sem o sonhado SNES-CD, enquanto Philips e Sony produziam tocadores de CD-i de forma independente. Mas não estavam perdendo muito.

Lançamento tardio

O CD-i era um projeto antigo. Vinha sendo trabalhado desde 1984; Sony e Philips, que já não lucravam como antes em videocassetes, empenhavam-se num formato de CD que juntasse áudio, vídeo e texto. Mais tarde, a Matsushita/Panasonic, outra gigante global de eletrônicos, aderiu para desenvolver circuitos integrados.

Planejado para chegar originalmente em 1988, a Philips viu-se obrigada a adiar o CD-i ano após ano, por sucessivos problemas. Uma hora eram os sistemas de emulação, na outra o operacional (acabou sendo uma versão baseada no OS-9, da Microware) e assim seguiam lentamente. Quando finalmente veio ao mundo, em 1991, seu leitor doméstico de CD-i tinha o absurdo preço de 700 dólares, vendido como uma central de entretenimento, o aparelho mais importante da sala. Rodava os discos CD-i (interativos), CDs de áudio, CD+G (CD + Graphics), Karaoke CD e Video CD – este exigindo placa de vídeo adicional para a decodificação do formato MPEG-1.

O alvo não eram necessariamente gamers, mas o público maduro, que o colocaria, com sorte, no lugar do videocassete. Jogos teriam um papel até secundário, um bônus de luxo entre tantas funções. O CD-i deveria ser a evolução do videocassete.

Philips CD-i ad
Anúncio de um dos modelos de CD-i player: face multimídia como destaque.

Mas o desempenho foi fraco. A Philips fez sucessivas reduções de preço, o que não resolveu. Em 1994, já meio no desespero, convenceram-se a apostar tudo no rótulo de videogame.

Projetaram a linha 400, com design mais parecido com o que o público esperaria de um videogame, baixando o preço para US$299 e incluindo o jogo Burn:Cycle na embalagem. Os modelos "videocassete" como o 220 também foram a U$299, com promoções como a inclusão da Enciclopédia Compton.

Mario no CD-i

Boa parte do software era composto por versões de tabuleiros e educacionais. Entre eles, um inacreditável resquício do contrato com a Nintendo: permissão para usar personagens como Mario e Zelda, rendendo jogos que vão de fracos a medonhos. Certamente a aventura mais improvável já feita com o quase intocável elenco de personagens da Nintendo.

Alguns baseados em shows da TV também vieram, como Jeopardy! (tipo Show do Milhão) e Name That Tune (conhecimentos musicais), além de FMVs como os infalíveis Dragon's Lair e Mad Dog McCree. De modo geral, todos muito fracos e incapazes de atrair público ao sistema. Apesar da reforçada e cara campanha de marketing, o público não se convenceu a comprar o CD-i, fosse para entretenimento geral ou jogar.

Opções mais interessantes estavam à disposição, como o PC Engine (forte no Japão), o Sega CD (desempenho regular, mas atraente para o enorme público do Genesis) e logo viriam outras ainda melhores como o PlayStation e o Nintendo 64.

Para um videogame, o CD-i nasceu ultrapassado. Não quiseram alterar demais o projeto, o que causaria ainda mais atraso ou até o cancelamento. Resultado: enquanto computadores ganhavam processadores velozes e mais memória, ele usava um chip 68000 similar ao de aparelhos de 1987.

Sem falar da concorrência violenta no setor em que foram se meter, no meio da guerra de consolese da 4ª geração. Havia pouco campo a explorar.

Modelos

Vários modelos foram produzidos pela Philips e licenciadas. Os da Philips eram divididos em séries, cada uma com mais ou menos recursos, alguns voltados aos jogadores, outros a desenvolvedores ou corporações.

  • Série 200: modelos 205, 210 e 220. O "padrão", indicados ao público geral. O modelo 910 é a versão americana para o 205.
  • Série 300: modelos 310, 350, 360 e 370. A linha profissional, voltada a empresas, como na apresentação de slides e conteúdos corporativos.
  • Série 400: modelos 450, 470 e 490. Os ditos "consoles", mais finos que a linha 200 e focados nos games e conteúdos educativos.
  • Série 600: modelos 601, 602, 604, 605, 615, 660 e 670, voltados a aplicações e desenvolvimento de software, geralmente incluindo suporte a floppy, teclado e periféricos comuns de computadores. Alguns podiam ser conectados a emuladores para testes de software e ferramentas de debug. Há ainda uma linha de modelos mini-stereo, TVs e aparelhos de som com CD-i embutido, etc.

Recepção

O CD-i foi um enorme fracasso comercial e de crítica. Seu fraco acervo de jogos e os controles pouco usuais não ajudaram, sendo parte do pior já projetado para o segmento – o hardware não era o ideal para um videogame, àquela altura. Listas de piores consoles posicionam o CD-i com destaque.

Nem jogos licenciados pela Nintendo escaparam da ruindade. Pelo contrário: Hotel Mario e Zelda: Wand of Gamelon – que não foram desenvolvidos pela Nintendo – estão entre os piores de suas franquias contando todas as plataformas. Ambos são alvos de chacota e memes até hoje.

O jogo melhor avaliado foi Burn:Cycle, aventura com quebra-cabeça que recebeu nota máxima em som, gráficos e diversão da GamePro, além de nomeado "Melhor Game de CD-i em 1994" pela EGM. Outros poucos tiveram recepção favorável, como o onipresente Tetris, Chaos Control e Mutant Rampage: Bodyslam.

O sistema foi descontinuado em 1998, com cerca de 1 milhão de unidades vendidas e deixando um rombo próximo de 1 bilhão de dólares para a Philips.

CD-i na internet

Tele CD-i AssistantEm 1992, a Philips fez parceria com a também holandesa CDMATICS para desenvolver uma conexão de seu aparelho em redes. Surgiu o TeleCD-i ou TeleCD, permitindo a transferência de dados para comunicação ou exibição de mídia. Entre os "early adopters" estavam a rede de supermercados Albert Heijn e o serviço de entregas Neckerman Shopping. Ambos usaram aplicativos para oferecer seus serviços online.

A CDMATICS também desenvolveu ferramentas para ajudar na implementação e desenvolvimento do CD-i pelo mundo. Com isso, o TeleCD-i foi a primeira aplicação multimídia via rede do mundo. Os direitos da CDMATICs foram depois adquiridos pela Philips.

Como a Philips introduziu os serviços online primeiro na Europa, os Estados Unidos tiveram sua própria versão do software para navegação com o Web-i. Basicamente era o mesmo serviço, só com outro software. Isso em 1996, quando o CD-i estava praticamente morto em termos comerciais. A UUNET Technologies foi escolhida como provedora da rede do Web-i, com um modem de 28.8 Kbps.

Controles e acessórios

Como o CD-i teve funções de rede e títulos educativos, vários acessórios comuns aos computadores foram lançados, como trackballs e mouse, além de controles especiais e a expansão de vídeo para assistir filmes em formato Video CD.

Jogos

Foram poucos os bem avaliados.

Burn:Cycle

Adventure/puzzle com tema futurista, mistura trechos estilo Pac-Man e filmagens com cenários 3D pré-desenhados. Conta a história de um hacker que teve um vírus infiltrado no cérebro, com duas horas para descobrir a cura antes que seja totalmente afetado. Recebeu notas altas em reviews e é frequentemente lembrado como parte do melhor do CD-i.

Burn: Cycle CD-i

Mutant Rampage: Bodyslam

Beat'em up com influências de Double Dragon e Final Fight, cheio de inimigos mutantes que vão de lagartos a mulheres peitudas e gordões que peidam em você... Três personagens para escolher: dois caras fortes e uma mulher. Se passa no ano 2068, quando os tais mutantes tomaram conta do planeta.

Mutant Rampage: Bodyslam CD-i

Hotel Mario

Puzzle em que Mario faz uma surreal e inédita (desde o NES, pelo menos) aparição num videogame não desenvolvido pela Nintendo. Feche portas em vários andares dos hotéis de Bowser para salvar a Princesa Peach. Foi criticado por controles ruins e animações toscas nas cenas intermediárias. Tem bom valor de coleção e ajuda a desmistificar a crença de que mascote vende qualquer coisa.

Hotel Mario CD-i

Zelda: Wand of Gamelon

Se esperava um grande jogo só porque tem Zelda no título, esqueça. É um jogo de plataforma com controles confusos e animações intermediárias mal feitas.

Zelda Wand of Gamelon CD-i

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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