Grandes saltos de qualidade: Street Fighter I e II

Sempre que perco meu tempo jogo Street Fighter (1987), o primeiro, o senso crítico grita na cabeça: de onde diabos a Capcom tirou tanta inspiração para transformar a sequência de algo ordinário no absurdamente fora da realidade Street Fighter II — com justiça um dos maiores clássicos de todos os tempos, não só dos fighting games? (Mentira, não me faço uma pergunta tão longa, mas a ideia é essa).

Teriam seus criadores feito pacto com o coisa-ruim pra esbanjar criatividade e qualidade na continuação? Ou como diria a Feiticeira: "não é magia, é tecnologia"? Apesar de não ter chegado com força por aqui (aliás, em lugar nenhum, pelo menos nada comparável à posterior febre mundial), quem teve a oportunidade de soltar os primeiros hadoukens sabe: ao mesmo em que a identidade estava lá esboçada, como um DNA primitivo, o segundo jogo foi uma revolução incomum: tente lembrar jogos que fracassaram ou ficaram no quase anonimato na primeira parte, e estouraram na seguinte...

Seja como for, a evolução entre as duas primeiras partes é tão aguda que fica difícil explicar em poucos argumentos. Isso se for possível.

Tela título de Street Fighter

Tela título de Street Fighter II

Em 1987, pelas mentes de Takashiki Nishiyama (que depois da Capcom trabalhou na SNK criando ícones como Fatal Fury e Art of Fighting, e fazendo parte da equipe em diversos outros como King of Fighters e Samurai Shodown) e Hiroshi Matsumoto, o SF "original" saiu bem limitado; dois personagens jogáveis — Ryu ou Ken, quase um Billy e Jimmy Lee — e a movimentação não é lá grande coisa (é ruim). Não há muito equilíbrio entre força de golpes especiais ou normais, três ou quatro hadoukens resolvem um round. A jogabilidade é diferente, travada.

Apesar de insosso, SF I tinha algumas características que mostravam seu potencial. Certas versões do arcade foram lançadas com a configuração de seis botões, sendo três de soco e três de chute, com diferentes forças: fraco, médio, forte. Como todos sabem, virou um padrão para o gênero.

Fighting Street
Parece o Ryu? Claro, porque é o próprio!

Mas algumas máquinas foram lançadas com três botões hidráulicos, sensíveis à pressão: de acordo com a força que o jogador os pressiona, o golpe tem uma força compatível. Imagine a pancadaria sobre os botões, aquelas que deixavam o dono do arcade ou do bar maluco... Se já arrebentávamos o botão comum na pancada sem precisar, pense num que você não só pode como DEVE bater mais forte.

A mania irracional e reflexiva de socar os botões ficou conhecida ainda nos beat'em ups como button smashing, e Street Fighter apostou nisso como forma de "pegar" o público acostumado com a "técnica". No livro Game Sound Technology and Player Interaction: Concepts and Developments (Mark Grimshaw, 2011), David Surman lembra que investir numa interação mais intuitiva do jogador, nesse caso, não era exatamente a melhor das opções, por motivos óbvios. "Essa inovação levou muitas máquinas à destruição nas mãos de jogadores dedicados em espancar o sistema de controle. A cacofonia daqueles grandes botões vermelhos sendo batidos tornou-se um marco em parte das máquinas iniciais de Street Fighter".

O único console propriamente dito a receber um port de Street Fighter I foi o Turbografx-16, com o nome modificado para Fighting Street, já que os fabricantes acreditavam que versões domésticas não deviam levar o nome igual ao arcade (qual a lógica disso, não tenho ideia). Depois outras também ganhariam a honra, se o termo se aplica, de ter Street I, como o Commodore, ZX Spectrum, Amiga, etc.

Felizmente para a humanidade, o povo da Capcom não ficou satisfeito com o próprio esforço e já sobre a CPS, primeira da linha vencedora de placas de arcade, fizeram Street Fighter II - The World Warrior, lançado em março de 1991. Dessa vez produzido por Yoshiki Okamoto, com artes de Akira Yasuda (Final Fight, X-Men: Children of the Atom, Darkstalkers) e Akira Nishitane (que também trabalhou na primeira versão do jogo, depois um dos fundadores da softhouse Arika), a sequência conseguiu ser inovador mantendo aspectos do original, respeitando sua atmosfera como uma autêntica evolução.

Não só inovador, MUITO inovador.

Ryu x Mike em Street Fighter

Ryu x Dhalsim em Street Fighter II

A Capcom lucrou horrores com SF II: só no Japão, as edições World Warrior e Champion Edition venderam, juntas, mais de 200 mil máquinas, amealhando coisa de US$300 milhões só com a CE em valores atuais. Os ports mais conhecidos e partes da família como a New Challengers e as Turbo (SNES e Mega Drive) venderam perto de 14 milhões de unidades.

As possibilidades de confronto (o resultado de soco contra soco, voadora contra tal golpe, etc) levaram o duelo a ter dezenas de fechamentos, mesmo que às vezes para golpes parecidos. A movimentação é totalmente incompatível com a primeira parte, felizmente. O som é um dos muitos pontos altos, com melodias que TODOS os jogadores lembram de pelo menos quatro ou cinco, sem muito esforço. E a música que fica mais rápida quando a luta vai chegando perto do fim? Enervante, eletrizante como todo jogo de ação e luta deve ser. Vozes, belos cenários, uma história entrelaçada, personagens cativantes.

Os duelos viraram febre no Japão e depois no resto do mundo. Quem não teve uma tarde de lutas com amigos e desconhecidos em algum arcade / botecão do bairro?

Ryu soltando hadouken em Street Fighter

Ryu x Zangief em Street Fighter II

E esse era um dos baratos de SF II: o desafio de enfrentar "inimigos" a cada bairro, sendo um pouco Ryu, buscando por novas lutas e tentando ser o melhor da região. O game foi bom o bastante para manter todos entretidos por anos a fio. Eu mesmo continuo jogando até hoje, principalmente a Champion Edition.

Você pode dizer que o tal salto (um grandíssimo salto) de qualidade foi apenas pela tecnologia da CPS, mas independente da qualidade gráfica ou de som, havia tantos elementos somados que fica pra história como um daqueles acertos que pessoas ou corporações conseguem muito raramente, um achado; talvez um lembrete sobre como não se deve abandonar convicções e ideias ao primeiro sinal de dificuldade, mas sem jamais perder a ousadia e apostar na criatividade. Uma equação difícil, mas que quando fecha, dá nisso aí...

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

2 COMENTÁRIOS

  1. É muito interessante perceber que SF já tinha elementos que iriam torná-lo um clássico.Mas é claro não existe fórmula para o sucesso por isso concordo quando você diz " é um daqueles acertos que pessoas ou corporações conseguem muito raramente" perfeito é exatamente isso que sintetiza SF2.
    Independente de gênero,console ou geração ,SF2 entra no Top 10 dos jogos mais influentes da história desde o Space Invaders até os dias de hoje.

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