Games com inspirações negadas pelos designers

Inspiração, influência? Chame como quiser, mas não há como negar que um trabalho bem feito segue vivo nas gerações seguintes. Não fosse a evolução olhando para o passado, estaríamos o tempo todo nos reinventando, começando do zero. É assim que deve ser e não tem problema algum, certo?

Pra alguns, errado. Nem todo criador gosta de admitir a fonte em que bebeu sua água milagrosa. Mesmo com berrante DNA alheio na fuça de sua criatura, preferem a esquiva. Afirmam sem pudor que tiraram tudo da cartola, num momento de suprema iluminação e criatividade — mesmo você VENDO que não é bem assim.

Os motivos variam: orgulho pessoal, patriotada, pressão da empresa que representam. Às vezes leva décadas pra verdade vir à tona, mas o dia chega. Um bom exemplo é a "intromissão" dos americanos no design de Sonic (fato parcialmente rechaçado pelo time do Japão). Não muito diferente da Nintendo, que renega até a morte a reciclagem de ideias da inglesa Argonaut em Super Mario 64.

Há exceções, como influências erroneamente atribuídas por memes e lendas urbanas. Será que isso se aplica a algum dos exemplos da nossa lista?

Alguns casos famosos de games com inspirações negadas pelos autores:

Croc em Mario 64

A Argonaut foi uma desenvolvedora britânica que no começo dos anos 90 trabalhou com a Nintendo. Eles tinham desenvolvido a tecnologia do chip SFX, aquele do Star Fox. E não teria ficado só nisso: trabalhando em tempo integral para a Nintendo (por força de contrato), pretendiam usar um dos mascotes da casa numa produção própria.

O escolhido foi Yoshi. Só que a Nintendo, ciumenta com suas marcas, impediu os gringos de continuarem, engavetando tudo. Só mais tarde, livres para trabalhar com quem quisessem, os caras tocaram o projeto, tirando Yoshi e colocando um dinossauro "genérico" no lugar. O resultado foi Croc: Legend of the Gobbos para o PlayStation.

Chato, né? Mas não acaba aí. Segundo Jeremy "Jez" San, da Argonaut, a Nintendo usou boa parte do conceito e até código em seu próprio game — um tal Super Mario 64, manja?

A Big N jamais admitiu, afinal onde que o lendário Miyamoto usaria criações de gringos num dos games mais icônicos da casa? Ficou o dito pelo não dito. "Não estou sendo amargo, mas sinto que a Argonaut foi usada e depois descartada pela Nintendo.", avaliou o designer, lembrando o fim da relação.

"Miyamoto-san passou a trabalhar em Mario 64, que tinha a aparência de nosso game com Yoshi — mas com o Mario, claro — e foi colocado no mercado um ano antes do Croc. Ele falou comigo num evento mais tarde, se desculpou por não ter feito o game com Yoshi e nos agradeceu pela ideia do jogo 3D de plataformas", garante San.

Q*bert em Frostbite

Praticamente esquecido há gerações, Q*bert foi um dos jogos mais criativos de seu tempo. Produzido pela Gottlieb com design de Warren Davis (e de personagem por Jeff Lee), ele inaugurou o estilo isométrico nos videogames, com o efeito de pular entre as casas em quatro direções, numa decente ilusão tridimensional com falsos polígonos.

O arcade vendeu muito — foi o único grande sucesso da companhia — e claro, também inspirou outros designers. Um dos jogos mais lembrados com jogabilidade similar a Q*bert é Frostbite, da Activision, desenhado por Steve Cartwright e publicado em 1983 para o Atari 2600.

Mas apesar da semelhança, Cartwright garante que não foi o caso. Segundo ele, o desenvolvimento de Frostbite ocorreu quase paralelamente a Q*bert, logo ele não teve qualquer contato com o outro antes de terminar sua obra. Ao mesmo tempo, credita a ideia a outro game bem conhecido:

"Acho que a ideia de Frostbite veio ao jogar Frogger", admitiu. "Frostbite acabou saindo ao mesmo tempo que Q*bert, então as pessoas naturalmente pensaram que a ideia veio de sua natureza de pular e alterar a cor do lugar pisado. Mas eu nunca tinha visto Q*bert antes de terminar Frostbite".

Silent Hills / P.T. em Resident Evil 7

Resident Evil 7 foi apresentado ao público durante a E3 2016. Apesar do frisson sobre a série, o que chamou atenção de muita gente foi uma possível inspiração em outro jogo: P.T., a demo de Silent Hills, episódio da franquia que estava sendo produzido por Hideo Kojima e Guillermo del Toro.

Entre as semelhanças, a visão em primeira pessoa, os gráficos fotorrealistas e muitas cenas em corredores, aumentando a sensação de claustrofobia. O designer de levels de Silent Hills, Jordan Amaro, foi contratado para trabalhar em RE 7, o que levantou ainda mais a questão da influência.

Mas a Capcom não gostou muito da história e tratou de desmentir. Segundo o produtor Masachika Kawata, tudo foi original e as semelhanças, pura coincidência. "Quando P.T surgiu, já estávamos na fase de desenvolvimento, e ficamos surpresos ao vê-lo".

Outro produtor, Koshi Nakanishi, acrescentou: "Já estávamos usando a perspectiva em primeira pessoa antes de ver P.T, então não foi como se tivéssemos visto e decidido fazer o mesmo. Para o fato dos corredores e afins... bem, tínhamos tudo isso no Resident Evil 1 em 1996. Para nós, é questão de voltar para nossas raízes".

Ficaram na defensiva, ou mandaram a verdade?

A Bíblia em Chrono Trigger

julgamentos de chrono e jesus banner

Histórias de viagens no tempo nem sempre terminam bem. É difícil amarrar as pontas, e se o autor não prestar atenção, cria inconsistências sobre o que ele mesmo escreveu antes. Quando Chrono Trigger começou a ganhar forma, o roteirista Masato Kato estava reticente exatamente por isso, como afirmou em entrevista. "Como gosto de histórias de viagem no tempo, eu sabia que lidar com o tema num game carregaria um alto e incomum risco de se tornar um trabalho chato, sem apelo".

Então de onde veio a inspiração? Segundo muita gente, da Bíblia. Sim, aquele livro sagrado de algumas religiões. Há alguns anos circula a teoria de que Chrono Trigger, disfarçado num tema sci-fi como viagem no tempo, reconta a jornada bíblica em seus mínimos detalhes. Chrono é Jesus Cristo, o salvador que multiplica alimentos (cena do exército e a carne seca), morre (diante de Lavos) e ressuscita (balão clone), etc. São inúmeras semelhanças.

Mas a Nintendo nunca gostou de conteúdo religioso em seus games, para evitar polêmica. No Japão, algumas referências ainda são toleradas, como anjos e demônios, mas normalmente a versão ocidental tem nomes trocados. Como a Square Enix também nunca se manifestou sobre o assunto, a teoria deve ficar para sempre no campo das conspirações.

Skyrim em Breath of the Wild

Imagem: DET

E lá vamos nós...

Tão logo The Legend of Zelda: Breath of the Wild apareceu na E3 em 2016, alguns jogadores notaram uma essência de mundos abertos herdada de Skyrim. Vastidão, paisagens espetaculares, possibilidade de explorar muita coisa, modificar seu ambiente e manipular itens; tudo estava lá com certo refino, mas inegavelmente bebendo de uma fonte digna de inspiração.

Não há vergonha em admitir influências. O próprio Eiji Aonuma, produtor de Zelda, declarou tempos atrás que joga games "de fora". "No passado eu não jogava muitos games. Então percebi que isto não era certo. Eu tinha que jogar. Então atualmente jogo muito títulos estrangeiros. Joguei Skyrim. GTA? Não sou muito fã de violência, então não joguei. Também joguei The Witcher e Far Cry".

É compreensível, portanto, que um designer ou diretor mescle suas experiências pessoais na profissional. Fazemos isso o tempo todo. Mas quando alguém apontou essa simetria de Breath of the Wild com Skyrim e outros, imediatamente surgiram os ofendidos, negando com veemência tal heresia — sabe como é, a Nintendo é que inspira, não toma inspiração de ninguém, etc.

Aonuma, perguntado sobre o assunto, preferiu a saída padrão: a principal influência é... a própria Nintendo.

"Antes de mais nada, acho que muitos da equipe jogam vários tipos diferentes de games, games de mundo aberto como os que você mencionou [Skyrim e The Witcher], mas não acho que exista um jogo que tenhamos olhado e dito 'queremos fazer um game assim'. Em vez disso, nós realmente queríamos expandir o mundo de Skyward Sword [...]"

Já jogou BotW? Então tire suas conclusões.

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Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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