Entrevista: Michael Hara (executivo ex-Nvidia)

Michael Hara foi executivo da Nvidia por quase 20 anos. Nesse intervalo, viu por dentro uma empresa engatinhante virar gigante dos chips gráficos. Da fundação em abril de 1993, ao sucesso da arquitetura RIVA cinco anos depois, um período de aprendizado e alguns tropeços. Entre eles, capítulos interessantes da história dos videogames envolvendo a Sega.

Na virada da quarta geração de consoles, arcades ainda eram faróis de tecnologia e o 3D se firmava como nova ordem. A Nvidia se acotovelava entre incipientes candidatas à liderança nos gráficos para computadores. É nesse ambiente, com a Sega como referência em plataformas profissionais e grande campo para explorar nos PCs, que a novata se encontrava. "O que melhor para ganhar mercado do que trazer os arcades mais populares para o mundo do PC-Sega?", afirmou Hara.

A aproximação trouxe ao primeiro chip da casa, o NV1, títulos emblemáticos como Virtua Fighter e Daytona USA. A parceria teria ido além com o projeto Saturn 2 ou Saturn V08, nos moldes do Xbox One X ou PlayStation 4 Pro — um hardware melhorado a partir do Saturn, contornando mazelas que feriram a imagem da plataforma. Tivesse funcionado, e o destino do malfadado 32-bit talvez fosse outro.

Hara abriu um espaço em sua agenda como diretor da Hercules Capital para falar daquele período. Mais especificamente, aproveitamos para esclarecer vários pontos sobre os projetos iniciais da Nvidia, ambos fortemente ligados à Sega.

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Michael Hara. Foto: divulgação Nvidia, 2001.

Memória BIT: Muito obrigado por seu tempo. Gostaria de começar pedindo que dê um breve resumo de seu início na Nvidia. Você esteve por lá entre 1994 e 2011, certo? Como se juntou?

Michael Hara: Juntei-me à Nvidia em janeiro de 1994 como o primeiro diretor de marketing deles. Ao longo de meu período lá, entre 1994 e 2011, dirigi o marketing, marketing estratégico, de desenvolvimento, corporativo, comunicações corporativas e principalmente relações com investidor, logo após a empresa se tornar pública em janeiro de 1999.

MB: A Nvidia estava de olho no mercado de consoles de videogame desde o começo, ou mais focados no segmento de gráficos para PC? Li em algum lugar que o primeiro alvo foi o full-motion video, com uma mudança posterior para o 3D.

MH: A Nvidia foi fundada desenvolvendo processadores gráficos 3D para PCs. Para conseguir penetrar no mercado, os processadores precisavam fornecer funções atuais, assim como a nova tecnologia 3D. Gráficos VGA 2D, áudio SoundBlaster, full-motion video básico: tudo isso eram funções básicas de então.

MB: O que pode contar sobre o projeto NV1 e suas metas? Ele tinha características inovadoras para seu tempo, como o baixo requerimento de memória (então muito caras), excelência em superfícies curvas, etc. Por outro lado, era baseado em polígonos quadriláteros. Houve discussão entre arquiteturas de quadrilátero x triângulo, ou já havia forte convicção nos quads?

MH: O NV1 foi um dos mais avançados e integrados processadores multimídia de seu tempo. Sob uma arquitetura simples, ele fornecia emulação VGA, emulação SoundBlaster, full-motion video e gráficos 3D, tudo possível com 1MB de frame buffer.

Você está certo; naquele tempo, era preciso mais que 1MB de VRAM (ao custo de uns US$40 por MB, se me lembro bem), para a resolução de 1024 x 768. O mercado não pagaria por tal coisa. Ao usar polígonos quadriláteros texturizados, podíamos renderizar ladrilhos texturizados de cima a baixo e simplesmente empurrá-los diretamente pelo frame buffer, assim requerendo menos memória.

Polígonos quadrados tinham suas vantagens, mas infelizmente toda a indústria profissional de gráficos 3D, incluindo ferramentas de software, só usava triângulos. A conversão das texturas de triângulos para quadriláteros era uma questão séria que nunca foi resolvida.

Yu Suzuki

MB: Em que fase do desenvolvimento do NV1 a Sega entrou em cena, e por quê? Segundo certas fontes, a Sega se aproximou da Nvidia e Yu Suzuki era forte proponente da parceria, designando um engenheiro desconhecido (quem?) para falar por ele. Outros dizem que a Sega comprou uma grande fatia de participação da Nvidia, supostamente 1/3 da empresa. Qual a história certa aqui, se puder lembrar e compartilhar detalhes?

MH: A Nvidia estava à frente do jogo, e sempre soube que conteúdo — e neste caso, videogames — era a chave. O que melhor para ganhar mercado do que trazer os arcades mais populares para o mundo do PC-Sega? As arquiteturas de Sega e NV1 compartilhavam uma semelhança-chave: ambos os pipelines de renderização usavam ladrilhos quadrilaterais. Então, a princípio, games da Sega eram convertidos facilmente para o NV1.

Quando o NV1 foi lançado [na placa Diamond Edge 3D], acompanhava Virtua Fighter e Virtua Racing*. Um grande negócio. Yu Suzuki designou um time para a Nvidia para converter os games. Tudo tinha que ter a bênção de Yu. A Sega não teve participação significativa em investimento; definitivamente, foi mais um investimento no desenvolvimento técnico.

* Provavelmente Hara se confundiu nesse ponto, já que Virtua Racing não foi lançado para PC, e sim Nascar.

MB: Segundo Don Goddard, em algum ponto, o NV1 estava sendo testado pelo time do Sega Technical Institute. [O programador do STI] Ofer Alon trabalhava em Sonic Xtreme e Goddard em protótipos. A Nvidia tinha total conhecimento disso, era parte do negócio talvez jogos simultâneos para Saturn e PC?

MH: O NV1 estava sempre sendo testado pela Sega, já que estavam convertendo jogos para o chip. O NV2 estava sendo desenvolvido para a próxima geração do Sega Saturn.

MB: Goddard disse também que o NV1 estava muito à frente do Saturn. Segundo ele, iluminação colorida e superfícies curvas eram incríveis, e quando perguntado se uma conversão de sua demo UFO caberia no Saturn, recusou-se a fazê-la pois seria impossível. Se o Saturn não tivesse falhado comercialmente, seus títulos convertidos não representariam conteúdo de baixa qualidade para o NV1 a longo termo? A Nvidia previa uma longa parceria NV1 + Sega, ou o NV2 estava no horizonte desde o princípio?

MH: Havia muitos obstáculos além de apenas obter conteúdo para a indústria de PC na época. É por isso que a parceria com a Sega era um ponto chave naquele tempo. Porém, havia também obstáculos técnicos impedindo o desenvolvimento da indústria. Não havia APIs para games, custos de memória ainda eram altos, incapacidade de fornecimento apropriado de retrocompatibilidade para os padrões da indústria, e um sistema operacional construído para o DOS e aplicativos de produtividade. Pelo menos não até o Direct3D da Microsoft e o OpenGL entrarem em cena, e mais importante, Doom ser lançado, e enfim o grande catalisador de tudo, Quake.

Jogos da Sega foram convertidos do Saturn para o NV1 (placa Diamond Edge 3D). Imagem: VGMuseum.

MB: É dito que a Sega investiu 7 milhões de dólares para ajudar no desenvolvimento do NV2, é verdade? Quem eram as pessoas-chave na supervisão, e eles determinaram padrões ou especificações mínimas? Como foi o processo?

MH: A Sega não investiu no desenvolvimento do NV2, mas tiveram uma relação de colaboração muito próxima com o time de design. O NV2 sempre foi propriedade da Nvidia, e também seria uma versão atualizada para o mercado de PC.

MB: A Sega do Japão tinha uma mão forte sobre o trabalho americano naquele tempo. Muitas pessoas como Tom Kalinske [ex-presidente da Sega of America] e Chris Senn [ex-designer do STI] falaram sobre este controle e como, de certa forma, prejudicava os projetos da América. A Nvidia foi supervisionada pela Sega do Japão ou Sega da América? Era mais como uma parceria com opiniões de ambas as partes, ou a Sega tinha sempre a palavra final (comandos?).

MH: Não, o foco da Nvidia sempre foi o mercado de PC, e nada ficaria no caminho desse planejamento.

MB: O NV2 é meio que um mistério. Goddard contou um pouco sobre ele em 2008. O chip supostamente seria usado num console desenhado pela (ou em parceria com a) Sega, correto? Seria uma versão atualizada do Sega Saturn — às vezes citado como Sega Saturn V08 ou nVidia v08 —, ou uma plataforma inteiramente nova, como o Dreamcast? Talvez tenha sido um proto-Dreamcast?

MH: Como mencionei antes, o NV2 era uma versão atualizada do NV1 com o Saturn como plataforma base, e então seria usado no mercado de PC. As principais diferenças eram o microprocessador e a interface para a memória. No PC, seriam x86 e EISA.

MB: Desculpe se soa óbvio, mas quando diz "próxima geração do Saturn", falamos do que acabou sendo o Dreamcast? Ou uma plataforma intermediária, um "Saturn melhorado"? Pergunto porque Toshiyasu Morita disse em 2008 que avaliou um hardware cancelado usando o combo SH3E (Toshiba RISC, suponho) + nVidia? Era a mesma coisa, ou outra máquina?

MH: A mesma coisa.

MB: Talvez não seja exatamente da sua conta (provavelmente uma questão melhor direcionada à Sega), mas tem ideia se algum protótipo desse console Sega-nVidia, um Saturn v08, foi produzido? Quanto longe chegou o desenvolvimento até o cancelamento?

MH: Não me lembro de um protótipo ter sido produzido. Havia no máximo sistema de teste.

MB: Há uma história sobre um infame teste do NV2 que saiu errado, citado como um dos fatores cruciais na Sega abandonando negócios com a Nvidia — o evento da "tela preta"*. Poderia descrevê-lo ou dizer algo sobre o assunto?

MH: Isso foi há muito tempo para eu lembrar dos detalhes de um evento específico que tenha interrompido o projeto. Na verdade foi decisão da Sega seguir por conta própria. Eles estavam recebendo muita pressão do time AM3.

* De acordo com Don Goddard, a Nvidia demonstrava o projeto NV2 para a Sega quando houve uma grave falha, e a tela do que seria apresentado ficou preta. Teria sido o ponto final da relação entre as empresas. A história lhe teria sido contada pelo próprio Hara.

MB: Sério? Então a AM3 estava apoiando o que exatamente, consegue lembrar? Havia outras divisões ou pessoas-chave apoiando a plataforma NV2 em console?

MH: No fim da história, a Sega quis voltar atrás e desenvolver novas versões de sua plataforma internamente.

MB: Por que a Nvidia continuou trabalhando com quadriláteros como padrão depois do NV1? A falha do Saturn e o enorme sucesso do PlayStation não eram sinais de que desenvolvedores já estavam mais propensos a trabalhar com chips baseados em triângulos?

MH: A maior razão da arquitetura do NV ter mudado para triângulos foi por que desenvolvedores de ferramentas de software não abraçariam a renderização de quads para os artistas. Gerenciei o grupo de desenvolvimento durante o NV1, e passamos por inúmeras questões técnicas para que desenvolvedores convertessem suas texturas para os quadriláteros. Eles criavam distorções incríveis que no final, nunca puderam ser resolvidos.

Além disso, havia um problema grande em renderizar quads conforme se aproximavam do plano mais próximo da tela, já que começavam a distorcer sem qualquer controle. No final, o grande problema que o NV1 tentou resolver foi manter o tamanho do frame buffer de 0.5 a 1MB. Bem, preços de memória caíram logo, como é típico na indústria de semicondutores, e por fim isso não era mais problema

Riva 128, o NV3: chip foi o primeiro da NVidia com polígonos triangulares como base.

MB: Você quer dizer que a Nvidia mudou para triângulos no NV3/Riva 128, já que a NV2 supostamente continuaria usando a arquitetura de quadriláteros, certo? Por que as questões com os quads no Saturn não bastaram para mudar o NV2? A Nvidia ainda via quads como melhor abordagem para o mercado de PC (o que obviamente mudou depois do Direct3D)?

MH: Sim, o NV3/RIVA 128 abandonou os ladrilhos quadráticos e adotou a renderização baseada em triângulos. A Sega tinha desenvolvido suas próprias ferramentas dentro de seus estúdios privados, então trabalhar com quads não era problema. Para o mercado de PCs, as emergentes APIs que seriam usadas eram as existentes API, Open GL, criado pela Silicon Graphics, e o Direct3D, desenvolvido pela Microsoft, ambos baseados em triângulos.

A Nvidia não tinha escolha se quisesse alavancar todo o conteúdo que seria criado para aquelas plataformas. Caso contrário, teria todo o conteúdo customizado. Mercados só se tornam grandes quando padrões são seguidos.

MB: A Sega estava apoiando triângulos na época, muito antes do Dreamcast, enquanto a Nvidia tentava convencê-los dos benefícios dos quadriláteros, como apontam certas fontes? Por exemplo: o artigo sobre o NV2 na Wikipedia afirma que a Nvidia tinha um "forte desejo de continuar em sua tecnologia de texture mapping quadrático em amadurecimento", e que isso foi "uma grande causa de atrito entre Sega e Nvidia".

MH: Não era questão de uma empresa tentando convencer outra de cada mérito. O mercado-alvo da Nvidia era o de PCs, e no fim da contas, dar suporte aos triângulos era a única resposta. A Nvidia continuou com quads porque foi assim que havíamos começado, e naquele tempo, nenhuma API padrão estava no mercado. Cada um dos desenvolvedores de processadores gráficos tinha suas próprias bibliotecas para desenvolvimento de jogos. Foi uma batalha pela liderança de mercado. Nada a ver com o que a Sega queria.

MB: A falha do NV2 teve grande impacto dentro da Nvidia, levando a mudanças, certo? Alguns anos depois, o NV2A estaria no Xbox, e mais alguns anos depois, a Nvidia estaria de novo fazendo negócio com a Sega (Physx), e fornecendo chips para o Nintendo Switch. Então, parece que a nVidia sempre teve uma porta aberta para o mercado de consoles. Quanto frustrante foi a partida da Sega? Ao ponto de "vamos focar só no negócio de PCs", ou apesar de tudo, foi um passo importante no caminho da Nvidia?

MH: Você precisa lembrar qual a meta original da indústria de console: conteúdo. Antes da chegada das APIs, empresas de processamento gráfico 3D estavam numa corrida para ter os desenvolvedores de games a seus lados. Entretanto, sem APIs, isso jamais aconteceria, já que você precisava pagar desenvolvedores para criar games para seus chips. Não há dinheiro bastante para fazer isso.

Conforme o tempo passou, desenvolver processadores gráficos para consoles era como gerar receita com a mesma arquitetura. Só mudar o barramento da interface da CPU e você tinha um chip que corria num console. E por fim, o Direct3D saiu e amadureceu, e estava literalmente "no jogo". Como disse antes, a indústria precisava operar com padrões, e precisava de um killer app — e tal app foi Quake, o primeiro shooter 3D a chocar o mundo.

MB: O que a Nvidia — e por extensão, você — talvez tenha aprendido em qualquer sentido com o episódio?

MH: A maior lição aprendida é deixar as cartas caírem no lugar, reconhecer quando algo não está funcionando e seguir em frente rapidamente.

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, quase mil artigos publicados em dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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