Coleções de videogames: da nostalgia à doença

E disse Tyler Durden: "As coisas que você possui acabam possuindo você".

Navegando pelos sites e blogs sobre retrogames, virou rotina notícias de grande coleções de videogames em leilão e depoimentos de colecionadores e ex-colecionadores prestes a abandonar o hobby, ou que já o fizeram. Por motivos contrários à razão, eles gastam um monte de tempo, dinheiro, espaço e energia dedicando-se a juntar itens que 99% da humanidade não quer, que nunca vão usar e pelo qual jamais nutriram qualquer paixão.

E pior: ficam totalmente inacessíveis ao público, perdendo até o valor histórico. Do que valeria a Monalisa isolada na parede de algum ricaço excêntrico?

O motivo para começar é quase universal: saudosismo. Lembrar como era ter o controle do SNES nas mãos ouvindo a musiquinha do Mario com a mãe reclamando da novela ao fundo e o irmão pentelho – hoje aquele senhor austero que te acha bobalhão por ainda jogar – esperando sua vez que nunca chegava.

A criança cresceu e hoje dona do próprio nariz e dinheiro, quer preencher todas as lacunas de seu passado. Mesmo lacunas que nunca existiram, só pra ver na estante e não usar sequer 10% do que compra. A única finalidade é estar ali.

Em alguns casos, bem mais. "Percebi que se quisesse jogar metade dos meus jogos, teria que viver duas ou três vidas humanas", refletiu o italiano fundador do videogames.museum pouco antes de vender sua coleção com mais de 300 consoles e 5000 jogos.

Para preencher as tais lacunas, nada menos que o extremo. Se não dava pra ir ao zoológico quando pequeno, vamos ter um na vida adulta – tal como Michael Jackson, que também teve uma coleção de arcades e consoles de matar qualquer colecionador de inveja. Não dava pra realizar a fantasia infantil de ter aqueles videogames da revista? Por que não comprar todos agora, incluindo os que você nunca ouviu falar e nunca vai jogar porque não têm valor nostálgico algum na sua vida?

Se era por nostalgia, o propósito meio que se perdeu no processo, não?

Em que momento tiveram essa epifania? Quando sentiram que a emoção de jogar com seus pais ainda jovens e amigos ingênuos, não volta por causa de uma sala atolada de tranqueiras?

Base é psicológica

Quando descobrimos a agricultura e abandonamos a vida nômade, uns 12 mil anos atrás, vieram práticas antes impossíveis, como a de guardar coisas. Não foi ruim, já que a necessidade de preservar combinava com o fato de não serem carregados pra cima e pra baixo quando recursos se esgotavam. Nossa sensação de segurança e conforto ao guardar tem, portanto, raízes psicológicas antigas e profundas.

É impossível dizer qual a primeira coleção, mas a Biblioteca de Alexandria foi uma das mais antigas e maiores da humanidade por séculos: estima-se que antes da total destruição por um incêndio por volta de 642 d.C. (teve outro séculos antes), guardava mais de 700 mil pergaminhos e papiros. Hoje parece fichinha perto dos quase 25 milhões de livros catalogados da Biblioteca do Congresso, nos EUA.

Constatação óbvia: coleções não são más quando atendem ao propósito de preservar seu conteúdo para futuras gerações. Os motivos para iniciar e manter uma coleção pessoal são complexos, tanto quanto a nossa mente pode ser.

Segundo o psicólogo britânico Christian Jarret em seu artigo Why do we collect things: love, anxiety or desire? (Por que colecionamos coisas: amor, ansiedade ou desejo?), há algumas causas possíveis para o "bichinho do colecionismo", mas determinar qual se aplica a cada caso, demandando um estudo mais aprofundado e individual:

• Crianças que recebem pouco afeto procuram conforto no acúmulo. A carência é compensada ou mascarada pelo alívio das conquistas materiais.
• Alívio para ansiedades existenciais. A coleção funciona como extensão da personalidade, uma parte viva e bem-sucedida do seu dia.
• Forma de atrair parceiros ao exibir sua habilidade em acumular recursos. Não exatamente parceiros sexuais (pode ser também, vai saber...), mas pessoas com os mesmos gostos e interesses para seu convívio.

Em especial nos videogames, a principal razão dos colecionadores é nostalgia, buscar memórias de tempos em que preocupações não eram contas a pagar, banco, patrão ou carro. Mas o pulo entre ter alguns videogames e cartuchos para reviver os bons tempos, para uma sala lotada de caixas nunca abertas é pequeno para alguns.

Além das razões citadas pelo Dr. Jarret, entraria também o desejo de ter, que na psicologia fica no grupo das Necessidades ligadas à ambição: desempenho, reconhecimento e exibição.

Desempenho

Para muitos, mais importante do que ter itens que lhe são queridos, é ter tudo. Numa disputa velada – ou não tão velada – entre colecionadores, goza mais quem chega primeiro ao item raro. Ou quem encontra uma pechincha fantástica numa feirinha de fundo de quintal. É também conhecido como o "prazer da caçada".

Reconhecimento

Grandes coleções impressionam o bastante para ser fundo obrigatório na maioria dos canais sobre videogames. Estantes cheias servem como atestado de competência e conhecimento do youtuber ou streamer (a coisa do "sou gamer de verdade" 🙄) – mesmo que o vídeo seja uma bobajada sem fim, elas têm mais crédito se ditas com um raríssimo cartucho dourado no cenário. Numa discussão de fórum ou rede social, fotos de coleções são garantia de status instantâneo.

Exibição

Diferente do desejo de reconhecimento, o de exibição é mais "primal", movido pelo prazer em causar sentimentos em quem vê. Choque, inveja, admiração alheias são motivações de quem PRECISA exibir o que tem. "O desejo de reconhecimento é atingido ao ganhar status social e mostrar conquistas. Algumas vezes, a ambição envolve o desejo de exibição, ou de chocar ou amedrontar as pessoas", explica a psicóloga Kendra Cherry.

O fetiche por produtos selados é outra faceta curiosa. Colecionadores pagam caro por um produto lacrado na embalagem original só pelo status de intocado, virgem e exclusivo. Alguns têm genuíno interesse em preservar o item; outros, pelas regras comuns da ambição, querem reconhecimento pela dificuldade (prazer da caçada de novo) envolvida em localizar algo com 20 ou mais anos tão preservado.

Quanto maior o desafio, maior a conquista psicológica – e maior a sensação irracional de conforto. Veja o comentário de um colecionador de itens selados:

É algo que se não caracteriza, beira a obsessão.

Acumuladores

Parte deles, até ter – se tiver – aquela epifania, não aceita que sofre de uma compulsão, mesmo compartilhando frases e desculpas com típicos acumuladores, como "não tenho tanta coisa assim, vou guardar caso precise mais tarde ou vou juntar para fazer artesanato" (Câmera Record, Acumuladores Compulsivos, de 2013).

Bom, pelo menos artesanato não se aplica ao videog...

Sem falar dos que efetivamente viram acumuladores. Ter 10 videogames idênticos é normal? Se você é acumulador com máscara de colecionador, certamente vai se identificar com algumas características a seguir:

• Necessidade incontrolável de guardar tudo porque "um dia pode servir".
• Querer tudo, inclusive o que não tem valor sentimental ou comercial.
• Desordem.
• Desconforto ou irritação com a ideia de se livrar de qualquer coisa.
• Aquilo é tão importante que atrapalha outros aspectos da sua vida: social, doméstica, etc.
• Ciúme dos itens: odeia quando as pessoas se aproximam, dão palpite...

Cuidado se muitos sinais batem com seu perfil: seu hobby pode estar descambando para doença.

Segundo a professora da Universidade de Granada, Francisca López Torrecillas, coleções podem ser favoráveis em vários aspectos desde que controladas. "Colecionar objetos é benéfico sob o ponto de vista psicológico, já que permite desenvolver habilidades positivas como determinação, paciência, organização e memória", afirmou em seu trabalho Personalidad, Evaluación y Tratamiento Psicológico.

Mas quando o hábito ganha contornos de exagero, surge um grave problema, variante da Síndrome de Diógenes. Segundo o estudo, a coleção evolui para doença com mais frequência em quem já sofre de algum transtorno e / ou vulnerabilidade, como falta de autoestima, inaptidão social e problemas do cotidiano e pessoais. "Quando aparece esse sentimento de ineficácia pessoal, o colecionismo compulsivo ajuda a pessoa a sentir-se melhor".

Há vida pós-coleção

Algumas das maiores coleções particulares têm sido vendidas graças à "modinha retrô", que trouxe um público novo interessado por antiguidades. Em 2014, a então maior coleção do mundo segundo o Guinness World Records, de Michael Thomasson, foi vendida por US$750 mil em leilão. Contava com mais de 8300 jogos, sendo mais de 2600 novos e lacrados, além de uma variedade de hardware.

O mais louco é que ele garante que essa foi sua terceira coleção. Já havia vendido outras duas ao comprar um imóvel e ao casar. E vai recomeçar.

Outras menores mas ainda incríveis são vendidas para pagar casas, apartamentos, casamentos, faculdades ou abrir negócios. Atraiu quem passa longe de ter algo realmente colecionável, gerando um fenômeno comum nos sites nacionais e internacionais: pequenas coleções de uso – ou seja, consoles sem caixa ou com sinais do tempo, jogos abertos e muito usados, em quantidade e qualidade normal para um usuário típico – por valores exorbitantes.

Em efeito cascata, outros donos de itens surrados também elevam os preços. Chegamos ao ponto de ver um único videogame, recondicionado e reembalado, anunciado por milhares de reais.

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Isso acelera a decisão de encerrar (ou sequer começar) coleções. O destino das encerradas nem sempre é outro colecionador que a manterá privada: museus foram fundados a partir de acervos pessoais inacreditáveis, como a dos franceses André e Sylvio Hodos, agregada ao International Center for the History of Electronic Games por quase um milhão de dólares. Assim, servem ao fim cultural e histórico e ainda garantem um belo lucro aos donos originais, livres do fardo que aquilo se tornou.

Quem decide largar a escravidão do colecionismo tem vantagens, como o dinheiro, a liberdade de espaço em casa e mais tempo para outras atividades. Citando Durden de novo: "Só depois de perder tudo é que você está livre para fazer qualquer coisa".