Castlevania e o dilema moral das desenvolvedoras

De The Great Train Robbery¹ até hoje, a indústria do cinema evoluiu numa escalada de realismo e violência, andando de mãos dadas. Se o tiroteio em preto e branco do segundo western da história causou comoção, não demorou para que filmes coloridos e sonoros trouxessem ainda mais, até os banhos de sangue de Tarantino, cabeças explodindo em Scanners e as bizarrices do terror popularesco.

¹O Grande Roubo do Trem é um filme americano de 12 minutos que fez sucesso em 1903, considerado o primeiro a mostrar o cinema como algo viável comercialmente. Wikipédia.

Se são retratos do mundo, nada anormal na violência se aplicada com algum propósito, certo? A arte deve se limitar por causa do observador, ou o observador é quem escolhe a arte que quer ver?

Mas com a TV ganhando papel de babá após sua massificação, essa indústria teve que se adaptar, criando regulações e faixas etárias. Regulada, nunca deixou de produzir filmes violentos. Gostemos ou não, eles são parte do show, da poesia, do que o cinema tem a mostrar. Dá pra imaginar um mundo sem Laranja Mecânica, O Poderoso Chefão ou Cães de Aluguel, evitados porque poderiam causar desconforto na audiência sensível?

Nos videogames, a história veio se desenhando parecida, começando ainda mais fechada. Com seu público massivo de crianças até meados dos anos 90, não parecia certo expô-las a tudo que pais zelosos abominavam na televisão. Essa fuga "saudável" tinha que ser preservada, então surgiram os primeiros casos de autorregulação e processos.

Um dos primeiros foi Custer's Revenge, no Atari 2600, que além de violento, feria minorias e mexia em tabus. Games em que o jogador controla um psicopata qualquer, com objetivo de matar inocentes, como The Texas Chainsaw Massacre — coincidência ou não, inspirado em filme — não perdiam em violência para questionados de hoje, como Hatred ou Carmageddom. Começaram a brotar aberrações mais sérias como Chiller, arcade da Exidy que põe o jogador no papel de um torturador, atirando em pessoas amarradas e ganhando pontos se matá-las rapidamente.

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Chiller, arcade de 1986: jogador deve torturar e matar pessoas rapidamente para ganhar pontos.

Na maioria desses modelos arcaicos havia uma barreira, que os impedia de serem mais chocantes: falta de qualidade gráfica. Nos anos 90 (na real, já desde o fim dos anos 80), tal "proteção" foi cedendo. Jogos como Splatterhouse e The Immortal jorravam sangue vermelho ainda pixelado, mas bem óbvio e tenebroso. Mais tarde, Mortal Kombat foi verdadeiro divisor de águas na aceitação (ou não muita) crítica de games com alto grau de violência. A coisa ia num ritmo acelerado, aparentemente sem volta, e produtoras lucravam rios de dinheiro com temas obscuros como satanismo, homicídios e barbárie.

Essa "novidade" rentável, porém, não era do agrado de todos os produtores. Graças às convicções de um executivo importante, um futuro clássico foi rebatizado, surgindo um nome mais que conhecido.

Mudanças no castelo

Castlevania. O nome, mais famoso que o próprio jogo, nasceu de um acordo entre Takuya Kozuki, presidente da Konami, e Emil Heidkamp, presidente da Konami da América. Como contado por Tom Kalinske, então presidente da Sega, no livro Console Wars, o título original foi reinventado para o Ocidente porque Heidkamp, num misto de preocupações com o mercado e suas convicções religiosas, não aceitava determinados caminhos.

O fato lhe foi revelado pelo próprio Heidkamp na festa de abertura da Winter CES 1992:

Foi pouco depois de eu entrar na Konami. Encontrei o Senhor e tornei-me um renascido em Cristo. Disse a Kozuki-san que deveria haver certo nível de pureza em nossos games. Não queria que descêssemos o nível, ao mais baixo denominador comum de sangue, nudez e devassidão. Afinal, estamos no negócio de vender entretenimento para crianças. Temos uma certa responsabilidade, não?
Fiz um acordo com o Sr. Kozuki de que eu estaria por aqui e continuaria a cuidar da Konami desde que nunca fizéssemos nada além de violência cartunesca. Ele não hesitou nem um segundo e concordou com o acordo. E mais importante, nós selamos nossas palavras com ações. Bem naquele tempo tínhamos um game no Japão chamado "Dracula Satanic Castle", e ele me deixou renomeá-lo como Castlevania e fazer outras pequenas modificações. Considero o Sr. Kozuki um grande amigo e não tenho dúvida de que há uma verdade eterna em suas palavras, mas eu olho a indústria que estamos criando e não posso evitar pensar que é apenas questão de tempo.

Apenas questão de tempo até o momento em que seria inevitável para a Konami entrar na orgia sangrenta. Kalinske ficou chocado com a revelação, que de certa forma o fez pensar em sua própria conduta na Sega. Será que estavam se afastando do que ele idealizara dos games quando aceitou o cargo: a união de diversão com aprendizado?

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De qualquer forma, a Sega crescia a olhos vistos, finalmente batendo a Nintendo na América, e ele não se sentiu no direito de tirar isso da equipe, depois de tanto esforço. Continuaram na temática adulta, armando confusão até com o senado americano por jogos como Night Trap.

"Você viu o que tem saído dos arcades ultimamente?", continuou Heidkamp. "O jogo mais popular é Street Fighter, onde o propósito é espancar seu oponente. [...] Por quanto tempo você acha que isso vai durar? O mundo é cheio de ladeiras escorregadias, e uma vez que você começou a descer... Bem, há apenas um jeito de sair dela."

Heidkamp não estava ameaçando. Realmente saiu, deixando a Konami no ano seguinte. Provavelmente não por coincidência, a companhia lançava, meses antes, um dos jogos mais violentos da geração, Lethal Enforcers. O executivo nunca mais atuou na área, trabalhando em grupos de tecnologia ligados à educação infantil, como a VTech. Kalinske seguiu rumo parecido ao deixar a Sega.

Parece que a tal ladeira seguiu íngreme, para alegria de um e asco de outros...

Daniel Lemes
Daniel Lemes
Fundador do MB, mais de mil artigos publicados, mais de dez anos pesquisando e escrevendo sobre games. Ex-seguista, fã de Smashing Pumpkins e Yu Suzuki.

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